Por MARCOS AURÉLIO DA SILVA*
Apresentação do livro recém-lançado de Stefano G. Azzarà
Stefano G. Azzarà é seguramente um dos mais importantes críticos da cultura pós-moderna no país de Gramsci, ângulo através do qual tem examinado com especial argúcia os descaminhos que a esquerda italiana (e mesmo aquela europeia e ocidental) vem seguindo desde pelo menos a queda do Muro de Berlim. Todavia, esta é a primeira vez que o tema vem encimado em um título seu, como agora aparece através desta reunião de ensaios, o que se faz também como homenagem ao grande filósofo italiano Domenico Losurdo, com quem o autor colaborava na Universidade de Urbino e na Sociedade Internacional Hegel-Marx para o pensamento dialético.
Foi Domenico Losurdo, em um seminário de 2015 realizado na cidade de Nápoles ‒ a capital filosófica da Europa, sede do importante Istituto Italiano per gli Studi Filosifici ‒ dedicado a discutir o livro Democrazia Cercasi (Procura-se a Democracia) do mesmo Azzarà[1], quem propôs que a obra se intitulasse Adeus pós-modernismo[2]. No argumento de Losurdo, poderá ver o leitor no conciso, mas penetrante texto que introduz este volume, as tantas despedidas que a cultura política transformista pretendeu dar ao marxismo desde os eventos que puseram fim à Guerra Fria, todas a merecerem uma resposta à altura da energia crítica presente no livro do autor.
E é acerca deste livro que versa o primeiro capítulo da presente obra, intitulado “Para uma crítica político-filosófica do pós-modernismo”. Ele está organizado em torno da discussão da categoria de democracia moderna, de cuja crise o pós-modernismo é expressão cultural. Não se trata, porém, da mera noção fetichista de democracia, da democracia enquanto tal, mas de seu caráter histórico mesmo, expressão de um regime que, nesta condição, nasce, se desenvolve e morre, embora sua falência não signifique exatamente o advento da ditadura, emergindo dela o que talvez pudéssemos chamar formas compósitas pós-democráticas, como a de uma democracia autoritária. É o quadro do berlusconismo italiano, assinala o autor, definindo-o como um bonapartismo de novo estilo, adaptado às condições atuais, isto é, da sociedade do espetáculo.
Mas no que consistia essa democracia moderna que se esvaiu? Sufrágio universal e direitos formais, não há dúvida, mas acima de tudo direitos econômicos e sociais ‒ capazes de encaminhar a superação das três grandes discriminações, como o dissera Domenico Losurdo, de classe, de raça e de gênero[3] ‒, bem como a participação ativa dos interesses sociais, em condições de se auto-organizarem e fazerem-se representar na forma dos sindicatos, dos partidos políticos e no parlamento. Os progressos do pós-Segunda Guerra, estimulados pelas lutas conduzidas pelo partido de Gramsci e Togliatti na esteira da Revolução de Outubro e ainda como resultado da vitória sobre o nazifascismo, figuram como o ponto alto deste regime, mas o modo hegeliano de tratar a história de que se serve o autor ‒ que Lenin disse haver “muito de excelente”[4] ‒, convida a concluir que essa foi uma construção que remete já ao pós-1850.
É o tempo da formação dos últimos Estados nacionais europeus que, mesmo no interior de processos desiguais e combinados e assim permeados de lutas as mais dramáticas, terminam por responder à explosão da Revolução de 1789 – lembrou já a crítica de Gramsci ao historicismo de Benedetto Croce, que “prescinde do momento da luta”[5] − através da introdução progressiva e esticada no tempo, de processos reformadores que permitiram a difusão dos sistemas escolar, de saúde, das pensões, do contrato nacional de trabalho e do direito ao voto.
É esta mesma chave hegeliana, ou mais precisamente, o marxismo que se reconhece escoltado por Hegel ‒ autor que nada tem a ver com um suposto “consciencialismo”, lembra Losurdo na introdução, alertando contra uma leitura grotesca do filósofo alemão ‒, que o pós-modernismo pretende deixar para trás. Este último se apresenta, é certo, como expressão da crise do paradigma fordista, que na esteira de grandes mutações tecnológicas vê a fábrica decompor-se e conhece uma brutal regressão na forma das relações de trabalho, mas reflete igualmente a grande virada na geopolítica mundial que concluiu a Guerra Fria, dando lugar ao imperialismo planetário norte-americano.
E é assim que, no plano filosófico-cultural, surgem novas formas de consciência, hiperindividualistas e hipercompetitivas, a substituir as formas cooperativo-solidárias, marca do sindicalismo e dos grandes partidos de massa, também eles o sustentáculo da ideia, fortemente moderna, da possibilidade de encontrar um sentido no processo histórico e até mesmo de conduzi-lo a partir da razão humana. Encarnada na Itália pelo “pensamento fraco” de que fala Gianni Vattimo[6], trata-se daquela “mudança cultural” ou de “sensibilidade” cara a “autores como Foucault e Lyotard”, os mesmos que, ressaltando os “mecanismos infinitesimais” de poder e os “jogos de linguagem”, ungiram-se na irrestrita “aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico”[7].
E está aí o completo relativismo, a substituir a noção de totalidade historicamente estruturada e as oposições dialéticas de Hegel e Marx que a ela são inerentes, e assim também a “fé no geral progresso que anima as leis da história”, como era caro ao marxismo do início do século XX[8]. O mesmo relativismo que está na base da degeneração neoliberal da democracia moderna, agora reduzida à doxa televisiva e, mais recentemente, das redes sociais.
O segundo capítulo, “Restauração e revolução passiva pós-moderna no ciclo neoliberal: um transformismo intelectual de massa”, já publicado no Brasil como parte das comemorações pelos 25 anos da revista Crítica marxista, investiga estas transformações históricas a partir de uma perspectiva gramsciana que conta igualmente com forte acento hegeliano. É por exemplo notável a observação, tomada do caderno 13, de que “no movimento histórico não se volta nunca atrás”, ou ao menos não há “restauração in toto”[9], passagem com que Azzarà se associa à pesquisa do filósofo alemão Jan Rehmann acerca dos “nietzscheani di sinistra”, a demarcar a crítica do pós-modernismo na chave de uma revolução passiva, com a “particularidade de derivar imediatamente da cultura do ‘gauchismo’’’, mas tão carente de uma “iniciativa popular unitária” quanto aquelas às quais se referia Gramsci[10].
Bem vistas as coisas, não se trata exatamente de uma resposta do capital, mas que se articula com ela a partir de um movimento interno, pois o transformismo que marca a atual fase restaurativa está já inscrito e prefigurado no exasperado individualismo dos novos nietzscheanos. Não obstante, eis que é justamente por este critério de interpretação − capaz de compreender os elementos progressivos da revolução passiva sem que seja necessário exaltá-la “liricamente”, como advertiu Gramsci[11] −, que se evita o reducionismo de marcar como simplesmente reacionárias as lutas conduzidas por este campo.
O terceiro capítulo, “Apesar de Laclau: populismo e hegemonia na crise da democracia moderna”, é talvez o mais inovador para o leitor brasileiro. Ao menos se se pensa que trabalhos do campo de estudos sob exame, em debate na Europa já há alguns anos, e que só muito recentemente conheceram publicação entre nós. Estamos falando de A Razão Populista, de Ernesto Laclau[12], e Hegemonia e Estratégia socialista, de Laclau e Chantaul Mouffe[13]. Uma vez integrando a “perspectiva intelectual” que indaga o “conjunto de questões ligadas ao tema da pós-modernidade”[14], não poderia ser menos contundente o escrutínio a que Azzarà submete as formulações desses autores. A começar pelo “problemático” uso de Gramsci e do viés empregado ao conceito de hegemonia, reelaborado com vistas a tomar distância de Lênin e do marxismo, vale dizer, da “concepção classista” de sociedade, objetivando adequá-lo às “exigências da cultura pós-moderna”[15].
Não se trata de fazer tabula rasa do argumento, certamente um tanto desinformado, segundo o qual o “leninismo foi um empobrecimento alarmante do campo da diversidade marxista”[16], e assim dar de ombros a todo o conjunto de lutas agora em evidência ‒ a luta contra o racismo, a luta feminista, a luta ecológica e pacifista, entre outras. Trata-se, antes, de endereçar a ele uma crítica que, tomando como ponto de partida os desenvolvimentos de Losurdo em torno da teoria da luta de classes ‒ uma “teoria geral do conflito social”[17] ‒, põe em questão a operação de “desconstrução” que resultou deslocar o marxismo para o terreno polissêmico do pós-modernismo, quando se deveria proceder exatamente de modo inverso.
No centro desta operação, a filiação heideggeriana das formulações de Laclau e Mouffe, notadamente a denúncia da Vorhandenheit[18] e a distinção entre ser e ente. É através dela que os autores organizam a “transição do marxismo ao pós-marxismo”, uma mudança que “não é somente” de “conteúdo ôntico”, mas “também ontológica”, vale dizer, de “um novo paradigma ontológico”, já que os “problemas de uma sociedade globalizada e governada pela informação” – insistem Lacalu e Mouffe –, “são impensáveis no interior dos dois paradigmas” que governam o campo do materialismo histórico, “o hegeliano, e depois, o naturalístico”[19].
Cabe nos fixarmos por um momento neste ponto. Para Heidegger, o “conhecimento da coisa não se apresenta como visão ou justeza da visão”, tal qual emerge da “’metafísica ocidental’ desde Platão”, cuja teoria é o prelúdio do “transforma-se o mundo em imagem” e assim também o “homem em sujeito constituinte e producente”[20]. Esta metafísica “é na realidade uma física, um errar entre os entes”, que esquece “o ser e a verdade, que não é exatidão do representar, cálculo e domínio dos entes”, mas “desvelamento (a-letheia)”, e assim “abrir-se do ser através da linguagem”, a “casa do ser”[21]. E aí está o programa filosófico de Heidegger, organizado em torno do “enfraquecimento da essência do pensamento técnico e metafísico”, e da “ativação de um ‘pensamento nostálgico’, filosófico-poético, que passa pela busca de um suplemento de sentido na densidade da linguagem”, assim como pela busca da “pluralidade de sentidos” das “coisas”[22], precisamente o tour de force do pensamento pós-moderno.
É este o caminho através do qual Laclau se lança contra “o discurso da filosofia política” que desde Platão ‒ “o primeiro a instituí-lo” ‒ questiona o populismo nos “moldes bem delineados de uma comunidade racional”[23]. Assim é que, assinala a crítica de Azzarà, já tendo diluído a categoria de modo de produção e se dispensado da ideia de “interesse objetivo”, mas também sem compreender e ao mesmo tempo simplificando a dialética de Hegel, Laclau se lança em busca de uma teoria da hegemonia fundada na populismità, a rigor um retorno ao fundamento ‒ este sim ‒ ainda “naturalístico” da comunidade popular, entendida como compartilhamento de raízes e tradições.
Uma leitura que não ultrapassa o “dado natural e imediato do povo”, o dissera a crítica de Losurdo à esquerda populista[24] − não muito diferente daquela que, ainda nos anos setenta, e buscando as bases histórico-materialistas de uma ciência (crítica) do espaço, lançava Milton Santos à geografia cultural de extração francesa e norte-americana, que presas à “ótica de uma técnica ligada à cultura e não ao modo de produção”, chegaram ao ponto de “falsear completamente o debate” “sobre o subdesenvolvimento”[25]
E eis como se pode compreender a advertência de Azzarà segundo a qual Laclau termina por reafirmar a filosofia liberal da história, já que se apresenta muito severo diante das experiências do socialismo real, mas bem pouco crítico diante do caráter genocida e colonial do liberalismo. Um exemplo entre tantos da aplicação da categoria de totalitarismo ao “socialismo real”, da qual não por acaso Heidegger foi um primeiro formulador, demonstrou Azzarà em um artigo sobre o antissemitismo histórico do autor de Ser e Tempo, confirmado pela recente publicação dos Schwarze Hefte (Cadernos Negros) ‒ um antissemitismo não exatamente biológico, como na vulgata do Blut und Boden (Sangue e Solo), mas acima de tudo político, antibolchevique[26].
A despeito da aberta rejeição dos postulados do marxismo, a populismità ‒ que “pretende ser a lógica mesma do ser” ‒ concebe como seu o campo das lutas de esquerda, e nele atua por meio de uma série de inovações conceituais ou, ainda melhor, discursivas. Tomando como ponto de partida Jaques Derrida, e já informado da crítica heideggeriana da Vorhandenheit, o campo previamente visto como das grandes narrativas, governado pela determinação estrutural, é agora entendido como “permeado de indecidíveis”, com o que emerge a noção de indecibilidade, a dar novo sentido à relação da hegemonia[27].
E, uma vez que se pretende ler Gramsci como o autor de “uma dimensão da hegemonia” tornada “constitutiva da subjetividade” de “atores históricos” que já não se reconhecem “meramente” como “atores de classe”, toda relação hegemônica não é senão o produto de uma articulação contingente, considerada a “dimensão central da política”[28]. E é assim que, já apartada da “noção hegeliana” ou “marxista” de “classe universal’”, a relação de hegemonia só pode emergir de uma cadeia de equivalências em que “uma particularidade”, sem deixar de ser ela própria (os atores sociais são todos particularidades), transforma-se “na representação de uma universalidade que a transcende” ‒ com o que não pode ser nunca “uma conquista definitiva”, sendo, ao contrário, “sempre reversível”[29].
Deste modo é que o populismo, “uma série de recursos discursivos que podem ser utilizados de modo muito diversificados”, tem como seu “núcleo duro” os significantes flutuantes ou vazios[30]: um nome pode penetrar no conceito “de tal modo que no fim, passo a passo, o núcleo deixará de ser um conceito e se tornará um nome”, “um significante vazio”, momento em que surge “uma singularidade histórica” e “já não temos mais um agente setorial, tal como uma ‘classe’: temos um povo”[31]. Vargas, Perón, o populismo étnico europeu do século XIX e aqueles surgidos na década de 1980, como a Lega Nord italiana, mas também Lula, Chávez… e potencialmente Togliatti, não fosse ele dirigente de um “partido de militantes comunistas” (não fosse comunista demais, talvez quisesse dizer Laclau), o elemento impeditivo da constituição de um “significante vazio” capaz de articular uma “pluralidade de demandas”[32].
Na leitura de Azzarà, este conjunto de articulações discursivas ‒ ou a política como hermenêutica ‒ não tem como proteger o estado de saúde da democracia moderna, fundada na centralidade dos intelectuais orgânicos e ainda mais do partido, o “agente ontologicamente privilegiado”. Na medida em que a política hegemônica de Laclau (e Mouffe), engajada em uma crítica da concepção classista, se identifica com os limites do ontológico, ela não pode senão se colocar como o “grau zero da política”, aquela primeira “encrespadura” antagonista do real que permanece “naturalisticamente” fixada na superfície das coisas.
E eis como seria difícil partir destas formulações, a toda prova transpolíticas e transideológicas, para pensar a onda vermelha latino-americana das primeiras décadas deste século. Já o partido de Lula, insiste Azzarà, se reivindica herdeiro da tradição moderna a partir mesmo do próprio nome, enquanto foi o questionamento da Doutrina Monroe, base do clássico princípio da autodeterminação dos povos, mais importante para compreender o êxito dessas experiências ‒ e a despeito de todos os limites, acrescentaríamos ‒ do que os fenômenos pós-modernos de hibridização da política de que fala Laclau[33].
O quarto capítulo, “A virada soberanista do neoliberalismo eurófobo na Itália. Revolta populista contra a Grande Convergência e o emergir de uma democracia bonapartista pós-moderna”, volta ao atualíssimo tema do populismo de direita que se tornou governo. Sem deixar de lançar luzes para outras realidades (Trump, Bolsonaro), ele examina sobretudo a experiência italiana, que recentemente conheceu a ascensão da Lega Nord, partido de matrizes xenófobas e separatistas, ao governo nacional. Um processo que não por acaso se viabilizou através de uma arquitetura política que envolveu uma coligação com o Movimento 5 Stelle (M5S) do comediante Beppe Grillo, ele mesmo autoproclamado um não-partido, agora a angariar a simpatia de ex-comunistas ou eleitores do velho PCI.
Trata-se de uma nova fase da crise da democracia moderna e do bonapartismo up to date, já plenipotenciário em suas formas de desintermediação da política, com o enfraquecimento dos partidos, dos sindicatos e ainda a emergência dos clamores em torno de uma democracia direta a partir das redes sociais. Tudo embalado com uma crítica do parlamentarismo e do mundialismo que chega a assumir as tintas de um revival do euroasiatismo, conforme assinalou o autor em uma entrevista de 2017 que criticava certo frenesi da esquerda em torno da vitória de Donald Trump[34].
O contexto é aquele da crise de reprodução das sociedades ocidentais aberta com o esgotamento do fordismo, já marcado por revoltas de toda ordem: contra a casta dos partidos, contra a União Europeia, contra a ciência oficial, contra os meios de comunicação pré-digitais, contra a casta universitária, e assim por diante. Uma nova encarnação das crises orgânicas de que falou Gramsci, fazendo notar aquele tipo de situação, “delicada e perigosa”, em que a crise “das relações entre estrutura e superestrutura” leva à emergência das “soluções de força”, das “potências obscuras representadas pelos homens providenciais e carismáticos”, do reforço do poder da “burocracia (civil e militar), da alta finança, da Igreja e de todos os organismos independente das flutuações da opinião pública”[35]. E aqui está um grande insight do livro, nos pondo a refletir que a crise orgânica que agora sacode o Ocidente não pode ser corretamente compreendida se não se dispõe a examinar a “mudança cultural” que traz as marcas do pós-modernismo.
Mas a definir o quadro mais geral desta crise não é a simples “descrição espacializante dos fatos do discurso”[36], a singularidade social inscrita na heterotopia”[37], como diria o diferencialismo pós-moderno de impostação foucaultiana. As tendências de fundo deste processo devem ser antes buscadas na nova materialidade da geoeconomia e da geopolítica mundial, um desdobramento contraditório da globalização norte-americana a expor aquilo que Domenico Losurdo, referindo-se ao processo liderado hoje pelo socialismo chinês, insistiu ser começo do fim da “época colombiana” − esta categoria do geógrafo britânico Halford Mackinder, a marcar o ponto de partida da “grande divergência” histórica que cavou um “sulco profundo” entre o Ocidente colonialista e o resto do mundo[38].
E eis novamente a apurada formulação da categoria de luta de classe, concebida não apenas em seu sentido sociológico ou econômico, mas como uma reflexão em torno do conflito político enquanto tal, que pode assumir até formas institucionais sem que isso implique consequências negativas. Uma mudança notada já pelo último Engels, ao assinalar que as modificações na luta de classes do pós-1848 faziam da “conquista do direito ao voto universal, da democracia”, “uma das primeiras e mais importantes tarefas do proletariado militante”[39]. A mesma mudança, cabe notar, agora sustentada pelo socialismo chinês à escala global, a falar de uma “reforma democrática” das instituições internacionais como o caminho para forjar um mundo fundado “no respeito à soberania estatal” e na “escolha autônoma da via de desenvolvimento”[40]. Nos termos de Azzarà, um rigoroso “universalismo concreto”, que nada tem a ver com o “soberanismo particularista” agora em alta.
Assim é que chegamos ao tema do último capítulo, “Soberanismo ou questão nacional? Retorno do Estado hobbsiano e renascimento do social-chauvinismo na política hodierna”. Ele continua a refletir sobre os efeitos da crise orgânica da qual emerge o novo bonapartismo, mas agora fazendo notar a confusão que se instalou nos ambientes da esquerda europeia em torno da questão nacional. Os esquecimentos que esta questão conheceu no contexto da emergência do pós-modernismo, entregue a diferentes formas de niilismo nacional – seja concebendo a classe operária como totalidade irredutível, seja através da ênfase no indivíduo como subjetividade absoluta e desejosa de natureza nômade –, respondem certamente por este embaraço, a ponto de pôr uma parte da esquerda a confundir-se – e a confundir o tema clássico da questão nacional no marxismo − com o chamado soberanismo e até com as formas atuais de social-chauvinismo sustentadas pela direita.
Mas não menos importante nesta explicação é a assimilação do Estado a simples instrumento de classe – o inimigo estrutural, encarnação de todo o mal −, a rigor uma visão a-histórica do “espírito objetivo”, incapaz de compreender o Estado como um campo de força, insiste Azzarà. Avesso dialético deste conjunto de esquecimentos, mas também da mudança histórica associada à recolonização – até mesmo bélica − do mundo pelo Ocidente após a derrubada do Muro de Berlim, a crise orgânica se apresenta agora como ampla crise moral a atingir mesmo uma parte da esquerda, submetida a toda sorte de esterilização emotiva e assim envolta na espiral de agressividade posta pela ordem dominante (a ver a esquerda que rejeita a luta das mulheres, dos imigrantes, do movimento gay, equivocamente interpretadas como desligadas e até disfuncionais à luta do proletariado e das nações oprimidas[41]).
E é da mesma maneira que se apresenta a crítica de Azzarà à esquerda entusiasmada com o Brexit e a desagregação da União Europeia, uma ordem social (ou socioespacial, a rigor já uma segunda natureza, poderíamos dizer resgatando ainda uma vez o geógrafo Milton Santos[42]) que para o autor não responde simplesmente à configuração neoliberal e imperialista emanada dos Estados Unidos, posicionando-se, ao contrário, em muitos temas – do aquecimento global, do comércio internacional e até das intervenções militares –, em oposição a ela.
É esta mesma esquerda que, afastando-se da questão nacional do modo como ela emergiu no coração da Europa após a vitória bolchevique de 1917 – a aliança do proletariado com os setores médios para se opor à colonização do Tratado de Versalhes na Alemanha dos anos 20[43] −, termina por se permitir identificar, no limite mesmo conduzir alianças – transpolíticas e transideológicas, por supuesto − com a direita e a fração do capital que ela representa. Também aqui, Domenico Losurdo, ele mesmo acolhedor das tendências hodiernas para a formação de Estados Federativos (União Europeia, Alba bolivariana), e isto a despeito do reconhecimento das contradições aí presentes[44], teria dito: Adeus, pós-modernismo.
*Marcos Aurélio da Silva é professor do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Referência
Stefano G. Azzarà. Adeus pós-modernismo: populismo e hegemonia na crise da democracia moderna. Tradução: Marcos A. da Silva. Florianópolis, Ed. Insular, 2022, 294 págs.
Notas
[1] Azzarà, G. S. Democracia Cercasi. Dalla caduta del Muro a Renzi: sconfitta della sinistra, bonapartismo postmoderno e impotenza della filosofia in Italia. Roma: Imprimatur, 2014.
[2] Referência ao filme Adeus, Lênin!, dirigido por Wolfgang Becker, 2003.
[3] Losurdo, D. La lotta di classe. Una storia politica e filosofica. Roma: Laterza, 2013, p. 91.
[4] Lenin, V. I. Cadernos Filosóficos. Trad. Paula Almeida. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 320. Lenin se refere à introdução que Hegel escreve à sua Filosofia da História, anotando tratar-se de “embriões do materialismo histórico” (p. 317). Veja-se Hegel, G. W. F. Filosofia da História. 2 ed. Trad. M. Rodrigues e Hans Harden. Brasília: Editora da UNB, 2008, pp. 11-91. Vem a tempo notar uma aguda observação de Losurdo acerca da rejeição do historicismo hegeliano. Ele lembra que já Marcuse havia assinalado ser caro ao nazismo o argumento da “desvalorização da história”, mas insiste que a ideia cobre diferentes gerações do pensamento conservador: seja com Malthus ao tempo da Revolução Francesa, seja com liberais, fascistas e nazistas na virada do século XIX para o século XX, ou ainda em nossos dias, com Alain de Benoist e a Nova Direita europeia. Losurdo, D. La catastrofe della Germania e l’immagine di Hegel. Napoli: Istituto Italiano per gli Studi Filosofici; Milano: Guerriri e Associati, 1987, pp. 130-145.
[5] Gramsci, A. Quaderni del Carcere. A cura di Valentino Gerratana. Torino: Einaudi, 1975, p. 1209.
[6] Vattimo, G. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
[7] Harvey, D. A Condição pós-moderna. Uma pesquisa sobre a mudança cultural. Trad. Adail U. Sobral e Maria S. Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2013, pp. 45 e segs.
[8] Azzarà, S. G. Sul marxismo del XXI seculo: ricordando Domenico Losurdo. In: Azzarà, S. G., Ercolani, P., Susca, E. (orgs.). Domenico Losurdo tra filosofia, storia e politica. Napoli: La scuola di Pitagora, 2020, p. 165. Como assinala o autor neste artigo em memória de Losurdo, é justamente a perda de sentido da ideia de progresso e “necessidade” histórica que marca a profundidade da crise filosófica inerente ao pós-modernismo. Mas insiste ser obrigatório aqui entender “a diferença entre a necessidade mecânica e aquela ‘necessidade’ bem diversa que é própria do movimento histórico.” (p. 166).
[9] Gramsci, A., op. cit. p. 1619.
[10] Rehmann, J. I nietzscheani di sinistra. Deleuze, Foucault e il postmodernismo: una descostruzione. A cura di Stefano G. Azzarà. Roma: Odradek, 2009, p. 21.
[11] Gramsci, A. op. cit., p. 1209.
[12] Laclau, E. A razão populista. Trad. Carlos Eugênio M. de Moura. São Paulo: Três Estrelas, 2018.
[13] Laclau, E. e Mouffe, C. Hegemonia e estratégia socialista. Por uma política democrática radical. Trad. Joanildo A. Burity, Josias de Paula Jr. e Aécio Amaral. São Paulo: Intermeios; Brasília: CNPq, 2015.
[14] Idem, pp. 33-34.
[15] Para uma recente discussão da herança em Lenin do conceito gramsciano de hegemonia veja-se Fresu, G. Lenin leitor de Marx: dialética e determinismo na história do movimento operário. Trad. Rita Coitinho. São Paulo: Anita Garibaldi; Fundação Maurício Grabois, 2016, pp. 18-19. A crítica às “referências descontextualizadas” de Laclau e Mouffe aos Cadernos do Cárcere, responsável pelo estabelecimento de uma “imagem pós-marxista” de Gramsci, aparece também em Thomas, P. D. The Gramscian Moment. Phylosophy, Hegemony and Marxism”, Haymarket Books, Chicago (Illinois), 2010, p. 11 (nota 48).
[16] Laclau, E. e Mouffe, C. op. cit., p. 35.
[17] Losurdo, D. 2015, op. cit., p. 63.
[18] Nas notas explicativas da edição brasileira de Ser e Tempo o substantivo Vorhandenheit é definido como o “ser simplesmente dado”, acrescentando-se que ele é formado do substantivo ‘Hand’ (= mão) e da preposição ‘vor’ (= diante de, no sentido espacial e antes de, no sentido temporal). Designa o modo de ser da coisa enquanto o que é assumido ‘ingenuamente’ como substancialidade de ser”. Heidegger, M. Ser e Tempo. Trad. Márcia Sá Cavalcante. 10a Petrópolis: Vozes, 2015, p. 563.
[19] Laclau, E. e Mouffe, C. op. cit, pp. 36-7. Na nota dos tradutores lê-se: “A distinção entre o ôntico e o ontológico é claramente inspirada na ‘diferença ontológica’ entre o Ser e o ente heideggeriana”. Idem, p. 48.
[20] Bodei, R. La filosofia del novecento (e oltre). Milano: Feltrinelli, 2015, p. 137.
[21] Idem, p. 138.
[22] Idem, pp. 142-3.
[23] Laclau, E., op. cit., p. 27.
[24] Losurdo, D. Marxismo o populismo? In: Imperialismo e questione europeia. In: Alessandroni. E. (org.). Napoli: La scuola di Pitagora, 2019, p. 88.
[25] Santos, M. Por uma geografia nova. Da crítica da geografia a uma geografia crítica. 6 ed. São Paulo: Edusp, 2008, p. 37.
[26] Azzarà, S. G. Heidegger ‘inocente’: um exorcismo da esquerda pós-moderna. In: Crítica marxista, no 42, 2016. Para a crítica da categoria de totalitarismo pode-se ler Losurdo, D. O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer. Trad. Ana M. Chiarini e Diego S. C. Ferreira. São Paulo: Boitempo, 2018.
[27] Laclau, E. e Mouffe, C., op. cit., p. 38.
[28] Id. Ib. pp. 39-40. Id. Ib. pp. 39-40. Vale recordar aqui a interpretação que faz Peter Thomas das passagens em que Gramsci discute a relação entre o “objetivo” e o “subjetivo”, insistindo que se Gramsci é um crítico do “objetivismo”, esta crítica “envolve também uma rejeição das filosofias do sujeito”. Thomas, P. D. op. cit., p. XXIV. De fato, Gramsci opera no terreno da totalidade histórica e não do puro subjetivismo. Daí associar o “subjetivo” à “doutrina das superestruturas”, chegando a se referir a uma “luta pela objetividade”. Gramsci, A., op. cit. p. 1420.
[29] Laclau, E. e Mouffe, C., op. cit., 40-41.
[30] Laclau, E. 2018, op. cit. p. 254.
[31] Idem, p. 264.
[32] As referências à experiência latino-americana recente estão na introdução da edição brasileira de A Razão Populista, op. cit., pp. 20-21. A referência a Togliatti e aos populismos europeus de fundo étnico é parte da “saga do populismo” apresentada no capítulo 7, aparecendo principalmente às páginas 262-268 e segs.
[33] Se é possível dizer que a Argentina dos Kirchner é o país no qual “o processo político real” mais se “aproximou da hipótese de Lacau”, ainda assim, insiste Azzarà, trata-se de uma experiência ligada ao “emancipacionismo moderno”, quando mais não seja porque o clássico populismo latino-americano – lê-se no capítulo 4 – tem um significado “muito diferente” das formas assumidas pelo pós-modernismo. A respeito do populismo latino-americano pode-se ler os estudos de Francisco Weffort, que o define como uma “aliança (tácita) entre setores de diferentes classes sociais”, na qual a “hegemonia se encontra sempre com os interesses vinculados às classes dominantes, mas impossível de realizar-se sem o atendimento de algumas aspirações básicas das classes populares”, como a “reivindicação do emprego, de maiores possibilidades de consumo e de direito de participação nos assuntos do Estado”. No que se refere ao “sistema de partidos”, não se trata da sua dissolução, como na forma pós-moderna (ver adiante o exemplo do 5 Stelle italiano), mas de sua “pouca autonomia em relação ao Estado”. Weffort, F. O populismo na política brasileira. 4a ed. Paz e Terra, 1980, pp. 75-6.
[34] Azzarà, S. G. Globalisti contro sovranisti: un conflito tutto interno alle classi dominanti. In: Il Bene Comune, marzo, 2017. O euroasiatismo foi criticado por Gramsci nos Quaderni. Tratava-se de um movimento que, nos idos de 1921, tendia a estabelecer uma “revisão do comportamento dos intelectuais emigrantes” acerca da Rússia soviética, entendendo-a “mais asiática do que ocidental”. Segundo Gramsci, os euroasiáticos “não são bolcheviques, mas são inimigos da democracia e do parlamentarismo ocidental. Eles se comportam frequentemente como fascistas russos, como amigos de um Estado forte em que a disciplina, a autoridade, a hierarquia tem que dominar a massa”; seus integrantes “saúdam a ordem estatal vigente na Rússia dos Sovietes, não obstante estes contemplem substituir a ideologia nacional por aquela proletária”. Gramsci, A. op. cit., pp. 180-181. A passagem, muito ilustrativa, pode ser lida à luz das referências a Lenin feitas no caderno 7, onde se faz notar, precisamente a respeito da relação entre o “nacional” e o “internacional”, a dialética presente no grande revolucionário russo, definido como “profundamente nacional e profundamente europeu”. Gramsci, A. op. cit., p. 866. Um exemplo de reedição hodierna do eurasiatismo pode ser encontrado nas teorias do russo Aleksander Dugin, cuja história intelectual nos faz lembrar imediatamente a crítica de Gramsci aqui referida. Sua vida intelectual se inicia nos anos 80 com a participação em um círculo de cultura ‘underground’ de nome Yuzhinsky, cujas origens remontam à Moscou dos anos 60. Os interesses intelectuais do grupo eram o fascismo, o nazismo, o nacionalismo, o ocultismo e o misticismo. O grupo era antissoviético, simpatizando com o nazismo não necessariamente por amor a Hitler ou ao antissemitismo, mas porque era “um claro inimigo histórico” (a colorful historic foe) do seu próprio governo. Ver a respeito Teitelbaum, B. War for Eternity. The Return of Traditionalism and the Rise of the Populist Right. Londres: Penguin Books, 2020, pp. 41 e 94-6.
[35] Gramsci, A., op. cit., pp. 1578-9 e 1603.
[36] Foucault, M. Sobre a geografia. In: Microfísica do poder. 28 ed. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 253.
[37] Foucault, M. Espacio, saber y poder. In: El poder, una bestia magnífica: sobre el poder, la prisión y la vida. 5 ed. Trad. Horacio Pons. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2019, pp. 154-5.
[38] Losurdo, D. 2013, op. cit., p. 313.
[39] Engels, F. Prefácio. In: Marx, Karl. As lutas de classes na França de 1848 a 1850. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 21. Como se sabe, o original de Engels foi alterado pelo reformismo da II Internacional, buscando passar a ideia de que ao valorizar o trabalho parlamentar e de propaganda, Engels estivesse proclamando o fim das lutas de rua e mesmo da era das revoluções. Ver a respeito Fresu, G., 2016, op. cit., p. 53.
[40] Bertozzi, D. A. La Cina della reforma: un percorso storico-ideologico. In: Marx Ventuno, no 2-3, 2015, p. 68.
[41] “A luta de classe não se apresenta quase nunca no estado puro, quase nunca se limita a envolver os sujeitos diretamente antagonistas”, e “é precisamente graças a esta falta de ‘pureza’ que ela pode desembocar em uma revolução social vitoriosa”. Losurdo, D. 2013, op. cit. p. 27. A crítica endereçada ao anti-humanismo de Althusser lembra ainda que “as lutas de classe” – deve-se declinar esta categoria sempre no plural, insiste Losurdo −, “bem longe de terem uma dimensão meramente econômica, são lutas pelo reconhecimento.” Losurdo, D. 2018, op. cit. p. 79. A crítica a Althusser pode ser lida ainda em Losurdo, D. 2013, pp. 87-92.
[42] Santos, M., op. cit., pp. 246-7.
[43] O mesmo Azzarà é autor de um interessante estudo recente a este respeito, discutindo as posições de Clara Zetkin e sobretudo Karl Radek nos anos 20, este último uma espécie de pioneiro entre os leninistas que se dedicaram a pensar o problema da hegemonia e seu entrelaçamento com a questão nacional. Trata-se, a rigor, do problema das frentes na luta de hegemonia. Azzarà, S. G. Comunisti, fascisti e questione nazionale. Germania 1923: fronte rossobruno o guerra d’egemonia? Milano-Udine: Mimesis, 2018.
[44] Losurdo, D. 2019, op. cit. pp. 23-4. Veja-se em especial os capítulos que criticam as leituras que tendem a colocar a União Europeia no mesmo plano do “imperialismo planetário” estadunidense. Mas este não era o caso das Farcs colombianas, recorda Losurdo, e mesmo de Cuba e China, sempre muito conscientes desta diferença (pp. 85-6). Como se referiu em chave leninista Azzarà, trata-se daquela incapacidade de “identificar o conflito principal” que marca a “gravíssima desalfabetização política” do nosso tempo. Azzarà, S. G. 2020, op. cit., p. 166. O artigo de Emiliano Alessandroni que integra como apêndice este volume póstumo de Losurdo, lembra que também Gramsci falou a favor de uma União Europeia, insistindo que “o processo histórico tende para essa união e que existem muitas forças materiais que só nesta união poderão se desenvolver”. Alessandroni, E. Economicismo o dialettica? Un approccio marxista alla questione europeia. In: Losurdo, D. 2019, op. cit. p. 455. Segundo antes assinalamos, trata-se, na visão de Gramsci, não da anulação da questão nacional, mas do seu entendimento por meio daquela dialética que soube reter Lenin, apresentando-se ao mesmo tempo como “profundamente nacional e profundamente europeu”, ou internacionalista. Gramsci, op. cit, p. 866.