Taiwan – o rufar dos tambores

Imagem: Jiawei Cui
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Por MÁRIO MAESTRI*

Na Ucrânia, como em Taiwan, a possiblidade de radicalização do imperialismo estadunidense é tendência crescente

Taiwan nasceu como bunker estadunidense inconquistável, um porta-aviões natural, a duas braçadas do litoral da República Popular da China. E assim permaneceu por décadas. Por longo tempo, foram vãs as reivindicações da China sobre a grande ilha, e suas ameaças de recuperação pela força da província chinesa desgarrada, que os EUA sempre tomaram como exercícios retóricos. Desde 1949, Taiwan é um protetorado que o imperialismo estadunidense não pretende emancipar. Hoje, porém, a situação inverteu-se. A China e a Formosa – nome dado pelos portugueses – não são mais as mesmas. As tropas chinesas podem desembarcar na ilha e conquistá-la, sem que talvez os EUA ensaiem movimento militar efetivo para defendê-la, o que não é atualmente um compromisso assumido pelo imperialismo. A questão é: se podem, por que não o fazem? E, quando e como pretendem fazê-lo?

Em fins de 1948, as tropas de Chiang Kai-shek, encontravam-se encurraladas no litoral pelo Exército Popular de Libertação chinês, apesar do apoio estadunidense. Sem saída, um milhão e meio de civis e o que restava do exército do Kuomintang [pró-burguês e pró-imperialista] refugiaram-se na ilha de Taiwan – na língua local –, protegidos pelos menos de 180 km de mar do estreito. Toda a armada chinesa acompanhara a retirada das tropas de Chiang Kai-shek. Nas décadas seguintes, a situação permaneceu imutável na República da China, designação grandiloquente do Estado fantoche fundado sob a proteção da marinha ianque. A poderosa 7ª Frota fora formada em 1943, tendo como base Yokosuka, no Japão, a mais de dois mil quilômetros da ilha de Formosa. Ao igual que a Itália e a Alemanha, países derrotados na II Guerra mundial, o Japão segue ocupado por importantes tropas ianques. [GUILLERMAZ, 1970; GUILLERMAZ, 1973.]

Praticamente sem marinha de guerra em 1949, o Exército Vermelho dos Operários e Camponeses da China se acumulava no litoral, para rechaçar eventual desembarque imperialista, apoiado na ilha de Taiwan. Sobretudo em 1954 e 1958, a China bombardeou as maiores ilhas controladas pelos nacionalistas no estreito de Taiwan, procurando ocupá-las, no que teve sucesso quanto às ilhas de Yijiangshan e Dachen. Foi impedida de prosseguir nessa ofensiva pela 7.a Frota. Em 1972, a situação internacional conheceu radical reviravolta. O acordo entre Mao Tsé-Tung e Nixon, em um viés anti-URSS, abriu espaço para a restauração capitalista na China, assumida como política oficial de Estado em fins de 1978.

No novo cenário, enquanto se avançava a “via chinesa para o capitalismo” em Pequim, o presidente democrata Jimmy Carter, em Washington, em 1° de janeiro de 1979, anunciava o reconhecimento da China como o “único governo legal”, o que já fora feito na ONU e pela grande maioria das nações. Apesar do rompimento estadunidense das relações diplomáticas com Taipei, prosseguiu mais discretamente o armamento e o apoio à ilha, através do “Taiwan Relaction Act”, de abril daquele ano, aprovado pelo congresso estadunidense. Ele permitia a venda de armas “defensivas” contra qualquer tentativa de modificar o status quo de Taiwan. O que a China não tinha condições de fazer. Em 1979, Pequim propôs uma via de integração de pacífica de Taiwan, ainda sob o governo do Kuomintang, através da doutrina constitucional chinesa de “um país, dois sistemas”, enunciada por Deng Xiaoping. A proposta formatou a entrega, em 1997, de Hong Kong ao governo chinês, pela Inglaterra, metrópole colonial do enclave financeiro desde 1842.

Em 1997, a China encontrava-se ainda em situação de fragilidade relativa e Hong Kong pesava fortemente na sua economia. O PIB do enclave financeiro era então 18% do chinês – hoje, é apenas 2,7%, e segue caindo. Em 1999, a mesma solução enquadrou a devolução de Macao pela ex-metrópole portuguesa. O princípio constitucional chinês garantia amplos direitos autonômicos quanto à administração e, sobretudo, o respeito à ordenação capitalista vigente. A restauração capitalista em aceleração facilitou a aproximação das direções políticas da China continental e de Taiwan, que o Partido Nacionalista [Kuomintang] dirigiu por décadas, com mão de ferro. A nova ordem chinesa e a proposta de “um país, dois sistemas” tranquilizavam a burguesia e a oligarquia taiwanesa. A aproximação fortaleceu-se com o avanço da integração da economia da ilha à China continental, em acelerado desenvolvimento capitalista. Tudo apontava para um desenlace sem gritos e ranger de dentes. [MAESTRI, 2021.]

 

A queda do Muro

Em inícios de 1990, após a dissolução da URSS e a restauração capitalista nas nações de economia nacionalizada e planificada, o mundo ingressou em três décadas de hegemonia indiscutível do imperialismo estadunidense e de neoliberalismo desenfreado. No contexto do novo ordenamento unipolar estadunidense, o grande capital mundial continuou migrando para o antigo “Império do Meio”, que se tornara outra vez um “negócio da China”, com seu mercado amazônico e multidões de trabalhadores explorados sem piedade.

Por sua vez, a Rússia perdera territórios e populações, tivera sua indústria e riquezas naturais estatais assaltadas, privatizadas, delapidadas. A população conheceu as penas do inferno. O país transformou-se em um verdadeiro quintal do imperialismo, sob o governo subserviente de Boris Yeltsin e das camadas sociais nacionais que contribuíram para aquela hecatombe histórica. Os USA passaram a se impor, pela força das armas, às nações que não se submetiam sem resistência: Iugoslávia, Sérvia, Iraque, etc. O imperialista estadunidense vislumbrava diante de si um século de domínio, pisando cada vez mais forte nos trabalhadores, nas populações, nas nações. Mas não era o que estava inscrito nos astros.

Com o fim da Era Yeltsin [1991-99], na Rússia, articulou-se uma reação em torno sobretudo de uma burguesia nacional, em defesa de seus interesses, apoiada na restauração de algumas grandes empresas estatais da era soviética – petróleo, gás, armamento, indústria aero-espacial, etc. O governo de reconstrução nacional-capitalista teve em Vladimir Putin seu principal dirigente. A nova ordem procurou simplesmente integrar a Rússia capitalista à divisão internacional do trabalho, sobretudo no âmbito da União Europeia. Chegou-se a propor o seu ingresso na Otan, quando da última visita de Bill Clinton a Moscou.

Uma colaboração-integração da Rússia, senhora de poderoso armamento nuclear e imensos recursos naturais, sobretudo com a Alemanha, nação industrial de ponta, transformaria a Europa em uma potência mundial autônoma. O projeto foi vetado pelos EUA e prosseguiu o cerco à Rússia pela OTAN, iniciado quase imediatamente após a destruição da URSS. Retomou-se o projeto histórico do imperialismo europeu, agora submetido ao capital estadunidense: a transformação da Eurásia, com destaque para a Rússia, em colônia global. Projeto retomado, não criado, pelo III Reich quando da invasão da URSS, em 22 de junho de 1941. Sem saída, o Estado russo empreendeu reação defensiva aos USA e à Otan. [MAESTRI, 2022, 1.]

O ajantarado chinês promovido pelo imperialismo, no qual o capital internacional se banqueteara com apetite pantagruélico, também resultou indigesto. Em algumas poucas décadas, a China se transformou de produtora de bugigangas em nação exportadora de produtos crescentemente tecnológicos, com ativos grupos monopólicos públicos e privados exportadores de capitais. [PROBSTING, 2014; SPERANCETE, 2019.] Na acepção leninista do termo, a China surgiu como nação imperialista, que, por seu enorme dinamismo, exigia a expansão incessante de seus mercados mundiais, para não soçobrar. [LÉNINE, 1984]. Movimento organizado pelo Estado chinês através da mega-iniciativa “Um Cinturão – Uma Rota”. A exteriorização da expansão mundial do capital monopólico chinês chocou-se, inevitavelmente, com o imperialismo estadunidense, ao lhe disputar espaço. Ainda que hegemônico mundialmente, os USA conheciam processo de regressão sobretudo manufatureira, devido em grande parte à deslocalização de suas indústrias, à procura de mão-de-obra super-explorada na China, Tailândia, Bangladesh, Sri Lanka, México, etc.

Impunha-se ao imperialismo estadunidense resposta às dissidências russa e chinesa, que ameaçavam sua posição hegemônica e, assim, os fundamentos de sua dominação e prosperidade parasitária. Apoiado em sua supremacia militar, financeira e diplomática, os USA dispunham de janela de tempo, que se estreitava, para desorganizar o poderoso Dragão Chinês que se fortalecia sem cessar. A proposta dominante do establishment estadunidense era avançar primeiro a destruição-desorganização da Rússia, para, a seguir, proceder do mesmo modo com a China, países que fortaleciam suas relações em um sentido defensivo. As razões de iniciar o ataque pela Rússia eram muitas. Seu cerco e a russo-fobia iniciaram muito antes da destruição da URSS. A União Européia e a Otan se submetiam disciplinadamente ao tacão estadunidense. O ataque à China exigia avançar ainda nas alianças regionais e no preparo militar no Indo-Pacífico. [MOSCATELLI, 2021; MAESTRI, 2022, 1; CASA BRANCA, 2020.]

 

Russia delenda est – e a China, também!

Em reação defensiva, o Estado russo atualizara o armamento nuclear e modernizara o exército de terra, fortemente reduzido em relação aos tempos da URSS, talvez em demasia. A prioridade foi dado às tropas de alta integração e avanço tecnológico, com destaque para as forças terrestres e aéreas de intervenção rápida, mais ágeis e mais leves, adaptadas ao confronto de antagonistas irregulares e desigualmente armados, características dos embates mundiais nos últimos trinta anos. Reorganização militar que garantiu sucesso na Chechênia, na Geórgia, na Ucrânia em 2014, na Síria, etc.

Foi desconsiderada a possibilidade de invasão pela OTAN dos territórios russos, a ser dissuadida pela certeza de que seria enfrentada com armas nucleares táticas. Opções que obrigou a Rússia a defrontar a Ucrânia, apoiada pela OTAN, em 24 de fevereiro de 2022, com forças terrestres numericamente inferiores – em torno de 160 mil soldados russos, contra 700 mil ucranianas. Em alguns setores pontuais, a Rússia superou tecnologicamente o armamento estadunidense. [Kashin & Kramnik: 2022.] O governo russo preparou-se com singular diligência na área econômica, financeira, diplomática, etc. para o previsível ataque da OTAN-EUA.

Por sua vez, apoiado em seu enorme dinamismo econômico, o governo de Pequim empreendeu, a toque de caixa, ambiciosa modernização de suas forças armadas. Deu-se enorme ênfase a literal construção de uma poderosa marinha de guerra, inexistente quando da Libertação, em 1949, considerando-se que o ataque imperialista à China se daria no Pacífico, com eventual bloqueio das rotas de exportação-importação chinesas. Hoje, a marinha do Exército Popular de Libertação, com 360 navios de guerra, supera em número de belonaves a marina estadunidense, que tem 300, ainda que ela tenha maior experiência de combate e seus navios maior tonelagem média.

Mesmo sendo a 7a. Frota a mais poderosa, os navios estadunidenses encontram-se espalhados através de todos os mares. A China possui a maior frota pesqueira do mundo, o que constitui um recurso também militar. [URBINA, 2020.] Possui dois porta-aviões apenas construídos e se propõe a construção de dois outros. A China tem ampliado seu armamento atômico estratégico, limitado; seus mísseis de baixo, médio e longo alcance; sua aviação militar.

Suas forças armadas tendem a superar mais e mais as estadunidenses, em um confronto necessariamente regional. O rearmamento acelerado e a aliança defensiva de Moscou e Pequim contribuem para a multipolaridade internacional de fato, inaceitável pelo imperialismo estadunidense, já que desperta sentimentos mundiais de autonomia nacional. Os tradicionais “jogos militares”, de 13 a 27 de agosto, com a participação da Venezuela, Irã, China, Rússia e dezenas de outras nações, serão realizados, nesse ano, no noroeste da Venezuela!

A decisão de ataque direto, ainda que não frontal, à Rússia e à China teria sido tomado durante a primeira administração Barak Obama [2010-2014]. Para pôr em marcha a ofensiva, preparou-se a Ucrânia como gatilho de provocação conclusiva contra a Rússia e, Hong Kong e Taiwan, para o mesmo fim, em relação à China. O mar da China Meridional também foi selecionado, em forma secundária, como um eventual espaço de confronto localizado com a China. A descontinuidade temporal das duas ofensivas, a primeira contra a Rússia, a segunda contra a China, apoia-se na consciência dos estrategistas ianques da forte possibilidade dos USA e de seus aliados de vencerem uma guerra contra a Rússia ou contra a China, separadas. E a certeza dos USA serem derrotados em um confronto concomitante com as duas nações.

E.A. Colby, ex-membro do Departamento de Defesa dos USA, declarava recentemente, sem pruridos. “[…] estamos seguros de não conseguir combater, e muito menos vencer, uma guerra contra Pequim e Moscou simultaneamente.” [PETRONI. 2022, 7] Vimos que a campanha contra a Rússia apoia-se na radicalização de condições em construção há mais de um século, literalmente desde 1917. A campanha contra a China encontra-se ainda em fase de articulação, como registra as recentes declarações do G7, do Dragão Chinês ser um adversário estratégico e, logo a seguir, da reunião decenal da Otan, em 30 de julho passado, com a presença do Japão, da necessidade da extensão da organização ao Pacífico, para “conter a China”, definida como o maior inimigo do Ocidente. [MAESTRI, 2022, 2.]

Vejamos a cronologia articulada da organização do crescente assédio à Rússia e à China. Em 21 de novembro de 2013 a 22 de fevereiro de 2014, o golpe de Estado na Ucrânia, seguido da aceleração do armamento e da exacerbação da russofobia naquele país, registraram o lançamento das operações ativas contra a Rússia. Elas previam sua conclusão com o assalto das repúblicas populares do Donbass, que obrigaria o exército russo a intervir. Para tal, foram reunidos importantes tropas e armamentos e construídos bunkers, fortes e posições defensivas-ofensiva no Donbass sob controle ucraniano À contrarrevolução na Ucrânia foi dado o nome apologético pela grande mídia e pelo imperialismo de “Segunda Revolução Laranja”, entre outros.

Os sucessos de 2022, atualmente em curso, registram que aquela iniciativa do imperialismo alcançou muitos resultados perseguidos: necessidade de intervenção militar russa contra um exército bem armado e numericamente superior, apoiado firmemente pela Otan; fortalecimento da Otan e da russofobia extremada, sobretudo na Europa; substituição do gás russo pelo estadunidense, etc. Entretanto, os resultados estratégicos buscados, como a desarticulação da economia russa; a desvalorização do rublo; o isolamento diplomático de Moscou, etc., e, como conclusão, a desorganização estatal russa, frustaram-se irremediavelmente. Em vez de cair Putin, caíram dois alicerces da agressão anti-russa: Boris Johnson, da Inglaterra, e Mario Draghi, da Itália. E o governo de Olaf Scholz conhece rápido e enorme descrédito.

Em vez de se dividir, como esperado, o BRIC tem se fortalecido. E a ofensiva contra a Rússia ensejou reações inesperadas, como a crise energética europeia; a aceleração da inflação e da desvalorização do euro; a crescente regressão do apoio popular e nacional europeu à guerra da Otan, etc. Mais e mais, a Ucrânia levanta-se como uma Espada de Dâmocles sobre a agressiva e prepotente Otan, que terá que fazer, das tripas, coração, para pôr fim ao conflito, antes do desembarque na Ucrânia do terrível general russo: o inverno.

 

Atacando a China pelas bordas

A ofensiva contra a China foi concomitante à campanha que resultou no golpe de Estado na Ucrânia. Em março-abril de 2014, estudantes ocuparam, por 24 dias, sob os holofotes da grande mídia internacional, o parlamento de Taiwan, para protestar contra acordos do governo (Kuomintang) que estreitavam os laços econômicos com o governo chinês. A grande mídia e o imperialismo EUA batizaram poeticamente o movimento anti-chinês de “Revolução dos Girassóis”. Em uma dança sincronizada, apenas cinco meses mais tarde, quando se consolidava a contra-revolução na Ucrânia, era a vez de Hong Kong, com sua “Revolução dos Guarda-Chuvas”. Movimento também dirigido por estudantes, com algum apoio da população, devido às não raro horríveis condições de existência dos trabalhados naquele centro financeiro. O movimento arrastou-se por longos meses, retornando em 2019, com violência crescente.

A campanha “democrática” de Hong Kong exigia a manutenção dos privilégios de que gozava a comunidade local, segundo o tratado “um país, dois sistemas”, e a eleição direta do governo. O que significava, nos fatos, a independência em relação à China. Em torno de 3,4 dos sete milhões de habitantes de Hong Kong mantém a nacionalidade inglesa. Os manifestantes passaram a reivindicar diante das embaixadas da Inglaterra e dos EUA que aquelas nações “libertassem” a cidade. Surgiram lideranças e organizações claramente secessionistas. Regiamente financiadas, as direções dos movimentos estudantis de Hong Kong e de Taiwan viajavam para se encontrar, se consultar, coordenar suas ações. Era a “Primavera oriental” em marcha, segundo a grande mídia internacional e o imperialismo. (MAESTRI, 2019.)

O grande objetivo da “revolução colorida” de Hong Kong encontrava-se a mais de setecentos quilômetros. Ela fora construída com o principal escopo de comprovar, para a população de Taiwan, o não funcionamento da doutrina “um país, dois sistemas”. Sobretudo como resultado das manifestações de 2014 em Hong Kong, o Partido Democrático Progressista, liberal, anti-chinês, pró-imperialista, independentista, assumiu o governo em Formosa, em 2016. As manifestações de Hong Kong, que dominaram o debate eleitoral de Taiwan, de 2016, teriam também contribuindo para a reeleição da presidenta Chang Kai-Shrek (1956), secessionista anti-chinesa, em 2020.

O Partido Democrático Progressista, defensor da independência, foi fundado em 1986, quando se instalava a ordem unipolar estadunidense, vitoriosa em 1991, com a dissolução da URSS e a restauração capitalista nos países de economia nacionalizada e planificada. Em setembro de 2007, pouco antes da entronização do democrata Barak Obama, o PDP aprovou resolução rejeitando a tradição e o ideário de Chang Kai-Shrek, que defendiam a reunificação capitalista e anti-comunista da China.

O PDP e Tsai Ing-wen propõem, ao contrário, identidade nacional taiwanesa e reivindicam, sem rodeios, a independência, sabendo que, para a China, superar essa linha vermelha, significa a reunificação pelas armas. Tsai Ing-wen declarou o rompimento com o princípio de “um país, dois sistemas” e, em 16 de julho de 2020, dirigiu as manobras do exército de Taiwan em uniforme de combate, com imensa repercussão midiática mundial. O PDP chegou a ensaiar um plebiscito sobre a independência, desautorizado pelos EUA.

A ascensão do PDP ao governo e ao poder deu-se no bojo de uma espécie de “revolução cultural”, apoiada em uma verdadeira reinvenção da tradição. Estátuas de Chang Kai-Chek foram destruídas, na procura de borrar o passado chinês, pós 1949 e anterior à ocupação japonesa, em 1895. As escolas, universidades, mídia, cinema, etc. enfatizaram as raízes culturais e étnicas romantizadas das comunidades autóctones taiwanesas, que sofreram simbiose secular com a migração de populações de origem, cultura e etnia chinesa meridional. A partir de 1948, a população da ilha, com destaque para os autóctones, minoritários, haviam sido reprimidos e desprezados pela ditadura do Kuomintang, acusados de colaboracionismo com os japoneses.

Esse ensaio de retorno às raízes, tem, como Idade de Outro, o meio século de colonização japonesa, de 1895 a 1945, que se confundiu com a expansão e modernização capitalista em um espaço econômico-social semi-feudal. Foi nesses anos que se estabeleceram as primeiras indústrias modernas em Takasago, nome então, em japonês, da grande ilha. Nos anos 1930, milhares de aborígines e descendentes de chineses morreram dando vivas ao Imperador e à bandeira do sol nascente.

Teruo Nakamura, o último japonês a se render, em 1974, era um taiwanês, que portara o nome nativo de Attun Palalin, em sua ilha natal, para onde retornou. Hoje, o ideal de vida da cultura taiwanesa dominante é o Japão, não os Estados Unidos. Em sondagem recente, 60% da população de Taiwan declarou que o Japão seria o “melhor país da terra”, espécie de terra da promissão. Com a transferência do governo ao PDP, concluía-se o abandono pelo imperialismo do Kuomintang, necessário ao envenenamento das relações de Taiwan com a China. [MAESTRI, 2019; HAILONG, 2021; CUSCITTO, 9, 21.]

 

Taiwan ontem e hoje

Taiwan fora, por longas décadas, o porta-avião inafundável diante da China, onde os Estados Unidos possuíam bases aéreas, desmontadas quando da aproximação Mao-Nixon. Um estreitamento de relações que suspendeu igualmente o compromisso de defesa de Taiwan, avançado quando da Guerra da Coréia. Durante esse período, em que Pequim estreitava laços com o Kuomintang, a China não tinha condição de invadir a grande ilha. A marinha e a força aérea chinesa eram frágeis e tecnologicamente atrasadas. A partir dos anos 2010, quando o imperialismo americano abandona o antigo aliado político taiwanês e transfere suas fichas ao PDP, independentista, retornando ao assédio estratégico da China, o Exército de Libertação Popular conhecia fortalecimento e modernização que se acelerariam nos anos seguintes.

Então, a invasão de Taiwan – e das suas grandes ilhas no estreito – pela China tornava-se uma operação cada vez mais factível, com perdas militares volumosas, mas decrescentes, ainda que difíceis de serem calculadas, devido também às importantes determinações políticas da operação: grau de resistência do exército taiwanês; nível de apoio dos Estados Unidos, Japão, etc. [YOU, 2021.]

A ilha de Formosa encontra-se a uns 180 quilômetros da costa chinesa. Com 400 quilômetros de extensão e 150 km de largura máxima, possui aproximadamente 36 mil quilômetros de superfície. Entretanto, dois terços do seu território é ocupado por uma cadeia de montanhas, com altura máxima de quatro mil metros, que divide longitudinalmente a ilha. A faixa litorânea ocidental – uns 12 mil quilômetros quadrados -, de frente para a China, abriga a imensa maioria de seus 23 milhões de habitantes. Parte dessa nesga de terra é ocupada pelas plantações de gêneros alimentícios, importados em grande quantidade do exterior. Na banda litorânea ocidental, apenas uns quarenta quilômetros separam o mar das escarpas das montanhas.

Taiwan tem realizado compras milionárias crescentes de armamentos de alta tecnologia nos Estados Unidos. Inicialmente, a sua política apoiava-se na superioridade aérea, marítima e de oposição ao desembarque, que mantinha sobre a China, devido ao apoio do imperialismo. A seguir, passou a articula-se em torno de alguns princípios centrais. Elevada vigilância da aproximação do inimigo, para combatê-lo na travessia do estreito, atacando seus navios e aviões em alto mar. Se insuficiente essa defesa, destruição das cabeças de ponte das tropas chinesas no litoral ocidental, avaro de bons pontos de desembarque. Na eventualidade do sucesso do desembarque, prosseguimento da resistência nas zonas urbanas e nas montanhas. Um esforço militar limitado mais e mais pela queda demográfica do país, pela necessidade de reduzir os gastos militares, pelo recurso, em 2017, a um exército profissional, hoje de em torno a 200 mil soldados. [ DAUPHIN, 2017; CUSCITTO, 1, 2021; LI-SHIH, Lu.]

Essa doutrina, já assentada na compreensão de um combate assimétrico, foi reafirmada em 2021, apesar de manter-se ancorada no passado e já estar ultrapassada, ao desconhecer o crescimento e modernização do armamento chinês. A armada chinesa é capaz de cercar facilmente Taiwan, enquanto suas baterias de mísseis navais e de terra, de curto, médio e longo alcance, impedem a aproximação de navios hostis em um raio de centenas de quilômetros de Formosa. Os mísseis de extrema precisão permitem que os aeroportos; portos militares; fábricas de armamento; estações de radar; centros de defesa, de aquartelamento, de comunicação; as centrais de produção e distribuição de energia, etc., concentrados em um território estreitíssimo, sejam fortemente comprometidos, antes do início de uma eventual invasão.

A previsão de um eventual ataque de surpresa é hoje uma ilusão. Desde o agravamento da retórica independentista do PDP e das incessantes visitas de militares, parlamentares e funcionários do governo USA, aviões chineses superam a chamada “zona de defesa aérea” taiwanesa, bordejando a faixa marítima e aérea de 22 quilômetros, sobre as quais as nações independentes possuem soberania. Os caças e bombardeios atuais chineses superam essa distância em menos de um minuto. A China respondeu duramente à provocação posta pela visita de Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes dos EUA e terceiro magistrado estadunidense depois do presidente e do vice, em 2 de agosto.

Anunciando manobras militares marítimas, aéreas e missilísticas com tiro real, em seis áreas de manobras, rentes às águas territoriais de Taiwan, que não reconhece, bloqueou a ilha por diversos dias, após a partida de Nancy Pelosi. Seguindo as provocações estadunidenses, com o envio de novas comitivas para Taiwan, o governo chinês anunciou que “vai organizar patrulhas regulares de combate” em redor de Taiwan. A China pode, assim, encostar seus navios e aviões às costas de Taiwan, sob a escusa da realização de manobras ou patrulhas, antes de iniciar um eventual ataque geral.

 

Caindo na real

Atualmente, os especialistas ocidentais descreem da possibilidade de Taiwan combater e deter a China no estreito. Propõe mudança da política de sua defesa, que deveria deixar de comprar armas pesadas, refinadas e caríssimas – tanques, helicópteros, submarinos, etc. – para investir na aquisição de armamento tecnológico de defesa próxima, como o utilizado na Ucrânia, no início da operação russa, dando-se como exemplo as bazucas anti-tanques Javalin. O que permitiria causar fortes perdas às forças armadas chinesas, no caso de uma invasão. Entretanto, a guerrilha nas cidades e montanhas, última linha de defesa, sobretudo isolada de apoio externa, já não é mais guerra, mas limpeza de um território, após o combate. As comparações com os combates no leste europeu são risíveis: a Ucrânia tem quarenta vezes a superfície de Taiwan e recebe incessante fornecimento militar através de suas fronteiras.

A grande questão posta pela consciência do caráter indefensível de Taiwan, ainda mais isolada, é: as tropas da ilha resistiriam em bloco sabendo que sofrerão derrota inevitável, sem terem para onde se retirar, após um combate mortífero? Aceitariam resistência até o último taiwanês como mero momento intermediário da campanha EUA contra a China? O abandono dos aliados e das tropas locais no Afeganistão pelos EUA causou forte agitação e intranquilidade nas filas do PDP.

As visitas de Nancy Pelosi, seguidas de parlamentares e funcionais, nos dias e semanas seguintes, foram também devidas certamente à necessidade de reconquistar a confiança do governo taiwanês de que não será abandonado, no caso de uma invasão chinesa. Entretanto, a falta de resposta ao bloqueio chinês de agosto certamente aprofundou essa desconfiança. Não há compromisso dos EUA com a defesa direta do “porta-aviões” cada vez mais “afundável”, diante de um ataque chinês. Mas, então, por que a China não invade Taiwan, apesar das provocações do PDP e de seu prepotente mentor?

A reintegração de Taiwan ao território nacional não é uma birra do governo chinês. É uma necessidade imperiosa da defesa militar do país e das vias de exportação e importação das quais ele depende. Trata-se, portanto, de uma operação incontornável, que a China prefere efetuar, se possível, por meios pacíficos. Os chineses lançariam ataque a Taiwan apenas obrigados, como no caso da Rússia, na Ucrânia. Hoje, a superioridade quantitativa e qualitativa das suas forças armadas, em inexorável crescimento, garantem uma vitória certa dessa operação militar. Entretanto, é difícil prever o seu preço militar, político, econômico, diplomático, como proposto.

 

Bunkers, túneis, refúgios, armadilhas

Por décadas, Taiwan se preparou para um desembarque chinês. Possui bunkers, túneis, refúgios, armadilhas, forte artilharia antiaérea, mísseis, aviões, etc. Há apenas catorze praias para desembarque possível na costa ocidental. Os pontos de interesse militar e infraestruturais seriam em torno de mil, exigindo grande dispêndio dos caros mísseis de avançada tecnologia. Mais grave ainda. Os especialistas estimam perda de até dezenas de milhares de soldados chineses na conquista de Taiwan e das grandes ilhas do estreito. O que teria grande repercussão interna na China. Para minorar essas eventuais perdas, os chineses estão investindo em múltiplos tipos de drones, para efetuarem ações militares antes realizadas por combatentes. Um confronto militar direto com Taiwan ensejaria a morte de um número difícil de prever de civis, devido à densidade habitacional da costa ocidental. O que dificultaria, por décadas, uma incorporação posterior soft da população da ilha à sociedade chinesa.

No mínimo, os USA, Japão, Austrália, etc. ajudariam Taiwan em forma indireta, como a OTAN faz hoje na Ucrânia – interrupção e proteção das comunicações, seleção dos alvos chineses a serem atacados, etc. O imperialismo estadunidense organizaria um amplo movimento de sanções e boicotes, por parte de seus aliados orientais e ocidentais, golpeando o dinamismo da economia chinesa, em queda, nos últimos tempos, devido à pandemia e às dificuldades do comércio internacional. A China conhece hoje desemprego, sobretudo entre a juventude – 20%; queda do consumo; estagnação dos salários, etc. Os USA procurariam sobretudo interromper a cadeia produtiva entre a China e a economia internacional. [OPOVO, 2021; LI-SHIH]

No pior dos casos, diante de condições julgadas positivas, entre elas, o apoio decidido de aliados regionais e europeus, os Estados Unidos promoveriam o bloqueio das linhas navais comerciais chinesas do Indo-Pacífico, o que levaria a um confronto direto da marinha de guerra da China e a do bloco imperialista . Em verdade, talvez seja essa seja a opção extrema considerada pelo imperialismo estadunidense, para a qual não conta ainda com as condições necessárias: envolvimento da Otan na região; apoio decidido do Japão e da Austrália, sobretudo. A Coréia do Sul está impossibilitada de participar em uma tal operação pelo “irmão” do Norte, com pequenos mas afiados dentes atômicos. A China propôs como prazo de recuperação da suserania sobre Taiwan a celebração do I Centenário da libertação do país, em 2049. Ou seja, sua opção prioritária é congelar o status quo de suas relações com a província rebelde, o que os EUA jamais permitirão. [PETRONI, 2021.]

Possivelmente, mesmo em uma situação limite, como a declaração de independência de Taiwan, a China não empreenderá o assalto direto à ilha. Acredita-se que optaria por bloqueio aéreo e sobretudo naval, impedindo o abastecimento de Taiwan em armas e produtos estratégicos. Deixaria clara sua suserania sobre a “província desgarrada” e ao governo de Taiwan, o ônus de eventual início de confronto militar, que poderia, nessa situação, ser modulado. Ou seja, confronto aéreo ou naval seguido de trégua e negociações. O cerco à Taiwan de agosto deste ano teria sido um ensaio geral dessa alternativa.

Paradoxalmente, para os EUA, também esse não é o melhor momento para um confronto no estreito de Taiwan, como proposto. Não reuniram ainda associados seguros para uma operação de tal vulto, ainda mais, agora, com a derrota dos conservadores na Austrália; encontra-se envolvidos profundamente no ataque indireto à Rússia, enquanto já fraqueja o apoio de seus aliados; armamentos que deviam estar sendo enviados para o Pacífico, terminam na Ucrânia, retardando o preparo militar de operações contra o inimigo principal. Essas razões explicariam a praticamente ausência de qualquer resposta ao bloqueio chinês de Taiwan, depois da visita de Nancy Pelosi. (O POVO, 2021.)

Apesar da moderação da China, a tendência dominante no imperialismo estadunidense é a crescente exacerbação do assédio à China e à Rússia. Na Ucrânia, com a materialização da possibilidade de uma próxima vitória russa, os EUA radicalizam o nível de confronto: fornecem informações; entregam armamento de longo alcance; orientam os ataques; incentivam os bombardeios a alvos civis no território russo; apoiam atos terroristas. Tentam envolver a Rússia em uma espirar de retaliações de igual teor, a fim de criar as condições para intervenção da Otan, cada vem mais problemática.

Apesar das provocações, a Rússia moderou suas ações militares, preocupada com atos desesperados dos EUA, como como o bombardeio do complexo nuclear de Zaporizhzhiano, no caso de colapso da defesa ucraniana. A derrota na Ucrânia, após a sofrida na Síria e, sobretudo, a retirada desastrada no Afeganistão, seriam sinais de fraqueza estrutural dos EUA, com duros reflexos sobre sua hegemonia mundial em crise. São-lhe, portanto, inaceitáveis. Na Ucrânia, como em Taiwan, a possiblidade de radicalização do imperialismo estadunidense é tendência crescente. Também em Taiwan se houve o rufar dos tambores e o cheiro da pólvora, cada vez mais próximos e ameaçadores.

*Mário Maestri é historiador. Autor, entre outros livros, de O despertar do dragão: nascimento e consolidação do imperialismo chinês (1949-2021) (FCM Editora).

 

Referências


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