Cartografia do samba carioca

Marlon Griffith , Nuvens, 2012
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Por DANIEL COSTA*

Comentário sobre a coleção de livros “Acervo universitário do samba”

Noel Rosa em seu clássico Feito de oração canção feita em parceria com o pianista Oswaldo Gogliano, o Vadico, cantou que “Batuque é um privilégio. Ninguém aprende samba no colégio”. Passados quase noventa anos da primeira gravação da canção realizada nos estúdios da Odeon por Francisco Alves e Castro Barbosa, um grupo de professores universitários vem mostrar que apesar do samba não ser ensinado em escola alguma, a Universidade deve sim abrir suas portas para os verdadeiros mestres desse ritmo forjado em quintais, tendinhas e morros. É com esse espírito que surgiu nos corredores da UERJ o projeto Acervo Universitário do Samba, coordenado pela professora Andressa Lacerda e com supervisão editorial do professor Luiz Ricardo Leitão, o projeto de extensão vinculado ao Centro de Tecnologia Educacional da UERJ (CTE-UERJ) e à Diretoria de Comunicação Social (Comuns) da Universidade.

Como é de notório conhecimento a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, instituição pioneira na implantação da política de cotas vem sendo vítima dos mais torpes ataques ao menos uma década, para alguns especialistas a instituição fluminense tem servido de laboratório para futuros ataques sistemáticos, visando desde o fim da autonomia e até mesmo o fim do ensino superior público, gratuito e de qualidade, passando por diversas outras situações, como o corte de verbas e subvenções gerando dificuldades para a gestão e implementação de novos projetos, como também perseguições políticas, essas acentuadas no último quadriênio.

Basta ver os projetos apresentados em comissões da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) propondo desde a privatização até a extinção da Universidade. Tais projetos não foram adiante graças a mobilização da comunidade universitária e da sociedade civil. Nas palavras do professor Luiz Ricardo Leitão, a resistência para manter a UERJ de pé veio dos trabalhadores, professores e estudantes da instituição, mas também daqueles que “compreenderam ser a UERJ uma trincheira na luta contra o sucateamento e a extinção do ensino superior público no Rio de Janeiro e no Brasil”.

É nesse cenário, onde ainda segundo Luiz Ricardo Leitão, “não há melhor resposta a política de privatização da Educação Pública do que produzir conhecimento, compartilhando o fruto de nossas pesquisas com a briosa população que paga nossos salários” que surge o projeto do Acervo Universitário do Samba. O projeto busca registrar, preservar e difundir a obra de relevantes nomes do samba e do carnaval do Rio de Janeiro homenageando compositores, carnavalescos, radialistas e outros expoentes da maior expressão de resistência cultural do povo negro do Rio de Janeiro. Trazendo como pano de fundo a construção de cartografias afetivas em torno dos personagens retratados em cada volume, podemos acompanhar além da trajetória dos biografados a relação dos personagens e do próprio gênero com a cidade.

A cartografia afetiva tem início na região de Madureira e do Morro da Serrinha, lugares símbolos na trajetória do imperiano Aluísio Machado, um sambista de fato e rebelde por direito, que ao lado de Beto Sem Braço compôs o samba vencedor do carnaval de 1982, Bum Bum Paticumbum Prugurundum, o hino colocado na avenida pelo Império Serrano. Tratava-se de uma crítica mordaz aos super desfiles que começavam a tomar forma, alijando em alguns casos a própria comunidade que eram a raiz e o fundamento das agremiações.

O segundo volume da coleção continua nos tons do verde e branco, porém agora o destino são as antigas estações da Estrada de Ferro da Leopoldina, especificamente à região de Ramos onde foi fundada a escola Imperatriz Leopoldinense e onde o sambista sertanejo Zé Katimba e sua família firmaram pouso após deixarem o sertão paraibano. Tomando emprestada a conhecida frase do escritor Euclides da Cunha, em Os Sertões, “Antes de tudo um forte”, traça um perfil do paraibano José Inácio dos Santos, ou para o mundo do samba Zé Katimba, compositor do antológico samba Martim Cererê em parceria com Gibi e O teu cabelo não nega, parceria com Serjão e também com Gibi. Compositor de gênio forte, daí o apelido de catimba, o biografado ainda é parceiro de nomes como Martinho da Vila, João Nogueira e segue ativo nas rodas de samba do alto dos seus 90 anos.

O terceiro volume da coleção adota o azul e branco e levando o leitor novamente para os arredores de Madureira e Oswaldo Cruz apresenta a trajetória de Osvaldo Alves Pereira, o Noca da Portela. Passando por Botafogo e São Cristóvão, seria na azul e branco de Oswaldo Cruz, onde ao lado de Picolino e Colombo formaria o Trio ABC, onde firmaria seu nome como um dos maiores campeões de sambas da escola. Comunista de herança paterna, como gosta de afirmar, Noca ainda foi o compositor de clássicos da passagem dos anos 1970 para 1980, como Virada, canção símbolo do movimento das diretas.

Dando uma pausa na biografia de compositores, o quarto volume da série traz a trajetória da carnavalesca Rosa Magalhães, discípula do carnavalesco Fernando Pamplona, um dos responsáveis por elevar o patamar dos desfiles das escolas de samba ao trazer enredos antológicos no Acadêmicos do Salgueiro, Rosa foi campeã dos desfiles do Rio de Janeiro por sete vezes. Da geração de carnavalescos como Arlindo Rodrigues, Joãosinho Trinta, Maria Augusta e Lícia Lacerda, Com uma cartografia que vai da Tijuca, especificamente o morro do Salgueiro, passando também por Ramos terra do já biografado Zé Katimba, Vila Isabel onde fez três carnavais, além de ambientes como a Escola de Belas Artes e a cena teatral carioca, basta dizer que Rosa foi a responsável pela cenografia de Calabar: o elogio da traição, peça de Chico Buarque e Ruy Guerra, suspensa já no ensaio geral, em 1973.

O recém lançado quinto volume leva o leitor para a Zona Oeste carioca, onde através da biografia do compositor Tiãozinho da Mocidade, o professor Luiz Ricardo Leitão leva o leitor por um passeio pelas margens da linha férrea. Desde a estação de Magalhães Bastos até Senador Camará. Prestando uma homenagem ao biografado e a Mocidade Independente de Padre Miguel, o volume passa ainda por figuras como o lendário mestre André que revolucionou o carnaval com sua fantástica paradinha, fazendo da bateria de Padre Miguel a mais quente da cidade, Wilson Moreira, Toco, Gibi, Elza Soares e o controverso Castor de Andrade, patrono da escola.

Para o próximo ano estão previstos os volumes dedicados a Unidos de Vila Isabel com o título, “A “Kizomba” da Vila Isabel: festa da negritude e do samba na terra de Noel” da jornalista e historiadora Nathalia Sarro, integrante do Departamento Cultural da escola e do também historiador Vinícius Natal e o sétimo volume dedicado aos Acadêmicos do Salgueiro, escrito pelo compositor e pesquisador Nei Lopes e pelo jornalista e escritor Leonardo Bruno. Além dos dois volumes programados para o próximo ano ainda há a intenção dos organizadores de realizarem cartografias afetivas do morro da Mangueira e da região que ficou conhecida como Pequena África, berço do samba carioca.

Além de trazer para o público externo ao mundo das escolas de samba a trajetória de grandes expoentes do carnaval e de apresentar a cartografia afetiva do Rio de Janeiro sem abrir mão das contradições que permeiam a cidade e o próprio universo do samba, os volumes são indicados para o público que deseja saber mais sobre o carnaval enquanto instrumento de resistência e de luta, pois se em 2018 foi possível a escola Paraíso do Tuiuti apresentar o samba Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão? e em 2019 a Mangueira toma a Marquês de Sapucaí com sua História pra ninar gente grande foi graças a esses personagens retratados ao longo da série e centenas de compositores, integrantes e anônimos que construíram esse espetáculo chamado carnaval ao longo das últimas décadas.

*Daniel Costa é graduado em história pela UNIFESP, compositor e integrante do Grêmio Recreativo de Resistência Cultural Kolombolo Diá Piratininga.

 

Referências


Coleção Acervo universitário do samba
Luiz Ricardo Leitão. Aluísio Machado: sambista de fato, rebelde por direito.
Luiz Ricardo Leitão. Zé Katimba: antes de tudo um forte.
Autor: Luiz Ricardo Leitão
Marcelo Braz. Noca: da Portela e de todos os sambas.
Luiz Ricardo Leitão. Rosa Magalhães: a moça prosa da avenida.
Luiz Ricardo Leitão. Tiãozinho da Mocidade e os bambas de Padre Miguel.

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