Uma revolução pacífica

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ MARQUES*

A expressão marcante da campanha de Lula é “democracia participativa”

Eleições tendem a amestrar as insatisfações e impor uma linguagem asséptica aos candidatos indicados às instâncias executivas e às representações senatoriais. A urgência em pescar votos em todas as classes sociais força a pasteurização do vocabulário e a desideologização das mensagens. Coitados dos eleitores, que têm de apreender o conteúdo de palavras que se repetem em discursos de sinais antagônicos no espectro eleitoral: Estado de Direito, democracia, mercado, liberdade, sustentabilidade, políticas públicas, incentivo à produção, reforma tributária, participação, etc.

No Congresso Nacional, o emblemático Centrão arregimenta partidos fisiológicos que costumam seguir o “capitão do mato” na captura de privilégios e prebendas sigilosas, nas votações. São dezenas de partidos, aos moldes de siglas de aluguel. Acha-se, de propostas bizarras a coisas sérias, como a taxação redistributiva das grandes fortunas, na prateleira das ofertas de ocasião. Para agradar / confundir o eleitorado são ventiladas proposições desconectadas de qualquer práxis ideopolítica. Prevalecem os personalismos nas negociações. Lembram birutas de aeroporto.

Temáticas do meio ambiente sob o viés de um “capitalismo verde” e da diversidade de orientação sexual na perspectiva de um “neoliberalismo progressista” podem ser, e são, deglutidas pelo status quo. A igualdade de gênero e de raças tornou-se uma publicidade barata para maquiar a reprodução interna dos preconceitos nas megacorporações empresariais. “O mercado finge a inclusão mediante peças de marketing, mas não entrega efetivamente resultados”, lê-se no recém lançado A Ficção Meritocrática: executivos brasileiros e o novo capitalismo (EDUENF), organizado por Fabrício Maciel.

Vale sublinhar que o capitalismo é capaz de absorver denúncias patriarcais (sexistas) e colonialistas (racistas), à diferença de sistemas anteriores. Em resposta, um filósofo com audiência no Maio de 1968 prega o “radicalismo político e moral”, com ações de “solidariedade” entre os sujeitos da transformação da sociedade burguesa (partidos, movimentos, trabalhadores urbanos / rurais, intelectuais e estudantes). É preciso “despertar e organizar a solidariedade como necessidade biológica para manter-nos juntos contra a brutalidade e a exploração inumanas: essa é a tarefa”, afirma Herbert Marcuse, em One-Dimensional Man: studies in the ideology of advanced industrial society (1964). Na clássica metáfora, contra a hipocrisia da “casa grande” há que opor as alianças orgânicas da “senzala”, qual o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), as cooperativas da Economia Solidária que contemplam o precariado e a formidável Vigília Lula Livre realizada durante 580 dias de irmandade, em Curitiba.

Politicamente, separando o joio do trigo no pleito de 2022, as questões que hasteiam as bandeiras do campo de esquerda, e estão resguardadas das astúcias do camaleão neoliberal, dizem respeito: (a) a revogação da legislação antitrabalhista embutida no neoliberalismo de ataques aos direitos das classes trabalhadoras, com vistas à terceirização e à precarização do trabalho, para construir uma estratégia de acumulação com crescente afastamento de milhões de pessoas da economia oficial; (b) a revogação do “teto de gastos por vinte anos”, aprovado no governo do golpista Michel Temer, que sequestra a possibilidade do povo acessar o orçamento da União através dos processos eletivos e cancela a dimensão cidadã do desenvolvimento econômico, com emprego e distribuição de renda; (c) a revogação do esquartejamento privatista da Petrobrás, do Pré-Sal e da Eletrobrás, lapidada no governo dos destrutivos Jair & Guedes com a gramática das classes dirigentes para, outra vez, reverter a nação no entreposto comercial de potências estrangeiras graças ao complexo de vira-lata.

O conjunto dos problemas, acima, estrutura o programa acenado pela “Frente Juntos Pelo Brasil”. Ficou no passado a auspiciosa promessa fordista de produzir as condições para uma “sociedade de consumo” acessível às maiorias nos países centrais, pela semiproletarização dos domicílios que combinou o emprego masculino e a labuta doméstica feminina. Nos países periféricos, ontem e hoje, uma miríade de atividades e bens disponíveis se encontram fora do alcance da população. A pauperização aproxima a classe média baixa da informalidade empreendedorial. O “exército industrial de reserva” ultrapassou o imperium romanum no Ocidente. Não à toa, o iFood e o Uber converteram-se nas empresas que mais empregam, conquanto não assumam os óbvios vínculos empregatícios. A dialética da urbanização com a desindustrialização espalha a miséria e a fome.

Entre as expressões com a semântica expropriada e as que escapam à sina, existem as proibidas de circular em função dos “cães de guarda” que operam as mídias. A iniciar pela que frequenta a intelligentsia, não os palanques – “capitalismo”. O termo tem conotação pejorativa na Alemanha (ordoliberal). Os germânicos preferem um eufemismo do tipo “sociedade de mercado”, para evitar a carga herdada do Das Kapital (1867). Em sítios anglófonos (neoliberais), bebe-se sem moderação e sem pejo de entregar, perversamente, demandas humanas importantes ao mercado. Por isso, não se quebrou a patente das vacinas na pandemia do coronavírus, o que teria poupado incontáveis vidas. E nem se balanceia as lides produtivas diárias com o convívio familiar, o lazer e o entretenimento.

O mercado já existia em sociedades pré-capitalistas, não com a tendência para transformar tudo e todos em mercadorias. Continuará a existir em sociedades pós-capitalistas, com regulamentação para garantir a estabilidade da economia contra crises, como a de 2008, e brecar o desigualitarismo interclassista. De resto, sem a propriedade privada dos meios de produção. Associar o mercado ao capitalismo dá a impressão de que a atemporalidade do primeiro é compartilhada pelo capital, interpretação sem fundamento histórico. Nos Estados Unidos, o Conselho de Educação no Texas chegou ao cúmulo de ordenar que manuais de história deixassem de se referir a “capitalismo” e usassem “sistema de livre iniciativa”. Como o ridículo não paga imposto, é usado e abusado.

A “escola sem partido” e o homeschoolling, arguidos de má-fé, são apêndices do negacionismo cognitivo contrário ao saber científico e universitário. Anda de mãos com o negacionismo afetivo, sem empatia com o sofrimento das multidões alijadas do direito à subsistência, e o negacionismo político que mina, por dentro, as instituições republicanas na direção da distopia orwelliana, sob um regime iliberal. A violência que mira o guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal (STF), está carregada com o simbolismo barulhento e covarde do neofascismo, rumo à barbárie.

Não há inocência no gesto dos que derrubam o busto de Stalin no Leste Europeu, nos antirracistas que põem por terra a estátua do bandeirante Borba Gato na Zona Sul de São Paulo e nos milicianos que quebram a placa de Marielle Franco no Rio de Janeiro. Os signos acobertam os significados e provocam reações, de gauche à droite. “Uma de nossas principais servidões é o divórcio esmagador da mitologia e do conhecimento. A ciência segue seu caminho rápido e direto (decodificando os símbolos); mas as representações coletivas estão séculos atrasadas, estagnadas no erro pelo poder, pela grande imprensa e pelos valores da ordem”, escreve Roland Barthes, em Mythologies (1957).

Mesmo le mot “neoliberalismo” é utilizado com parcimônia. Na televisão nunca aparece, disfarça-se de “liberalismo” feito sinônimo de liberdade nos costumes e ideias, acepção influenciada pela cultura estadunidense. Os fundadores do movimento (Friedrich Hayek, Ludwig von Mises, Milton Friedman) empregaram a designação para se distinguir dos antigos liberais, que mal e porcamente tentaram conciliar o “livre mercado” com preocupações ralas e rasas de “proteção social”.

Somos seres linguísticos, acolhidos pela verdadeira consciência ou agredidos pela falsa consciência nas locuções. Convém dobrar a língua, de acordo com o politically correct. Juarez Guimarães tem razão ao apontar a responsabilidade de cada verbete na política: “Ler o dicionário neoliberal é ganhar consciência das formas de dominação e exploração do capitalismo contemporâneo”.

Ideologicamente, a expressão marcante da campanha em curso remete com certeza à “democracia participativa”. Trata-se de valorizar e confiar no método (dialógico), mais do que na generosidade das utopias e dos utopistas, para contornar o destino autoritário e totalitário dos finalismos à fórceps. A experiência do “socialismo realmente existente” (sorex) deixou um rastro no ceticismo que, agora, leva a priorizar a metodologia para o exercício de um poder colaborativo, ao invés da figura caricata de um poderoso farol para iluminar o caminho por entre as pedras, em mares bravios.

A institucionalização dos conflitos, porém, não deve implicar na domesticação da política. Viver é aprender. Aprender é criar. A democracia participativa recupera a potência emancipadora da política porque desvenda, na prática, sutilezas do linguajar ao substituir as decisões tecnocráticas pela soberania popular – uma revolução pacífica até o Estado de direito democrático e participativo.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

 

O site A Terra é redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Ricardo Abramovay Yuri Martins-Fontes Luiz Renato Martins Ronald León Núñez Gilberto Lopes Jean Marc Von Der Weid Kátia Gerab Baggio Marcos Silva Rubens Pinto Lyra Bruno Fabricio Alcebino da Silva Marcelo Módolo José Machado Moita Neto Bernardo Ricupero Fábio Konder Comparato Eleutério F. S. Prado Luiz Eduardo Soares Luis Felipe Miguel Marcos Aurélio da Silva Paulo Fernandes Silveira Fernando Nogueira da Costa José Luís Fiori Dennis Oliveira Lorenzo Vitral João Adolfo Hansen Ari Marcelo Solon Remy José Fontana Luiz Marques Milton Pinheiro Daniel Costa Eugênio Bucci José Micaelson Lacerda Morais Leonardo Avritzer Alexandre Aragão de Albuquerque Eleonora Albano Thomas Piketty Tadeu Valadares Julian Rodrigues Michel Goulart da Silva Eduardo Borges Andrew Korybko Heraldo Campos Michael Löwy Jorge Luiz Souto Maior Lucas Fiaschetti Estevez Anselm Jappe Osvaldo Coggiola Alexandre de Lima Castro Tranjan Carlos Tautz João Lanari Bo José Geraldo Couto Ronaldo Tadeu de Souza Francisco de Oliveira Barros Júnior Slavoj Žižek Daniel Afonso da Silva Flávio Aguiar Luiz Bernardo Pericás Rodrigo de Faria Plínio de Arruda Sampaio Jr. Celso Favaretto Leonardo Sacramento Marjorie C. Marona José Dirceu Matheus Silveira de Souza João Carlos Salles Andrés del Río Francisco Fernandes Ladeira Claudio Katz Paulo Sérgio Pinheiro Manuel Domingos Neto Carla Teixeira Boaventura de Sousa Santos Eliziário Andrade Vinício Carrilho Martinez José Costa Júnior Gabriel Cohn Ricardo Fabbrini Luís Fernando Vitagliano Denilson Cordeiro Tales Ab'Sáber Henry Burnett Berenice Bento André Márcio Neves Soares Bruno Machado Caio Bugiato André Singer Luiz Roberto Alves Mário Maestri Tarso Genro João Paulo Ayub Fonseca Ricardo Antunes Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Otaviano Helene Fernão Pessoa Ramos Dênis de Moraes João Sette Whitaker Ferreira Salem Nasser Samuel Kilsztajn Liszt Vieira Antonio Martins Jean Pierre Chauvin Gerson Almeida Maria Rita Kehl Alexandre de Freitas Barbosa Elias Jabbour Luciano Nascimento Vladimir Safatle Walnice Nogueira Galvão Mariarosaria Fabris Marcelo Guimarães Lima Sergio Amadeu da Silveira Vanderlei Tenório Érico Andrade Chico Alencar Paulo Martins Everaldo de Oliveira Andrade Luiz Werneck Vianna Benicio Viero Schmidt Luiz Carlos Bresser-Pereira Bento Prado Jr. Ladislau Dowbor Flávio R. Kothe Eugênio Trivinho Atilio A. Boron Marilia Pacheco Fiorillo Paulo Capel Narvai Alysson Leandro Mascaro Ronald Rocha Manchetômetro Michael Roberts Marilena Chauí Valerio Arcary Annateresa Fabris Armando Boito Antonino Infranca Leda Maria Paulani Antônio Sales Rios Neto Daniel Brazil Jorge Branco José Raimundo Trindade Celso Frederico Juarez Guimarães João Carlos Loebens Henri Acselrad João Feres Júnior Afrânio Catani Priscila Figueiredo Anderson Alves Esteves Renato Dagnino Sandra Bitencourt Airton Paschoa Leonardo Boff Igor Felippe Santos Marcus Ianoni Gilberto Maringoni Ricardo Musse Lincoln Secco Chico Whitaker Paulo Nogueira Batista Jr Francisco Pereira de Farias Rafael R. Ioris

NOVAS PUBLICAÇÕES