Por MANUEL DOMINGOS NETO*
Militares usurpam a soberania popular sem medo de ir para a cadeia
A Força Terrestre se apresenta como “braço forte, mão amiga”. Braço e mão de quem? Não seriam da sociedade brasileira. Que sentido faria o braço e a mão dos brasileiros anunciarem amizade aos brasileiros?
O slogan é falacioso. O Exército é do Estado, não do povo. Tenta, inclusive, conduzir o Estado, imiscuindo-se em suas entranhas e negócios. Ao povo, cumpre pagar os custos, entregar seus filhos aos comandantes e se proteger como puder.
Estado e sociedade sempre foram entes com dificuldade de conciliação. Estado é domínio que se exerce sobre a sociedade, explicou Maquiavel, dando origem ao pensamento político moderno. Tem vontade própria, não traduz o desejo coletivo.
Quando o princípio dinástico perdeu legitimidade, entrou em voga a ideia de que o poder deve emanar do povo. A legitimação do Estado passou a ser conferida por uma comunidade abstrata, a nação.
Militares brasileiros apresentaram nos últimos dias um “projeto de nação”. Não se deram conta da ilegalidade perpetrada. Listaram proposições sinistras, sem um pingo de amor ao povo. Curvaram-se diante de ricos e poderosos. Ignoraram princípios constitucionais.
Não me aterei, aqui, ao festival de horrores exposto. Trata-se de proposta saudosa do tenebroso tempo colonial. Registro que não encontrei novidades. A maioria dos pontos arrolados está em curso. Alguns, inclusive, com apoio da esquerda desavisada, como a que pretende, através de “escolas cívico-militares”, converter crianças em janízaros.
Prendo-me a uma questão de base: como os militares arranjam autoridade para ditar os rumos da sociedade? Fazem isso impunemente desde que mandaram Pedro II morrer fora de casa.
A petulância não deriva apenas da posse das armas. A violência precisa ser revestida de justificativas “nobres”. A permissividade dos militares tem lastro no aparelho de Estado e na fragilidade das reações populares.
O Estado brasileiro nasceu assenhoreado por poucos. É patriarcal e racista. Mantem a sociedade na taca. Nunca aspirou soberania efetiva, sempre obedeceu aos senhores do mundo. Criou instrumentos de força que correspondem aos seus desígnios. As corporações armadas retratam sua índole.
A sociedade, por sua vez, nunca foi mobilizada para alterar o Estado. Combate pontualmente aspectos de sua dominação perversa. A última Constituinte enalteceu a cidadania, mas não mudou o Estado. Deixou intactos aparelhos fundamentais para a submissão da sociedade. Os instrumentos de força permaneceram com seus papeis tradicionais. No caso das corporações militares, o dilema existencial de atuar como polícia e como defesa externa restou intocado.
A Carta atribuiu ao militar a missão de defesa da pátria, ou seja, da nação. Por estes termos, tanto é possível designar o Estado como a sociedade. A expressão “Estado nacional” é ainda mais ardilosa: remete a um domínio sobre a sociedade exercido com seu consentimento.
A nação nunca foi conceituada de forma convincente. Ernest Renan disse que seria uma “escolha cotidiana”; Otto Bauer disse que seria uma comunidade unida pela promessa de destino comum para todos. Benedict Anderson disse que seria uma “comunidade imaginada”…
A nação é misteriosa e encantadora porque remete ao passado longínquo e ao futuro desconhecido. Tanto canalhas como pessoas honestas falam em nome desta comunidade pela qual as pessoas matam e morrem.
Depois de Mussolini, Hitler e Franco, o “nacionalismo” virou coisa feia na Europa, mas em terras colonizadas pelo europeu, persistiu virtuoso. Esquerda e direita proclamam-se nacionalistas. Passa da hora de compreendermos que Estado não é nação. Nação é a sociedade. Braços armados do Estado não exprimem vontade coletiva. Exprimem desígnios de um Estado que, mantendo o legado colonial, agride a sociedade.
Enquanto prevalecer a confusão conceitual, pedantocratas em uniforme, como se dizia no tempo em que os enfileirados mandaram o Imperador morrer fora de casa, tentarão assenhorear-se dos destinos do povo.
Escreverão “projetos de nação” e ditarão “objetivos nacionais”. Usurparão a soberania popular sem medo de ir para a cadeia.
*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC/UFF, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e ex-vice-presidente do CNPq.