Por HERIBALDO MAIA & DASSAYEVE LIMA*
Uma militância consequente tem a obrigação de fazer com que os horrores promovidos pela lógica manicomial nunca mais se repitam
Theodor Adorno insistia que uma boa educação tem por obrigação evitar que Auschwitz se repita. Há uma exigência moral, um imperativo ético e político das forças emancipatórias, em garantir que nada parecido com o Holocausto se repita. Apesar de Adorno não ter incluído nessa reflexão a questão colonial, tão bárbara quanto o Holocausto, essa injunção pode servir como suporte moral e horizonte ético para a práxis de uma esquerda que não tema dizer seu nome também no que diz respeito à questão manicomial.
O debate antimanicomial é uma pauta histórica da esquerda no mundo inteiro desde, pelo menos, o final do século XIX. Já nesse período, militantes anarquistas como Piotr Kropotkin e Louise Michel denunciavam instituições asilares como prisões, manicômios, sanatórios e casas de saúde. O movimento se intensifica na segunda metade do século XX, com nomes ilustres como Nise da Silveira, Dona Ivone Lara, Frantz Fanon, Franco Basaglia, Félix Guattari, Michel Foucault e outros. E, no entanto, trata-se hoje, provavelmente, de uma das pautas mais deixadas de lado dentre todas as lutas contra opressões, frequentemente invisibilizada até mesmo entre os que se propõem a lutar pela defesa dos direitos humanos.
Na atualidade, pouquíssimo se discute sobre as condições de cuidado e assistência em saúde mental, se não se tratasse de um tema urgente e fundamental. Se hoje dispomos de conceitos como o de interseccionalidade e análises que pensam a classe trabalhadora de maneira concreta, sem hierarquizar as pautas de opressão, nos parece que houve um notório “esquecimento” da “questão psiquiátrica” e uma consequente despolitização da saúde mental, com reverberações nos sujeitos que sofrem psiquicamente. Esse esquecimento representa um retrocesso, afinal pesquisadores e militantes, socialistas ou críticos, desenvolveram poderosas análises teóricas e contribuíram com movimentos sociais combativos capazes de levar o debate para a discussão pública.
Em uma entrevista de 2012, Mark Fisher já apontava também para esse esquecimento, e para a necessidade de superá-lo, ao notar que a cultura neoliberal, que individualiza a depressão e a ansiedade, se torna dominante ao mesmo tempo que o movimento “antipsiquiátrico” perdia força. Para Fisher, o declínio da antipsiquiatria estaria relacionado com a ascensão do “realismo capitalista”. A normalização da miséria faz parte do projeto de privatização do stress. A saída? Retornar às questões levantadas pela esquerda antipsiquiátrica do ciclo de lutas de 1968: “O que precisamos é de uma desnaturalização (e consequente politização) da doença mental. Precisamos de algo como um renascimento do movimento antipsiquiatria dos anos 1960 e 1970. Bem, não tanto um renascimento, mas uma reocupação do terreno no qual esse movimento lutou”.
Saúde mental como um terreno de luta
Atualmente, a depressão se destaca como o problema de saúde mais incapacitante do mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). O Brasil é um dos países mais afetados por esse cenário, bem como um dos recordistas entre pessoas que sofrem de ansiedade e esgotamento físico e mental ocasionado pelo trabalho (burnout). Refletindo essa situação, o Brasil é um dos maiores consumidores de Rivotril do mundo.
Apesar dessa verdadeira explosão de sofrimento mental no Brasil e no mundo, a atmosfera ideológica hegemônica trabalha no sentido de tomar tais questões como problemas meramente individuais. Na contramão da ideologia naturalizante e atomista, as melhores pesquisas, incluindo aqui os próprios relatórios e documentos da Organização Mundial da Saúde, têm apontado que tal fenômeno diz mais de nossa organização social do que de questões puramente biológicas ou individuais.
Parece haver uma negligência, inclusive por parte da esquerda, em constatar que a classe trabalhadora vivencia um massacre cotidiano e que isso se constitui como determinante social central na produção de sofrimento psíquico. Se por um lado o sofrimento faz parte da própria condição e experiência humana, por outro, isso não significa que não haja condições sociais que produzam e intensifiquem o sofrimento, condições estas que, sendo elas mesmas históricas e contingentes, podem ser superadas. E se podem, devemos superá-las, mas aí se trata de uma tarefa política, que só pode ser levada adiante coletivamente.
Não há bem-estar psíquico possível com o retorno da fome, altos índices de desemprego, violência policial sistemática, opressões sistemáticas de raça e gênero. A classe trabalhadora, em especial a população negra, ao se deparar com seu sofrimento, depende quase que exclusivamente dos serviços públicos de saúde mental. A qualidade dessa assistência é, assim, de fundamental interesse das trabalhadoras e trabalhadores. E, no entanto, esses serviços estão cada vez mais precarizados, sucateados e reduzidos, principalmente em decorrência da imposição de uma agenda de austeridade e de ajustes neoliberais. O teto de gastos, incorporado constitucionalmente pela “PEC da Morte”, estrangula o orçamento público na área social e produz um cinturão populacional de desassistência em saúde ou assistência precária.
A atualidade da pauta antimanicomial
É justamente a classe trabalhadora que diariamente é vítima de violações de direitos humanos nos serviços de saúde mental que ainda guardam em seu funcionamento a lógica manicomial. O vácuo de discussão pública sobre luta antimanicomial e a ausência de um olhar crítico e político sobre a saúde mental têm produzido todo tipo de absurdo. São as consequências nefastas de se abandonar as pautas antimanicomiais do horizonte das esquerdas.
Nas últimas semanas do ano de 2021, nos deparamos com dois episódios emblemáticos que evidenciam o quanto ainda precisamos caminhar para um debate público minimamente qualificado sobre saúde mental – e fazemos questão de enfatizar: a responsabilidade maior deve ser do campo da esquerda.
O primeiro episódio diz respeito ao surpreendente apoio, significativo, de parlamentares de partidos de esquerda a medidas que beneficiam diretamente comunidades terapêuticas. Vale lembrar que comunidades terapêuticas são equipamentos que, sem correr o risco de cometer qualquer exagero, configuram-se como “novos manicômios” controladas por grupos evangélicos, em geral neopentecostais, ligados ao setor mais reacionário e conservador dessas denominações.
Essas instituições se apresentam como “clínicas de reabilitação e recuperação” voltadas para pessoas que enfrentam problemas advindos do uso de álcool e outras drogas. No entanto, a grande maioria desses equipamentos não tem qualquer estrutura para funcionar como serviço de saúde, nem mesmo equipe especializada, e atuam, majoritariamente, sob uma perspectiva fundamentalista que visa a “cura” por meio da conversão religiosa.
Além disso, com frequência, os Relatórios de Inspeção em Comunidades Terapêuticas (CFP/MNPCT/PFDC/MPF) apontam que esses equipamentos atuam com diversas irregularidades e cometem violações sistemáticas de direitos humanos: privação de comida e itens de higiene, exclusão social e negação do direito de ir e vir, privação de comunicação com familiares ou entes queridos, tortura física e psicológica, intolerância religiosa, conversão de gênero e até mesmo trabalho análogo a escravidão.
Ainda assim, partidos como PT, PCdoB, PDT e PSB, que deveriam constituir o assim chamado “campo progressista”, votaram a favor não só da imunidade tributária para esses equipamentos, como também foram favoráveis à destinação de mais de R$78 milhões em verbas públicas a esses verdadeiros centros de violência. Enquanto isso, a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do Sistema Único de Saúde (SUS), conquista histórica das lutas populares e dos movimentos antimanicomiais, funciona hoje com um déficit alarmante de investimentos e de pessoal.
Segundo a Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME), as “comunidades terapêuticas” recebem mais investimento do Estado que toda a rede de CAPSad, Centros de Atenção Psicossocial voltados para pessoas com problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas. Os dados do Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas apontam que as “comunidades terapêuticas” recebem mais investimento público que todas as ações e serviços públicos de saúde mental do país em seus mais diversos níveis de complexidade, desde a atenção primária aos equipamentos de alta densidade tecnológica.
Logo no início da pandemia da covid-19, a OMS orientou a seus países signatários a expansão e intensificação dos investimentos públicos em saúde mental. Indo na direção contrária, o governo federal não apenas ameaçou revogar mais de 100 portarias que regem o funcionamento da RAPS, como diminuiu os investimentos em saúde mental e ampliou os investimentos voltados para comunidades terapêuticas.
Só pode ser causa de indignação e horror que, em meio a um cenário catastrófico para a saúde mental no Brasil, partidos que se reivindicam de esquerda estejam contribuindo com o desmonte de estruturas institucionais e políticas públicas resultados de esforços da própria esquerda. Mas ao apoiarem o financiamento público de equipamentos manicomiais é exatamente isso que fazem.
O segundo episódio que chama atenção, diz respeito à inauguração de um “parque de diversões” que tem como tema um manicômio abandonado, chamado “ABADOM SP”. Segundo os organizadores, trata-se de uma “experiência inovadora de horror”, onde os participantes podem vivenciar uma realidade macabra a partir da violência manicomial. Não é preciso muito esforço para entender o quanto essa proposta de entretenimento banaliza a histórica violência manicomial sofrida por pessoas que foram sequestradas pela lógica asilar.
Visando promover um ambiente assustador, baseado em uma instituição que historicamente serviu como depósito humano, gerida a partir da violência, maus tratos e violações de direitos humanos, os organizadores fazem associações infundadas e preconceituosas, reforçando a ideia do louco como sujeito violento e perigoso. Associam, sem nenhum pudor, a loucura com “canibalismo”, naturalizam a exclusão como resposta social ao sofrimento psíquico, banalizam a violência institucional praticada nesses espaços e chegam a ironizar a prática de tortura dos eletrochoques: “Um choquinho não doi [sic]… só para dar uma animada nos internos”.
A pergunta que se faz diante destes eventos é: por que esses episódios não estão sendo debatidos? Por que não há nenhuma nota pública ou ação efetiva no sentido de rechaçar esses retrocessos evidentes no campo da saúde mental e da relação social com a loucura? Por que a violência voltada para pessoas em sofrimento mental permanece tão invisibilizada? Por que mesmo no campo da esquerda é tão difícil compreender a luta antimanicomial como uma bandeira fundamental no combate às opressões? Quais os motivos levaram boa parte da esquerda a retroceder tanto em pautas históricas da luta pela emancipação humana?
A resposta para isso talvez seja simples, embora inadmissível: não há, atualmente, nenhum debate público sobre o tema e predomina hoje um completo apagamento de um debate que já foi forte no interior do nosso próprio campo político. As tentativas de politização do debate sobre saúde mental, embora existentes, são incipientes e não dão conta das complexas demandas do nosso tempo.
É necessário entender que a emancipação humana se destina a todos os seres humanos, e não a uma parte deles. Se algum grupo, por minoritário que seja, fica de fora de nosso projeto de emancipação, essa emancipação não será universal. Por isso mesmo é preciso reformular para nosso tempo a frase de Theodor Adorno: uma militância consequente tem a obrigação de fazer com que os horrores promovidos pela lógica manicomial nunca mais se repitam.
*Heribaldo Maia é mestrando em filosofia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
*Dassayeve Lima é psicólogo, mestre em psicologia e políticas públicas, administrador do perfil Saúde Mental Crítica.
Publicado originalmente no blog da Boitempo.