Por EUGÊNIO BUCCI*
As “capas promocionais” atentam contra os velhos bons costumes da imprensa
Num domingo, o respeitável matutino O Estado de S. Paulo chegou aqui em casa com uma sobrecapa publicitária. Você sabe do que estou falando: uma folha de publicidade encobre a primeira página do jornal; no lugar onde deveriam estar as notícias mais importantes do dia, só o que se vê é um anúncio. Vem acontecendo muito isso ultimamente.
Antes, seria impensável. A simples hipótese de que uma propaganda pudesse acarpetar toda a primeira página despertaria a fúria da redação. Fotógrafos, repórteres e editores – sem falar nos contínuos, nos office boys, no pessoal da gráfica e nos donos – se dariam por ofendidos em seu brio profissional. “Onde já se viu?”, eles se aprumariam. “A nossa primeira página não está à venda!”
Agora, é normal. Vira e mexe, ao tirar o exemplar do Estadão do saquinho plástico (azulzinho ou amarelo), a gente dá de cara com essa primeira página não jornalística, uma primeira página mercadológica. Um carimbo, no canto superior esquerdo, com letras vermelhas, maiúsculas e oblíquas, cuida de prevenir o público: “capa promocional”. No cabeçalho, até parece uma primeira página comum; lá está o logotipo em azul escuro, ou quase escuro, e lá estão também a data, o ano de fundação do periódico secular e o cavalinho em cinza com o arauto que, no século XIX, trombeteava as novidades. Do cabeçalho para baixo, no entanto, é tudo diferente: no lugar das manchetes, a mercadoria domina cada centímetro quadrado.
No domingo passado, a mercadoria da vez era uma grife de cuecas e roupas íntimas, interessada em aquecer as vendas por ocasião do dia dos namorados. Não sei o que acharam disso aqueles e aquelas que agora me leem (muito obrigado), mas, quanto a mim, bem, eu levei um susto. Para ser sincero, fiquei mesmerizado. Não consegui desgrudar minhas retinas fatigadas da fotografia em que um homem e uma mulher se abraçam, de olhos fechados. Na cena, em preto e branco, ambos estão quase nus, só o que lhes cobre as partes são sumárias roupas de baixo – com a marca do anunciante, claro. Fiquei olhando, olhando sem parar. A imagem prima pelo realismo, quase dá para ouvir os sussurros.
O meu susto, porém, não veio da seminudez supramencionada. Gente pelada se vê na mídia em toda parte, a toda hora, nas mais variadas conjunções (carnais, inclusive), sob os mais implausíveis pretextos. Eu não me surpreendo mais com nada disso, tampouco me assusto. Corpos descobertos povoam os outdoors, a televisão, a internet, os folhetos de informação médica e as vitrines de joalherias. O que me espantou, na manhã de domingo, foi a faixa etária dos modelos, já passados da terceira idade. Com todo o respeito, poderíamos dizer que ele e ela são idosos, o que não os impede de esbanjar sensualidade, paixão, ou, no vocabulário de Baruch de Espinosa, esta lascívia copulatória: “o desejo e o amor de unir os corpos”. Meu susto veio disto: eu realmente não esperava por esse erotismo geriátrico.
Mas adorei. Na indústria do entretenimento, não é comum que cenas calientes tenham como protagonistas garotas com mais de 17 anos e rapazes com mais de 25. O fetiche absurdo de que só há beleza em matéria nova se converteu num imperativo imperioso: exceção feita a algumas grifes de vinho, só o que é novo em folha tem valor comercial. Gostei de ver a desobediência a esse imperativo – e até achei atraentes as duas figuras. Em meio ao conservadorismo assexuado dos textos jornalísticos, vibrei com a libido de peles envelhecidas sequiosas por grudarem uma na outra. Em 1988, entrevistei a atriz Lélia Abramo, então com 77 anos. “O amor é uma aderência”, ela comentou, entre uma resposta e outra. Nunca esqueci. Publico só agora.
Eu sempre jogo fora todas as “capas promocionais”. Nem tomo conhecimento. Desta vez, guardei. Ela está aqui comigo enquanto escrevo. Fico olhando. Devo ter me identificado. Outro dia, ao fazer a barba, notei no espelho duas rugas na minha testa tristonha. Os vincos principiam logo acima do nariz, entre as sobrancelhas, e avançam na direção dos cabelos que já não tenho. São dois sulcos verticais, mais ou menos paralelos, como o Tigre e o Eufrates. Não quero aterrá-los, apagá-los, atenuá-los. Sinto orgulho dessas linhas. Vejo nelas alguma personalidade, além de muita história. Enrugado, fico melhor. Talvez até mais garboso, eu me animo, contemplando o apetite lúbrico que confere uma aura fugaz à minha “capa promocional” de estimação. Sempre soubemos que “amor é privilégio de maduros”, mas sempre calamos a respeito.
Há só mais uma coisinha que eu me atreveria a anotar aqui. A concupiscência do casal em preto e branco talvez tenha uma função metafórica: representa a dança de acasalamento temporã entre o jornalismo e a publicidade. Antes irmãos-rivais, os dois agora deram de se aconchegar em sofreguidão, na tentativa de salvar o negócio. Surgem às vezes enlaces promíscuos, mas vale a esperança. As “capas promocionais” atentam contra os velhos bons costumes da imprensa, mas tomara que compensem. Eu faço figa, embora essa expressão, “fazer figa”, seja, também ela, provecta.
*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de A superindústria do imaginário (Autêntica).
Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.