Por JUAREZ GUIMARÃES*
Todo o ódio e rancor do neoliberalismo se voltou contra o mundo do trabalho, suas conquistas e tradições
Quando o jornal Valor Econômico veio à luz, nos anos noventa do século passado, em pleno governo de Fernando Henrique Cardoso, unindo as duas principais empresas de comunicação do país, a Rede Globo e o Grupo Folha de S. Paulo, ele já nasceu com um grito de morte ao trabalho. Ao contrário da Gazeta Mercantil, que dedicava duas páginas diárias para a cobertura nacional dos conflitos e negociações entre trabalho e capital, o novo jornal não trazia sequer uma coluna fixa para o trabalho, mas abria todo um caderno apenas para a cobertura das finanças. Ali resplandecia o programa de uma era neoliberal.
Este critério editorial equivalia, de fato, a uma pretensão de invisibilizar, de subnotificar, de apagar do plano da consciência econômica a regulação das relações de trabalho. Se os índices das ações em bolsas de valores, de preços de commodities, etc. passam a ter uma incessante presença na mídia, tudo o que diz respeito ao trabalho vai para a nota de pé de página. Ele só deve aparecer como problema: quando uma greve de trabalhadores afeta os serviços públicos, por exemplo.
Esta invisibilização do trabalho se traduziu em geral nos governos neoliberais por uma postura de não negociação. Os governos Ronald Reagan, Margareth Thatcher e mesmo o de FHC no Brasil, iniciaram-se com grandes confrontações com sindicatos: tratava-se não propriamente de impor a eles apenas uma nova correlação de forças defensiva, mas quebrá-los. Era todo uma cultura de décadas de negociação e contratos coletivos de trabalho que deveria ser destruída. Não deveria haver mais mesa de negociação, como vigia nos tempos nos quais a própria organização sindical e o direito de greve eram proibidos.
Uma nova institucionalidade orientada no sentido de destruir as tradições corporativas de direito do trabalho, presentes a partir da identificação da hipo-suficiência do trabalho diante do capital, isto é, a proteção da parte mais fraca no conflito estrutural da economia, deveria ser criada. O direito legislado do trabalho, a própria Justiça do Trabalho, deveriam ser destruídos ou neutralizados.
No Brasil, o alvo foi sempre a CLT. Era como se fizesse, em sinal invertido, o famoso discurso de Rui Barbosa às classes conservadoras, em 1919, no qual o velho liberal manchesteriano abria a sua consciência aos direitos emergentes do trabalho no século XX. Oliveira Vianna, o conservador da modernização laboral, principal intelectual da tradição corporativa no Brasil, passava a ser um subversivo!
Esta nova institucionalidade patronal de maximização da exploração do trabalho, em todas as suas formas, estabeleceu uma simbiose fatal com as novas dinâmicas de mudança tecnológica, de financeirização, de globalização. Uma nova mutação das forças produtivas do capitalismo – a inteligência artificial, a sociedade da informação – poupadora de mão-de-obra e que deveria ser apropriada socialmente para bens de civilização em uma cultura do trabalho se amalgamou a dinâmicas de barbárie. Não mais sociedades de pleno emprego, mas de desemprego massivo estrutural e permanente. Não mais nem sociedades de 2/3 de trabalhadores formalizados, como se dizia no início das décadas neoliberais, mas crescente precarização universal dos direitos. De direito, a carteira assinada passou a ser privilégio disputado nas agruras da concorrência entre pares.
Assim como as tradições do direito ao trabalho haviam formado desde o século XIX todo um dicionário, toda uma linguagem de sentido – companheiro, solidarismo, sindicato, greve, piquete, mutualismo, previdência, jornada regulada de trabalho, co-gestão, auto-gestão, cooperativa, saúde do trabalho, descanso remunerado –, a nova época neoliberal foi construindo um novo dialeto liberal. Por esta linguagem, naturaliza-se o desemprego estrutural permanente no capitalismo: o conceito de empregabilidade individualiza no trabalhador a responsabilidade de achar um lugar no mercado de trabalho; o massivo subemprego é resignificado como campo aberto ao livre empreendorismo.
A imagem do capital como vampiro aparece muitas vezes nos escritos de Karl Marx. O sonho neoliberal é desdialetizar o capital: eliminar a sua negação! Na verdade, trata-se de um pesadelo: é preciso sair dele!
Genealogia da negação do trabalho
O tema de como enfrentar os sindicatos foi desde sempre central na origem e na formação do neoliberalismo. Entre 1947 e 1959, foi o terceiro tema mais debatido nos seminários da Sociedade Mont-Pèlerin. Havia uma divisão de opinião entre os participantes: os ordoliberais alemães mais inclinados a formar sindicatos de orientação liberal, integrando-os funcionalmente à ordem capitalista: outros, que acabaram prevalecendo, a favor de uma estratégia elaborada de contenção e neutralização dos sindicatos. Friedrich Hayek posicionou-se firmemente a favor destes últimos. Para ele, os sindicatos seriam uma “perversão na ordem espontânea do mercado e uma exceção frente à ordem legal” que deveria organizar o chamado “livre mercado”.
Foi, no entanto, no seminário da Sociedade Mont-Pèlerin, realizado em 1958 nos EUA, amplamente devotada à questão sindical, que esta opinião de clara guerra aos sindicatos teria prevalecido. O principal orador foi Sylvester Petro, autor de The labor policy in free societ (A política laboral em uma sociedade livre,1957). Desde a Grande Depressão norte-americana, os trabalhadores haviam conseguido avançar em legislações protetivas do mundo do trabalho: o chamado Norris-La Guardia Act (1932) havia permitido a liberdade plena de sindicalizaçãoes, proibindo os chamados contratos Yellow-dog, pelos quais os trabalhadores se comprometiam a não se filiar em sindicatos; formou-se em 1935 um Bureau Nacional de Relações de Trabalho, cujo papel era intervir e compor negociações entre capital e trabalho. A principal meta dos neoliberais era exatamente derrubar esta lei e esvaziar esta agência nacional de regulação trabalhista. Mas a lógica era a de universalizar uma nova estratégia liberal de confrontação.
A linha de ataques aos sindicatos era extensa, como mostra o capítulo XVIII do livro A constituição da liberdade, de Friedrich Hayek. Os sindicatos causavam rigidez e uniformidade dos salários em detrimento das diferentes capacidades e produtividades; geravam ramos privilegiados de trabalho, sem relação com a produtividade; a elevação dos salários para além do nível do “mercado livre” produzia uma constante e crescente inflação; o uso de piquetes, as filiações involuntárias em razão de contratos generalizáveis, a existência de sindicatos para além das fábricas, a manutenção de vínculos com os sindicatos por não empregados, tudo visto como inaceitável em um sociedade de “livre mercado”. A ideia de uma “democracia industrial” na qual sindicatos teriam voz ativa nas políticas da empresa deveria ser banida.
A estratégia de minar o mundo do trabalho casava, então, destruir as legislações e instituições protetivas do trabalho e desempoderar os sindicatos (diminuindo a sua base de filiação, por exemplo, por fábrica, como se fez no Chile, suas atribuições, seu repertório de ações, seus canais de negociação). Friedrich Hayek dedica todo um capítulo no livro citado dedicado a atacar a própria noção de seguridade social e do pacto intergeracional, chegando a afirmar que o aumento do valor das aposentadorias seria uma chantagem inaceitável dos mais velhos sobre os mais jovens, a qual provocaria no futuro uma revanche, com os novos criando campos de concentração para os idosos!
Socialismo XXI e trabalho
Não são apenas os direitos do trabalho aqueles originados pelas lutas dos trabalhadores. Os direitos fundamentais contidos nas democracias modernas devem-se, com centralidade, as tradições que em torno dos direitos do trabalho se organizaram desde o século XIX: a história da formação do direito universal de voto, dos direitos do feminismo, da própria compreensão universalista dos direitos humanos, da medicina social e das estruturas do Estado do Bem-Estar revela bem o quanto as ordens liberais atacaram e reagiram a estes direitos. A própria luta dos negros contra a escravidão e o racismo devem ser interpretados à luz desta centenária narrativa da luta dos trabalhadores.
Mas, nesta época de domínio neoliberal, esta história não se conta mais. Houve mesmo correntes marxizantes ou de esquerda que chegaram a abraçar a tese do fim do trabalho ou do fim das classes trabalhadoras, em função de sua pretensa diminuição fabril (se contabilizadas as novas classes trabalhadoras chinesas, tal estatística não se valida). Apesar de muito viés sociológico, a sociedade pós-fordista é composta por uma imensa maioria de trabalhadores oprimidos e explorados pelo capital, em formas precarizadas.
Neste período neoliberal, as próprias teorias democráticas mais frequentadas na academia deixaram de pensar na centralidade do trabalho. O próprio Estado do Bem-Estar Social deixou de fazer parte do horizonte de pesquisa, como se fosse possível pensar a educação, a saúde, a assistência social, a própria cultura sem os mundos do trabalho.
Um socialismo do século XXI só pode se formar se for capaz de pôr abaixo a escandalosa interdição neoliberal sobre os mundos do trabalho, se reivindicar as tradições, se for capaz de programatizar e atualizar as esperanças de emancipação daqueles que trabalham para viver e vivem hoje só para trabalhar.
*Juarez Guimarães é professor de ciência política na UFMG. Autor, entre outros livros, de Democracia e marxismo: Crítica à razão liberal (Xamã).
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