Por TARSO GENRO*
Lula e Gabriel Boric, juntos, podem unificar a América numa só voz de concerto
No primeiro dia de janeiro de 1959 à noite, em Cuba – a bandidagem política e os torturadores da polícia política do sargento generalíssimo Fulgencio Batista – foram informados de que Fidel Castro entrara em Havana, festejado pelo povo inflamado de rum e da alegria dos humilhados pela ditadura do “general”. Acompanhado de Camilo Cienfuegos e Che Guevara, Fidel incendeia a imaginação dos espoliados, quem sabe mostrando que mais vale morrer lutando do que viver oprimido.
Sobre a América Latina, sempre invadida por mariners americanos e por mercenários, que garantiam no poder matadores como Alfredo Stroessner e Anastacio Somoza e assassinavam rebeldes como Eliecer Gaitan, Farabundo Marti e Augusto Cezar Sandino, soprou um hálito fresco de esperança. Independentemente da frustração das utopias que sucederam as lutas nacionais libertadoras do continente. Foi a mais intensa obstrução feita contra o apocalipse da dignidade nacional americana no século passado.
Mais lutas, mais violências morais, mais fome, mais miséria e assassinatos impunes e a nossa América vai para um patamar mais político-eleitoral das lutas populares e democráticas, na busca de conformar soberania, políticas de coesão social mínima – mais heróis que se imolam e poucos que restam para respirar na selva “liberal” – quando surge um operário do ABC que diz “todos podem ganhar”. E se torna presidente, sem qualquer pretensão subversiva contra o capitalismo, que ele combate na sua forma concreta e ataca a fome e gera empregos, utilizando a sua capacidade política de agregar e conciliar, em tempos não revolucionários ou mesmo reformistas “fortes”, dizendo que todos devem comer, que os mais “fracos” precisam do Estado e que o Brasil é um país generoso e rico, que não pode aceitar crianças sem escola, nem mortos sem sepultura.
Luís Inácio Lula da Silva foi a rebelião possível dos tempos que se iniciavam distópicos, com a serpente do fascismo se preparando para colocar suas unhas de fora contra a presidenta digna que lhe sucedeu. Ainda não passou o tempo de Lula, mas já começou o tempo de Gabriel Boric. Estive recentemente no Chile e tive a possibilidade de ouvir e falar, ao presidente Boric, que chega à presidência de um dos países mais importantes da América do Sul. Esse jovem de 36 anos chega ao Palácio La Moneda com uma enorme vontade de acertar, de trazer para o Governo a voz desordenada e pura das ruas, que refletiram tanto o ódio a todos os tipos de opressão, como a simpatia e o respeito às tradições combativas do seu povo, presentes na memória luminosa de Salvador Allende: democrata traído, digno, socialista e libertário.
E os dois, certamente, se encontrarão nos seus respectivos governos: um, com o sopro da sua juventude rebelde; o outro – com a experiência das lutas do seu povo e da conciliação de classes – para tentar retirar a América Latina do atoleiro que a maioria da suas classes dominantes reservou as suas nações: para um novo patamar de lutas, disputas e conciliações, já que não existe revolução no horizonte, nem utopias definidas que tornem incandescentes os olhos mortos dos devorados pela miséria ou sacrificados pelo negacionismo infame.
Começam duas experiências paralelas de governo, num mundo em guerra permanente, ora concentrada, ora difusa, mas que – como sempre – acumula lucros e reparte sofrimentos. A guerra da Rússia contra a Ucrânia é o encontro fatídico de dois aparatos de poder pervertidos pelo nacionalismo de direita, para o qual só vale o mito da nação conservadora, não a realidade material e imaterial da vida do seu povo.
Neste canto do mundo, dois grandes homens, provavelmente, junto com seus colegas democratas se encontrarão para pensar no nosso destino e o futuro da terra latino-americana. Para também bloquear a hidra do fascismo, que percorre silenciosamente os setores mais frágeis e doloridos da sociedade e os seus setores mais privilegiados e contentes com a desgraça alheia, para mostrar a sua saliva de ódio e de morte. Que Lula e Boric não sejam – e não serão – Volodymyr Zelensky e Vladimir Putin, mas ouvindo os sussurros do povo indignado e a luz dos mortos que sempre nos rondam com seus exemplos rebeldes, unifiquem a América numa só voz de concerto, para que nossos países tenham mais amigos comuns do que inimigos explícitos.
*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).