O lugar das vivências humanas

Imagem: Engin Akyurt
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por GERSON ALMEIDA*

Considerações sobre a pedagogia de Paulo Freire

O filósofo Ernani Maria Fiori definiu Paulo Freire como “um pensador comprometido com a vida, que não pensa ideias, pensa a existência”. Uma forma sensível e arguta de tratar a obra de quem jamais pensou a vida de forma dissociada do mundo, o lugar das vivências humanas.

Como o pedagogo da liberdade e da autonomia, ele se opôs à ideia de que nossa vida seja algo previamente traçado e independa de como agimos e pensamos. Para Freire, ao contrário, a vida é “algo que precisa ser feito e cuja responsabilidade não posso me omitir”.

Esta é a razão pela qual Paulo Freire considera o processo de aprendizado como não restrito às salas de aulas, por mais relevantes que elas sejam, pois é vivendo que aprendemos e ganhamos consciência do mundo. A vida, para ele, é um “texto para ser constantemente “lido”, interpretado, “escrito” e “reescrito”, num processo de conhecimento que só pode ser plenamente realizado ao agir no mundo. É assim que nos constituímos como ser humano.

Se agir no mundo é a forma de pensarmos e tomar consciência de nós mesmos e da sociedade em que vivemos, esse mundo só pode ser compreendido como a interação da sociedade e da natureza, na qual é realizado um permanente processo de criação e recriação, da natureza, da sociedade e dos indivíduos.

Ao pensar a vida como permanente criar e recriar, a pedagogia de Paulo Freire age como um verdadeiro aríete contra o “a ideologia fatalista e imobilizante que anima o discurso neoliberal”, que está sempre tentando nos fazer crer que “não há nada que fazer”.

Esse discurso da “desesperança”, contra o qual a sua pedagogia da liberdade se insurge é a ideologia neoliberal, fatalista e acomodada, que deseja suprimir a “força criadora do aprender” e, portanto, do transformar.

Enquanto a vida não acabar há história e, portanto, há futuro para ser construído, um futuro que pode ser “problemático, mas não inexorável”, pois o patrono da educação brasileira nos ensina que “onde há vida, há inacabamento” e, portanto, espaço para construção do novo, para transformações.

Para Paulo Freire, é da natureza dos seres humanos ir além dos condicionamentos, pois somos dotados da “força criadora do aprender” e, portanto, de transformar, pois o futuro nunca é algo dado, ele precisa ser construído. Contra a desesperança, portanto, a pedagogia freiriana afirma a esperança nas capacidades da liberdade da humanidade.

Mesmo que nossa existência seja condicionada por fatores culturais, de organização do poder e pelo ambiente natural, isto não significa que somos “determinados”. Nós somos capazes de perceber que “os obstáculos não se eternizam” e, portanto, são passíveis de superação pela ação coletiva e consciente no mundo.

Hoje, sequer a história natural é tida como o campo das determinações. Ela é compreendida como sendo sujeita a desvios, incertezas e bifurcações, o que faz dela, nas palavras do Prêmio Nobel de Química, Ilya Prigogine “uma criação de possibilidades, as quais algumas se realizam, outras não”.

Portanto, a verdadeira conexão entre história natural e história humana é a incerteza e a própria vida é o espaço pedagógico no qual tomamos consciência daquilo que somos, sem vida não há consciência social e percepção do mundo natural. É por isto que a consciência se constitui como consciência do mundo, conforme as palavras de Ernani Maria Fiori e ninguém se conscientiza separadamente dos demais, pois a consciência é um ato social.

Em um dos seus últimos escritos, Paulo Freire mostra a urgência de assumirmos a luta pelos princípios éticos fundamentais como o respeito à vida dos seres humanos, à vida dos outros animais, à vida dos pássaros, à vida dos rios e das florestas. Ele afirma não crer “na amorosidade entre mulheres e homens, entre os seres humanos, se não nos tornamos capazes de amar o mundo”. Para ele, assim, a ecologia ganha uma importância fundamental neste fim de século.

Não é por outra razão que a sua obra é um dos principais alvos desse momento de intolerância ao saber, à ciência, à proteção ambiental. Sua vida e sua obra são uma crítica radical ao fatalismo que tenta impor o mundo presente como o único possível.

A nau da insensatez que apoia a necropolítica em curso no país combate Paulo Freire com furor, pois a sua pedagogia é subversiva da ordem vigente, que só admite um ensino que ajude a perpetuar a obscena desigualdade social e a imensa degradação ambiental. Assim, é preciso amar a vida para compreender Paulo Freire.

*Gerson Almeida é mestre em sociologia pela UFRGS.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Chico Whitaker Ari Marcelo Solon Marilia Pacheco Fiorillo Michel Goulart da Silva Jean Pierre Chauvin Eduardo Borges Francisco de Oliveira Barros Júnior Henri Acselrad Marcus Ianoni Lincoln Secco Celso Frederico Remy José Fontana Igor Felippe Santos Paulo Capel Narvai Marcos Silva Bruno Machado Caio Bugiato Airton Paschoa Marjorie C. Marona Ronald León Núñez José Costa Júnior Slavoj Žižek Anselm Jappe Atilio A. Boron Luiz Carlos Bresser-Pereira Vinício Carrilho Martinez João Carlos Salles Fernando Nogueira da Costa Osvaldo Coggiola Antonino Infranca Ladislau Dowbor Juarez Guimarães Andrew Korybko Jorge Luiz Souto Maior Alexandre de Lima Castro Tranjan Henry Burnett João Adolfo Hansen Gabriel Cohn Paulo Martins Luiz Werneck Vianna Valerio Arcary Marcelo Módolo Luiz Bernardo Pericás Boaventura de Sousa Santos Ronald Rocha João Sette Whitaker Ferreira Dênis de Moraes José Luís Fiori Eleonora Albano Manuel Domingos Neto João Paulo Ayub Fonseca Marcos Aurélio da Silva Mariarosaria Fabris Marilena Chauí Paulo Nogueira Batista Jr Vanderlei Tenório Bento Prado Jr. Elias Jabbour Leonardo Sacramento Lucas Fiaschetti Estevez Carla Teixeira André Márcio Neves Soares Leonardo Boff Luiz Renato Martins Otaviano Helene Michael Löwy Ricardo Fabbrini Eugênio Bucci Fábio Konder Comparato Plínio de Arruda Sampaio Jr. Paulo Sérgio Pinheiro Francisco Fernandes Ladeira Leda Maria Paulani Flávio Aguiar Luís Fernando Vitagliano José Dirceu Michael Roberts José Raimundo Trindade Claudio Katz Luiz Marques Rafael R. Ioris Rodrigo de Faria Armando Boito José Geraldo Couto Benicio Viero Schmidt Daniel Costa Fernão Pessoa Ramos Jean Marc Von Der Weid Bruno Fabricio Alcebino da Silva Ricardo Abramovay José Machado Moita Neto André Singer Eugênio Trivinho Liszt Vieira Alexandre de Freitas Barbosa Anderson Alves Esteves Dennis Oliveira Rubens Pinto Lyra Walnice Nogueira Galvão Ronaldo Tadeu de Souza Gilberto Lopes Ricardo Antunes João Feres Júnior Paulo Fernandes Silveira Milton Pinheiro Denilson Cordeiro Chico Alencar Heraldo Campos Luis Felipe Miguel Andrés del Río Bernardo Ricupero Daniel Brazil Renato Dagnino Tales Ab'Sáber Priscila Figueiredo Alexandre Aragão de Albuquerque Mário Maestri Luciano Nascimento Leonardo Avritzer Gerson Almeida Antônio Sales Rios Neto Celso Favaretto Yuri Martins-Fontes Daniel Afonso da Silva Thomas Piketty Lorenzo Vitral Tadeu Valadares Flávio R. Kothe José Micaelson Lacerda Morais Manchetômetro Alysson Leandro Mascaro Érico Andrade Matheus Silveira de Souza Eleutério F. S. Prado Francisco Pereira de Farias Luiz Roberto Alves Julian Rodrigues Maria Rita Kehl Carlos Tautz Tarso Genro Berenice Bento Salem Nasser João Lanari Bo Everaldo de Oliveira Andrade Afrânio Catani Sandra Bitencourt João Carlos Loebens Marcelo Guimarães Lima Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Ricardo Musse Antonio Martins Vladimir Safatle Sergio Amadeu da Silveira Annateresa Fabris Eliziário Andrade Jorge Branco Kátia Gerab Baggio Samuel Kilsztajn Luiz Eduardo Soares Gilberto Maringoni

NOVAS PUBLICAÇÕES