Cristãos herodianos

Imagem: Paulo Fávero
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Por ALEXANDRE ARAGÃO DE ALBUQUERQUE*

As alianças de líderes religiosos brasileiros com o poder neofascista-bolsonarista

Herodes Antipas (20 a.C. – 36 d.C.), filho de Herodes o Grande, ambos servidores do Império Romano, foi tetrarca da Galileia durante os eventos que levaram às execuções de João Batista e de Jesus de Nazaré. Antipas deu continuidade à tirania do seu pai, o qual ordenou a matança cruel dos meninos de até dois anos de idade, na cidade de Belém e suas redondezas, segundo o relato do evangelista Mateus (2, 16-17), após a passagem dos reis magos em visitação ao filho de Maria.

A este mesmo Herodes Antipas, Jesus de Nazaré, quando já em missão existencial de anúncio do seu pensamento religioso e social, dirigiu as seguintes palavras: “Ide e dizei àquela raposa que eu expulso demônios, efetuo curas, hoje e amanhã”. (Lc, 12:32). Portanto, é preciso ter bem presente que para Jesus, com sua práxis do cuidado para com aqueles mais empobrecidos e vulnerabilizados pelo sistema de poder imperial romano, Herodes não era concebido como um personagem qualquer, mas como uma raposa que salteia os galinheiros, ataca os desamparados, explora os desguarnecidos e despreza os abandonados. Não há no relato evangélico qualquer postura na qual Jesus tenha se deixado enganar e nem tampouco compactuar com o poder herodiano visando a “conveniências” ou a “esquemas” que o favorecessem em sua missão religiosa.

Em 1970, a teóloga alemã Dorothee Sölle cunhou o termo “cristofascismo” para definir uma postura política que combina cristianismo com fascismo, baseando-se no fato de as relações do partido nazista alemão com as igrejas cristãs haverem contribuído para o desenvolvimento do Terceiro Reich. Segundo o teatrólogo alemão Bertold Brecht, o fascismo seria uma fase histórica do capitalismo, uma sua expressão mais nua, mais truculenta, mais covarde e traiçoeira.

Para Magali do Nascimento Cunha, o cristofascismo é uma “teologia do poder autoritário” e está em alta no Brasil. São fiéis guiados por seus líderes, apregoando uma religião que contempla a cruz cristã apenas como uma espécie de talismã mágico, e não como o marco histórico da experiência de um homem nazareno, pobre, que foi violentamente torturado até a morte de cruz, destinada aos piores condenados pelo Império Romano, devido à sua pregação em favor da justiça, da partilha dos bens, da igualdade e da fraternidade entre os humanos. Na verdade, o Jesus destes fiéis é um Jesus a-histórico, um mago operador de milagres, um Jesus espiritualizado e sentimentalizado, fiel às necessidades particulares de cada um.

Ainda segundo Magali, no tempo presente brasileiro é possível identificar abertamente posturas semelhantes ao que ocorreu ao tempo do nazismo alemão, da parte de movimentos de igrejas e de suas lideranças, as quais fornecem apoio aberto a Bolsonaro com suas políticas de intolerância, de violência e de ódio, tendo como ponto de unidade com o bolsonarismo a pauta dos costumes conservadores da moral cristã, o alinhamento automático ao dogma da hierarquia eclesial representando o Deus todo-poderoso, além da luta contra o comunismo para garantir a vitória do Reino do Deus cristão. Como dado empírico, registramos as manifestações públicas de apoio intensivo, da comunidade terapêutica Fazenda da Esperança, a Jair Bolsonaro, documentadas em redes sociais e em televisão, expressas pelo frade franciscano alemão Hans Stapel, fundador da referida comunidade, as quais iremos comentar brevemente ao longo desta nossa breve reflexão.

É importante evidenciar que o fascismo, como uma doutrina política, ancora-se na devoção a um líder todo-poderoso, mitificado pela manipulação ideológica que busca a homogeneização de um povo por meio de ideais nacionalistas e militaristas, de forma totalitária, impondo o domínio do líder e de seu grupo, numa autoridade sem limites, com poderes de controle da vida pública e da vida privada. Não há diversidade de ideias e comportamentos, apenas uniformidade de pensamento e costumes. Para tanto desenvolve uma prática violenta, incitando agressões contra todos seus opositores que ele declara como sendo inimigos do Estado. Consequentemente, o fascismo é o grande apoiador e promotor de violências, seja por ações de indivíduos ou de milícias paramilitares, uma ideologia que se amplia dia após dia com a chegada do bolsonarismo ao poder no Brasil, em 2019.

São fartos os vídeos públicos que documentam o pensamento político de inspiração fascista de Bolsonaro. Por exemplo, quando categorizou a Direção da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) como “a parte podre da Igreja Católica”; quando em palestras para a Hebraica no Rio de Janeiro em 2017, durante a campanha à presidência da República, referindo-se às comunidades quilombolas, adotou a unidade de medida “arroba”, utilizada para pesar animais de abate, ao debochar dos indivíduos integrantes daquelas comunidades; ao ser favorável à tortura, afirmando em 1999: “Pau-de-arara funciona. Sou favorável à tortura. Tu sabe disso”; no processo golpista de aceite do impeachment de Dilma Rousseff, em 17 de abril de 2016, sua declaração de voto foi a seguinte: “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (oficialmente condenado pelo Estado Brasileiro pelo crime de tortura), o pavor de Dilma Rousseff”.

Sendo assim, logo no início do seu governo, Bolsonaro anunciou, em 17 de março de 2019, num jantar com representantes da extrema direita estadunidense, haver chegado ao poder para levar adiante um projeto de desconstrução de inúmeras conquistas nacionais. Afirmou: “O Brasil não é um terreno aberto onde iremos construir coisas para o nosso povo. Nós temos de desconstruir muita coisa”. Destruir as conquistas sociais das políticas progressistas dos governos passados: Universidades Públicas, Planos de carreira dos Servidores Públicos, Proteções Ambientais, Política de Valorização do Salário Mínimo, Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Luz para Todos, Direitos Trabalhistas, Samu, Farmácia Popular, UPA’s 24 horas, SUS etc. Além da entrega do patrimônio público (Petrobrás, Eletrobrás) ao capital internacional financeiro.

Como pequena, mas concreta, exemplificação desta destruição, no primeiro trimestre de 2022, já no quarto ano do governo bolsonarista, a renda familiar dos brasileiros e brasileiras desabou para o menor nível dos últimos 20 anos. O resultado aponta para 77,7% de famílias endividadas. O agravante é que estas famílias estão se endividando não para pagar viagens de férias, ou reforma da casa, ou compra de bens eletrodomésticos. Elas estão se endividando para comer. Ou seja, com Bolsonaro e seus generais, o Brasil recuou a um passado sombrio de pobreza, miséria, desnutrição e fome. Algo que havia sido superado na primeira década do século XXI. Atualmente, segundo a PNAD, são 20 milhões de brasileiros que sofrem pela fome diária. Um contingente muito maior do que os famintos da Galileia nos tempos de Jesus de Nazaré.

Neste contexto político bolsonarista, e partindo à frente das entidades religiosas católicas, em 19 de junho de 2019, a Fazenda da Esperança acolheu efusivamente,  por toda a comunidade religiosa, em sua sede, localizada no município de Guaratinguetá – SP, dentro de sua capela oficial, Jair Bolsonaro, Michele Bolsonaro e Osmar Terra (à época ministro da Cidadania) sob o comando do frei Hans.

A Fazenda da Esperança é uma comunidade terapêutica, fundada em 1983, pelo referido frei e pelo jovem Nelson Giovanelli, tornando-se posteriormente uma associação de fiéis, reconhecida pela autoridade da Igreja Católica, denominada Família da Esperança, cujo foco consiste na recuperação de dependentes químicos, principalmente do álcool e de drogas entorpecentes. O método de recuperação centraliza-se em três pontos: a espiritualidade cristã, por meio da qual os recuperandos incorporam valores de fraternidade; convivência, mediante a inserção na comunidade terapêutica, pautada no respeito, na responsabilidade e na solidariedade; trabalho, como processo pedagógico, por meio do qual se aprende a responsabilidade, readquirindo autoestima e força da vontade.

Da referida visita, pelo menos duas comunicações no vídeo oficial que cobriu o evento apresentam-se com bastante relevância para a nossa perspectiva. Primeiramente, quando concluída a cerimônia na capela, a repórter declarou a seguinte sentença: “Depois dos momentos de graça que vivemos dentro da capela aqui do centro masculino, o presidente Jair Bolsonaro com sua esposa e comitiva foram recepcionados pelas irmãs clarissas aqui no Mosteiro Mater Christi”. Portanto, não se tratou de um momento qualquer, mas de um evento especial, um momento de graça, segundo a orientação teológica por meio da qual essa comunidade se encaminha. A graça é sempre um dom de Deus, algo que o Todo-poderoso distribui gratuitamente a seus fiéis. É com esta dimensão espiritual que os participantes da cerimônia do encontro com Bolsonaro elaboram suas compreensões e convicções sobre aquele momento.

E ao final do vídeo, após a visita ao Mosteiro, o frei Hans expressou-se da seguinte forma: “Sem dúvida, foi um momento muito especial. Um reconhecimento da parte política. Também fiquei tocado com a sensibilidade com que ele (Bolsonaro) tratou as irmãs, que um dia tinham escrito uma carta dizendo “parabéns” (pela vitória nas eleições) e prometendo as orações. Ele veio para agradecer. Se emocionou muito com a bênção que as irmãs cantaram para ele. Foi um momento divino”. Portanto este momento especial se revestiu de uma força simbólica muito grande para todos integrantes da Fazenda na medida em que foi definido pelo religioso fundador da comunidade terapêutica como “um momento de Deus”. Não há dúvidas, como disse o frei. Ou seja, trata-se de uma questão mais de fé e menos de razão.

Duas outras publicações relativas ao relacionamento entre o bolsonarismo com a Fazenda da Esperança, na pessoa do frei Hans Stapel, podem ajudar na reflexão. Primeiramente, uma publicação do instagram de Michelle Bolsonaro, datada do dia 11 de novembro de 2020, registrando a visita que o frei Hans Stapel fez ao casal Bolsonaro, em Brasília, em plena crise da pandemia da Covid-19,  na qual registrava-se um total, até aquela data, com cerca de 175 mil pessoas mortas. Diante do descaso do governo Bolsonaro, o Senado Federal, em 13 de abril de 2021, veio a instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar as responsabilidades e eventuais falcatruas cometidas por autoridades federais na condução da política de combate à pandemia.

Em seu instagram, Michelle publicizava: “Hoje recebi a visita do Frei Hans Stapel, fundador da Fazenda da Esperança de Guaratinguetá – SP. Entidades como a Fazenda da Esperança fazem a diferença na vida desses brasileiros que necessitam de ajuda”. Quanta contradição da primeira-dama: famílias inteiras necessitando de ajuda para o combate da covid-19  (até hoje, 22 de maio de 2022, já faleceram 667 mil brasileiros), e à época os executores da necropolítica bolsonarista, de forma intencional, fizeram da pandemia uma fonte de negócios escusos, como tão bem demonstrou o relatório da CPI do Senado, aprovado em 26 de outubro de 2021.

Conforme relatos de pessoas abalizadas, que garantimos o anonimato da fonte, a referida visita ao casal Bolsonaro não foi resultado de uma definição da coletividade dirigente da Fazenda da Esperança, causando grande incômodo em diversos membros da comunidade terapêutica, como em integrantes de outros movimentos cristãos católicos que lhe são simpáticos e apoiadores. Por exemplo, DHS afirmou que “essas fotos postadas no instagram da Michelle foram demais para nós, porque não sabíamos de nada, ficamos bastante desapontados”.  EP, outro apoiador da Fazenda, registrou: “Eu irei confrontar o frei Hans na primeira oportunidade que eu tiver, porque ele deveria respeitar antes de tudo o Ideal a que pertence”.  E ainda um outro, assim se expressou: “É tudo muito novo para nós aqui, mas sei que quem cala, consente”.

Em 26 abril deste ano, o jornal Folha de São Paulo publicou o estudo do CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e da ONG Conectas Direitos Humanos no qual as comunidades religiosas, no governo Bolsonaro, viraram a principal terapia de dependentes químicos, mesmo sem controle nem avaliação sobre resultados atestados. Conforme o estudo, as comunidades terapêuticas religiosas “recebem grande volume de verbas públicas, às vezes financiadas simultaneamente por várias esferas do poder federal, estadual, municipal e emendas parlamentares”, como é o caso da Fazenda da Esperança. Talvez, tais elementos, ajudem a compreender melhor essa teia de relacionamentos.

Por fim, há a última manifestação pública do frei Hans Stapel em apoio intensivo a Jair Bolsonaro por ocasião da audiência presidencial com lideranças católicas realizada no último dia 18/05, às 16h00, no Palácio do Planalto. Na conclusão de seu discurso de um pouco mais de oito minutos, Stapel disse a Bolsonaro: “Agradeço muito a sua coragem de defender a vida. Estamos juntos”.

Ocorre que, cinco dias antes dessa manifestação pública de Hans Stapel, em 13 de maio, num evento de formatura da Academia da Polícia Militar do Barro Branco (SP), Bolsonaro bradou em alto e bom som: “Meu grande sonho como presidente da República é aprovar o excludente de ilicitude (licença para matar). Esse é o meu sonho. E peço a Deus para que isso venha a acontecer. Temos de diminuir a letalidade, mas é a do cidadão de bem, e não a da bandidagem”. Ou seja, para os amigos, a vida; para os inimigos, a licença para matar, como ocorre nas várias ditaduras, como ocorreu com Jesus de Nazaré, considerado bandido por Herodes.

Diante deste mais recente apoio público, na referida cerimônia, do fundador da Fazenda da Esperança a Bolsonaro, uma nova remessa de reações apresentaram-se por parte de alguns dos seus companheiros e companheiras de caminhada espiritual. PR expressou-se assim: “Impressionantemente triste. Como é que uma pessoa consegue conciliar o modus operandi de Bolsonaro com a mensagem cristã? Inclusive por se tratar de uma pessoa instruída com experiência internacional. Talvez o caminho seja interpelar o Papa Francisco”. CI comentou: “Bolsonaro deixa seus seguidores nus. Frei Hans está nu, como todos aqueles que, ainda hoje, apoiam Bolsonaro, com todas as evidências de ações e de falas indecorosas e imorais do seu governo”. LM afirmou: “É inacreditável mesmo. Chocante alguém ainda defender, abençoar, legitimar as nefastas ações desse governo genocida”. MS manifestou-se: “É uma perda, considerando o bem que a Fazenda pode fazer à sociedade. Isto requer a absoluta necessidade de independência das obras de caráter religioso com a relação com ideologias políticas”. GP escreveu: “É assim. Ninguém da direção tem coragem de enfrentar o Frei e muitos outros também fazem o mesmo. Será que o fim justifica os meios?”. EL disse: “Meu Deus! Nem tenho o que dizer. Isso é inadmissível. Será que o frei conseguirá acordar?”. FR acrescentou: “Decepção total”. DHS concluiu assim: “Estamos sem palavras, boquiabertos. Não será fácil daqui pra frente para a obra. Há que ter uma reviravolta pessoal para encontrarmos o ponto que nos une. Não será fácil!”.

Em artigo recente no site Brasil 247, a filósofa Márcia Tiburi, vivendo em auto-exílio, após sofrer ameaças de morte de bolsonaristas, afirmou que o fascismo, como expressão máxima do capitalismo (como afirmou Brecht, vide acima) é movido pelo ódio ao inimigo. O ódio é o método que permite tratar tudo como mera coisa (reificação da vida). No mundo fascista, não deve haver abertura para o outro diferente e vulnerabilizado, para que a violência simbólica e real possa estar garantida e, com ela, a submissão e a desigualdade. Não há amor no fascismo. Ele é todo uma capitalização do ódio. Portanto, devemos nos perguntar da nossa capacidade de desenvolver um amor inteligente, maduro e corajoso, que não se coadune com o fascismo, mas que seja capaz de fazer-lhe o devido enfrentamento. Da capacidade de dar resposta a este desafio, depende o nosso futuro. Este é o nosso escopo político.

*Alexandre Aragão de Albuquerque é mestre em Políticas públicas e sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).

 

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