O “projeto de nação” dos militares

Imagem: João Nitsche
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MANUEL DOMINGOS NETO*

Militares usurpam a soberania popular sem medo de ir para a cadeia

A Força Terrestre se apresenta como “braço forte, mão amiga”. Braço e mão de quem? Não seriam da sociedade brasileira. Que sentido faria o braço e a mão dos brasileiros anunciarem amizade aos brasileiros?

O slogan é falacioso. O Exército é do Estado, não do povo. Tenta, inclusive, conduzir o Estado, imiscuindo-se em suas entranhas e negócios. Ao povo, cumpre pagar os custos, entregar seus filhos aos comandantes e se proteger como puder.

Estado e sociedade sempre foram entes com dificuldade de conciliação. Estado é domínio que se exerce sobre a sociedade, explicou Maquiavel, dando origem ao pensamento político moderno. Tem vontade própria, não traduz o desejo coletivo.

Quando o princípio dinástico perdeu legitimidade, entrou em voga a ideia de que o poder deve emanar do povo. A legitimação do Estado passou a ser conferida por uma comunidade abstrata, a nação.

Militares brasileiros apresentaram nos últimos dias um “projeto de nação”. Não se deram conta da ilegalidade perpetrada. Listaram proposições sinistras, sem um pingo de amor ao povo. Curvaram-se diante de ricos e poderosos. Ignoraram princípios constitucionais.

Não me aterei, aqui, ao festival de horrores exposto. Trata-se de proposta saudosa do tenebroso tempo colonial. Registro que não encontrei novidades. A maioria dos pontos arrolados está em curso. Alguns, inclusive, com apoio da esquerda desavisada, como a que pretende, através de “escolas cívico-militares”, converter crianças em janízaros.

Prendo-me a uma questão de base: como os militares arranjam autoridade para ditar os rumos da sociedade? Fazem isso impunemente desde que mandaram Pedro II morrer fora de casa.

A petulância não deriva apenas da posse das armas. A violência precisa ser revestida de justificativas “nobres”. A permissividade dos militares tem lastro no aparelho de Estado e na fragilidade das reações populares.

O Estado brasileiro nasceu assenhoreado por poucos. É patriarcal e racista. Mantem a sociedade na taca. Nunca aspirou soberania efetiva, sempre obedeceu aos senhores do mundo. Criou instrumentos de força que correspondem aos seus desígnios. As corporações armadas retratam sua índole.

A sociedade, por sua vez, nunca foi mobilizada para alterar o Estado. Combate pontualmente aspectos de sua dominação perversa. A última Constituinte enalteceu a cidadania, mas não mudou o Estado. Deixou intactos aparelhos fundamentais para a submissão da sociedade. Os instrumentos de força permaneceram com seus papeis tradicionais. No caso das corporações militares, o dilema existencial de atuar como polícia e como defesa externa restou intocado.

A Carta atribuiu ao militar a missão de defesa da pátria, ou seja, da nação. Por estes termos, tanto é possível designar o Estado como a sociedade. A expressão “Estado nacional” é ainda mais ardilosa: remete a um domínio sobre a sociedade exercido com seu consentimento.

A nação nunca foi conceituada de forma convincente. Ernest Renan disse que seria uma “escolha cotidiana”; Otto Bauer disse que seria uma comunidade unida pela promessa de destino comum para todos. Benedict Anderson disse que seria uma “comunidade imaginada”…

A nação é misteriosa e encantadora porque remete ao passado longínquo e ao futuro desconhecido. Tanto canalhas como pessoas honestas falam em nome desta comunidade pela qual as pessoas matam e morrem.

Depois de Mussolini, Hitler e Franco, o “nacionalismo” virou coisa feia na Europa, mas em terras colonizadas pelo europeu, persistiu virtuoso. Esquerda e direita proclamam-se nacionalistas. Passa da hora de compreendermos que Estado não é nação. Nação é a sociedade. Braços armados do Estado não exprimem vontade coletiva. Exprimem desígnios de um Estado que, mantendo o legado colonial, agride a sociedade.

Enquanto prevalecer a confusão conceitual, pedantocratas em uniforme, como se dizia no tempo em que os enfileirados mandaram o Imperador morrer fora de casa, tentarão assenhorear-se dos destinos do povo.

Escreverão “projetos de nação” e ditarão “objetivos nacionais”. Usurparão a soberania popular sem medo de ir para a cadeia.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC/UFF, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e ex-vice-presidente do CNPq.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Alysson Leandro Mascaro José Micaelson Lacerda Morais Bruno Machado Luiz Werneck Vianna José Luís Fiori Leda Maria Paulani Caio Bugiato Maria Rita Kehl Gerson Almeida Gabriel Cohn Marilena Chauí Francisco Fernandes Ladeira Alexandre de Freitas Barbosa Lorenzo Vitral Érico Andrade Heraldo Campos Daniel Afonso da Silva Manuel Domingos Neto Antônio Sales Rios Neto João Adolfo Hansen Dennis Oliveira Marilia Pacheco Fiorillo Francisco de Oliveira Barros Júnior Juarez Guimarães Osvaldo Coggiola Tadeu Valadares Salem Nasser Luiz Carlos Bresser-Pereira Samuel Kilsztajn Alexandre Aragão de Albuquerque Gilberto Maringoni Eugênio Bucci Marcelo Módolo Annateresa Fabris Atilio A. Boron Kátia Gerab Baggio Paulo Fernandes Silveira Eugênio Trivinho Paulo Capel Narvai Bento Prado Jr. Luiz Marques Sergio Amadeu da Silveira Igor Felippe Santos Jorge Luiz Souto Maior Ladislau Dowbor José Raimundo Trindade Ronaldo Tadeu de Souza Eduardo Borges Thomas Piketty Benicio Viero Schmidt Jean Marc Von Der Weid Jean Pierre Chauvin André Márcio Neves Soares Eliziário Andrade Ricardo Antunes José Geraldo Couto João Lanari Bo Ricardo Abramovay Francisco Pereira de Farias Lincoln Secco Carla Teixeira Remy José Fontana Luis Felipe Miguel Elias Jabbour Rubens Pinto Lyra Sandra Bitencourt Lucas Fiaschetti Estevez Fernão Pessoa Ramos Airton Paschoa Leonardo Boff Ronald Rocha Daniel Brazil Marcos Silva Luciano Nascimento Boaventura de Sousa Santos Berenice Bento Luiz Renato Martins Luiz Eduardo Soares Vladimir Safatle Afrânio Catani Ari Marcelo Solon Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Eleutério F. S. Prado Antonio Martins Matheus Silveira de Souza Henry Burnett Flávio Aguiar Marcos Aurélio da Silva João Feres Júnior Vinício Carrilho Martinez Milton Pinheiro Eleonora Albano Flávio R. Kothe Mário Maestri Fábio Konder Comparato Dênis de Moraes Michael Löwy Tales Ab'Sáber Slavoj Žižek Everaldo de Oliveira Andrade João Paulo Ayub Fonseca Celso Favaretto Antonino Infranca Celso Frederico João Carlos Salles Claudio Katz Valerio Arcary Ronald León Núñez Daniel Costa Mariarosaria Fabris Alexandre de Lima Castro Tranjan Marjorie C. Marona Denilson Cordeiro Luiz Bernardo Pericás Rodrigo de Faria Carlos Tautz Tarso Genro Ricardo Fabbrini José Dirceu Paulo Martins Julian Rodrigues Otaviano Helene Michel Goulart da Silva Henri Acselrad Priscila Figueiredo Walnice Nogueira Galvão Alexandre Juliete Rosa Plínio de Arruda Sampaio Jr. Chico Alencar Andrés del Río Paulo Nogueira Batista Jr Luiz Roberto Alves Fernando Nogueira da Costa Bruno Fabricio Alcebino da Silva Liszt Vieira Marcus Ianoni Yuri Martins-Fontes José Costa Júnior Luís Fernando Vitagliano Michael Roberts Chico Whitaker Renato Dagnino João Carlos Loebens André Singer Ricardo Musse Paulo Sérgio Pinheiro Marcelo Guimarães Lima Andrew Korybko Anselm Jappe João Sette Whitaker Ferreira Jorge Branco Manchetômetro Leonardo Avritzer Vanderlei Tenório Gilberto Lopes José Machado Moita Neto Rafael R. Ioris Armando Boito Leonardo Sacramento Bernardo Ricupero

NOVAS PUBLICAÇÕES