Por ERNANI CHAVES*
Considerações sobre o livro recém-lançado de Scarlett Marton
Acaba de ser publicada a edição brasileira do mais recente livro de Scarlett Marton, Nietzsche e as mulheres, que havia aparecido na França em meados de 2021. Este livro é o resultado de um longo trabalho de leitura e pesquisa sobre um tema que sempre interessou a sua autora. Mais do que isso, o livro reitera não só a qualidade de Scarlett Marton como pesquisadora e especialista no pensamento de Friedrich Nietzsche, mas também a importância do lugar que ocupa na Nietzsche-Forschung.
Nietzsche e as mulheres: trata-se de um tema e uma questão que interessou diversos intérpretes, alguns deles com grande presença na história da recepção de Nietzsche, mesmo que não tenha sido objeto de uma preocupação que considerasse sua relação com as questões filosóficas mais centrais no pensamento do autor de Zaratustra. Tema e questão que, por sua vez, passaram a ocupar um lugar central nos debates do feminismo e da filosofia feminista a partir da década de 1970, na esteira do “maio de 68” e das promessas de uma “revolução sexual”.
Essa presença de Friedrich Nietzsche se adensou na década de 1990 – na conhecida terceira onda do feminismo – intensamente incorporado pelo feminismo ligado ao pós-estruturalismo francês. Se por um lado, as acusações de misoginia continuavam presentes, por outro, especialmente nos Estados Unidos, a presença de Nietzsche continuava a ser alvo de um debate aberto e muitas vezes bastante duro entre as feministas ligadas à Teoria Crítica e, portanto, herdeiras e continuadoras da crítica de Jürgen Habermas ao nietzschianismo francês e as herdeiras e continuadoras da French theory, etiquetadas como “filosofias da diferença”.
Esse não é o interesse de Scarlett Marton. Sua questão não é, de modo algum, avaliar esses debates e essas interpretações. Justamente porque – e isso sou mais eu quem afirma – essas polêmicas deixaram de lado ou simplesmente ignoraram um exame mais cuidadoso e criterioso dos próprios textos de Friedrich Nietzsche. Ao assim procederem, mesmo as adeptas de um Nietzsche favorável ao feminismo e às causas das mulheres, acabaram por continuar ignorando o quanto a questão das mulheres habita o cerne do pensamento filosófico de Nietzsche.
A posição de Scarlett Marton – e aqui reside uma das mais importantes singularidades do seu livro – vai no caminho oposto. Rejeitando com fortes argumentos as leituras meramente psicológicas e sociológicas, ambas reducionistas em pontos fulcrais, Scarlett Marton pretende fazer o que, de fato, até então não tinha sido feito, qual seja, incorporar a questão das mulheres à filosofia de Nietzsche, para mostrar o quanto aquilo que o filósofo escreveu sobre o assunto só ganha pleno sentido quando suas declarações remetem não à sua pessoa, muito menos ao seu próprio tempo, mas sim à sua obra.
Nesse sentido, o livro é também um livro sobre a filosofia de Friedrich Nietzsche e seus temas centrais, como o perspectivismo e o experimentalismo, a crítica da metafísica e a luta contra o dogmatismo, a psicologia e a tipologia, os espíritos livres e os filósofos do futuro, a vontade de verdade e a ideia de interpretação, o conceito de “vontade de potência” e a noção de “força”, o “eterno retorno do mesmo” e o amor fati, as “ideias modernas” e a décadence, tal como o afirma a autora ainda na “Introdução”.
Organizado em seis capítulos e acompanhando a trajetória do pensamento de Friedrich Nietzsche, o livro vai mostrando a ambivalência de Nietzsche em relação às mulheres, a partir da qual emergem diversas figuras, imagens e tipos, que vão desde as mulheres “reais” até as figuras “idealizadas”, inteiramente ficcionais: as emancipadas, mães e solteironas no capítulo 1; as esposas e concubinas no capítulo 2; as artistas e atrizes no capítulo 3; a sabedoria, a vida e a eternidade no capítulo 4; as feministas e dogmáticas no capítulo 5; as escritoras e intelectuais no capítulo 6.
Nesse percurso, alguns livros ganham destaque, devido à abundante presença do tema: Humano, demasiado humano, A gaia ciência – este, um ponto de inflexão, pois aqui Nietzsche deixa bastante clara a intersecção entre o tema das mulheres e a sua filosofia – Assim falou Zaratustra, Para além de bem e mal, Ecce homo. Os comentários dessas passagens são complementados, sempre que necessário, com referências à correspondência, às fontes de Nietzsche (nesse aspecto destaco o diálogo com John Stuart Mill) e às anotações póstumas, revelando com isso a “metodologia” de leitura utilizada pela autora, para evitar qualquer apropriação que continue a reforçar equívocos e mal-entendidos. Em oposição à leitura ditirâmbica, facilitadora e, pior, à “literal”, Scarlett Marton sempre prezou pelo trabalho de ourivesaria, trabalho este que o próprio Nietzsche como que exigia de seus leitores e leitoras: ler um texto com a mesma lentidão e paciência, com as quais o ourives transforma a matéria bruta numa joia preciosa.
É assim, portanto, que a partir dessa ourivesaria a ambivalência de Nietzsche se configura e salta aos olhos. Alguns exemplos: a partir do capítulo “A mulher e a criança”, de Humano, demasiado humano, a mulher perfeita é a que se alia às concubinas, tanto para contribuir com o progresso intelectual do marido quanto com a educação dos filhos; no parágrafo 59 de A gaia ciência, o amor a uma mulher é tão intenso quanto o ódio sentido pela natureza, isto é, ódio, repugnância e desprezo são os sentimentos que o fluxo menstrual provoca nos homens, de tal modo que o amor pelas mulheres é sempre por uma mulher “idealizada”, como que livre das impurezas naturais; em Assim falou Zaratustra se multiplicam as personificações femininas de entidades abstratas – a sabedoria, a vida, a eternidade – em franca oposição às mulheres humanas, demasiado humanas; em “O canto da dança” na Parte II, ainda no Zaratustra, quando a vida pergunta a Zaratustra o que é a sabedoria, a resposta é que esta se assemelha a uma mulher por, talvez, ser “má e falsa”, por ser mutável e teimosa; em Para além de bem e mal, entre os parágrafos 232 e 239, criticando os movimentos emancipatórios, ele critica ao mesmo tempo o comprometimento metafísico da ideia de uma “mulher em si”, de tal modo que a mulher enquanto gênero passa a teorizar a mulher enquanto conceito; desse modo, a crítica do movimento feminista do século XIX, já bastante forte na Alemanha, vai de par com a crítica à filosofia dogmática. Como os filósofos dogmáticos, as mulheres que querem se emancipar buscam universais, conceitos e essências ou ainda pretendem renunciar à mentira, à beleza e à aparência.
Mas, é sem dúvida em relação às mulheres que ousaram tornar-se escritoras, que Nietzsche deixa de lado toda e qualquer ambivalência, tal como o mostram seus julgamentos sobre Madame Roland, Madame de Staël e, em especial, George Sand. Retomando expressões dos irmãos Goncourt, cujos diários Nietzsche conhecia muito bem, chamará Sand em Crepúsculo dos Ídolos, de “a ‘vaca leiteira’ com ‘belo estilo’”. O que teria incomodado Nietzsche nas mulheres escritoras?
Para Scarlett Marton, justamente o fato de escreverem, de ousarem tornar públicos os seus textos, mesmo que seja se utilizando de um pseudônimo masculino: George Sand era o nome artístico de Aurore Dupin. Invasoras na esfera pública, essas mulheres teriam abandonado o que seria, no fundo, o seu lugar natural: a casa, o casamento, a reprodução, tal como a capa do livro, tão significativa e emblemática, aponta. Nessa perspectiva, essas mulheres que ousam escrever são signos da décadence, palavra-chave para entendermos a crítica da modernidade nos últimos textos de Nietzsche.
Desse modo, Scarlett Marton acaba por nos apresentar a filosofia de Friedrich Nietzsche por meio das considerações do filósofo sobre as mulheres. E o faz sem nenhuma comiseração, sem nenhum lamento pelo filósofo, a quem dedica há tantas décadas seus estudos e pesquisas. Nesta perspectiva, ela se posiciona na contracorrente do que é tão habitual e usual, que já se “naturalizou”: a de que o filósofo ou a filósofa a quem dedicamos toda uma vida de estudos e pesquisa, é tratado ou tratada como uma quase divindade, como um herói ou heroína particular, cujas possíveis falhas – quando acontecem! – são sempre perdoadas e justificadas com muitos argumentos. A conclusão do livro mostra isso com clareza, pois ao final desse percurso a ambivalência dá lugar à exclusão. Esse momento coincide, não por acaso, com a crítica às mulheres que escrevem e que, portanto, passam a querer ocupar o espaço público em situação de igualdade com os homens. Esse gesto de exclusão, por sua vez, inscreve Nietzsche no interior da mesma “modernidade”, contra a qual ele dirigiu uma crítica radical.
O livro de Scarlett Marton, portanto, já se constitui num marco fundamental dentro da Nietzsche-Forschung, numa espécie de divisor de águas quando se trata desse tema. Seu valor inestimável e sua singularidade, repito, está no fato de que esse livro não é apenas um livro sobre Nietzsche e as mulheres, mas também e indissociavelmente, sobre a filosofia de Nietzsche.
*Ernani Chaves é professor titular da Faculdade de Filosofia da UFPA. Autor, entre outros livros, de No limiar do moderno (Pakatatu).
Referência
Scarlett Marton. Nietzsche e as mulheres. Figuras, imagens e tipos femininos. Belo Horizonte, Autêntica, 2022, 220 págs.
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