Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília

Imagem: Patrick Heron
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Por AFRÂNIO CATANI*

Comentário sobre o livro do crítico Mário Pedrosa

Haroldo de Campos afirmou certa vez que quem escreve para jornal impresso destina seus textos ao túmulo. Agora sob a forma digital, ainda é possível recuperar, ao menos parcialmente, tais escritos. Tentando desmentir essa afirmativa (ou profecia), Aracy Amaral organizou pacientemente este volume de críticas e trabalhos de Mário Pedrosa (1900-1981), publicados em sua maioria na imprensa diária, englobando um período situado entre 1942 e 1969.

A coletânea apresenta mais de 70 artigos (sendo que 50 saíram originalmente no Jornal do Brasil) de Mário, divididos em duas grandes partes: Artes Plásticas e Arquitetura. A primeira é dedicada aos artistas, individualmente – pintores, escultores, desenhistas e gravadores –, enquanto a segunda, ocupando-se de Brasília, “confere toda uma significação singular ao drama histórico, cultural e político da criação da nova capital” (p. 4).

 

Variedade

O próprio autor reconhece que seus escritos cobrem uma grande variedade de assuntos que chega, nesses quase 30 anos de atividades, “ao puro ecletismo”. Entretanto, tal característica não é negativa; ao contrário, pois através do presente livro se tem um balanço crítico das artes plásticas e da arquitetura (por meio da análise das mostras individuais e coletivas, de ideias e projetos) que foram concebidas e circularam entre nós, do início dos anos 1940 ao final da década de 1960.

O volume inicia-se com “Portinari: de Brodósqui aos Murais de Washington”, um longo trabalho escrito em 1942 por ocasião da inauguração dos painéis do pintor na Biblioteca do Congresso da capital estadunidense. Fala-se aí da infância pobre de Portinari, passada em Brodósqui, dos contatos preliminares com a arte que o iria consagrar e dos êxitos e fracassos que o cercaram nos primeiros anos.

Acompanha sua carreira depois da volta da Europa – viagem concretizada graças a um prêmio conquistado em 1928, com o retrato do poeta Olegário Mariano –, ao longo de toda a década de 30, salientando que este “não chegou ao afresco por um simples incidente exterior” e que o seu muralismo não foi apenas um eco retardado do envolvente movimento mexicano.

Observando-se o próprio desenvolvimento interior de sua arte “se pode ver que foi, por assim dizer, organicamente, à medida que os problemas de técnica e de estética iam amadurecendo nele, que Portinari chegou diante do problema estético interior que ele pela primeira vez o abordou” (p. 12).

Os muralistas mexicanos visavam principalmente exprimir, na frente estética ou espiritual, os ideais da Revolução Mexicana, sendo que tais pintores acabavam muitas vezes por sacrificar “as qualidades estruturais intrínsecas da realização às necessidades interessadas da intenção extra pictórica, da propaganda, do zelo proselitista; o pintor brasileiro nunca sacrificou as exigências plásticas ao elemento que nele sempre foi externo ao assunto” (p. 15). Completam o estudo observações bastante detalhadas acerca dos referidos murais.

Ainda nesta primeira parte do livro, dedicada às Artes Plásticas, quase nada escapa ao crítico: há artigos sobre as duas primeiras Bienais paulistas (em 1951 e 1953), comenta exposições de Volpi, Lívio Abramo e Lasar Segall, entrega-se por completo à pintura “terra-a-terra” e sensorial de Di Cavalcanti e estuda os 20 anos da carreira de Milton Dacosta.

Embebe-se no “desprezo pelos detalhes” dos traços de Djanira, fala rapidamente de Pancetti, Fernando Lemos, Flexor, Krajcberg, Manabu Mabe, Tomie Ohtake, Millôr Fernandes e Darcílio Lima, além de dedicar dois artigos cheios de admiração a Lígia Clark e Hélio Oiticica. Admiração (e emoção) que se intensificam no texto sobre Ismael Nery (1900-1934), seu grande amigo desde os idos de 1920, que “era, em ideia, tudo, bailarino, pintor, arquiteto, poeta e filósofo, moralista, reformador social”. Pintor não profissional, artista total – “daí ter vivido sobretudo em potencialidades” –, homem cheio de contradições: é assim que os olhos e o coração de Mário se manifestavam sobre Ismael Nery, morto precocemente.

 

Brasília

“Brasília é muito mais que urbanismo, é uma hipótese de reconstrução de todo um país” (p. 334). Assim Mário Pedrosa se expressava, em 1959, a respeito da nova capital, que estava sendo construída no Planalto Central do Brasil, a mil metros de altitude e a mil quilômetros do Rio de Janeiro e de São Paulo – as duas metrópoles do país. Sendo, talvez, o único crítico brasileiro a se empolgar com a criação de Brasília, entendia que a construção da cidade seria o coroamento de todo um processo arquitetônico que tivera início algumas décadas antes com Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Carlos Leão, Jorge Moreira, Affonso E. Reidy e Ernani Vasconcelos.

Tais jovens fundiam suas inspirações doutrinárias nas ideias de Le Corbusier, criando entre eles um estado de espírito revolucionário e, consequentemente, transformador. Entretanto a arquitetura, nos anos 1930, apesar de toda a sua concepção revolucionária, contraditoriamente, acaba por compactuar com a ditadura que recentemente se implantara. Lúcio Costa é nomeado para a direção da Escola de Belas Artes, há a construção do prédio do Ministério da Educação – onde pela primeira vez punham-se em prática as teorias de Le Corbusier – e, quase simultaneamente, realiza-se o conjunto da Pampulha.

As verdadeiras preocupações sociais só iriam aparecer mais tarde, depois da guerra, quando a “redemocratização” vai aos poucos contaminando quase toda a sociedade. “É evidente, portanto, que Pampulha não podia senão ser um fruto da ditadura, ao passo que Pedregulho (conjunto residencial popular, projetado por Reidy) é a obra de uma época já democrática” (p. 259).

Sendo Brasília uma cidade construída nas condições em que o foi, o autor não hesita em considerá-la “um ensaio de utopia”, tomando tal palavra no sentido de oásis “ou de uma colônia fundada em bases artificiais”. Isso numa época em que a utopia se transforma em plano – é justamente esta relação entre utopia e planificação que se constitui, em seu entender, “no pensamento estético mais profundo e fundamental de nosso tempo” (p. 356).

 

Crítica

Mário Pedrosa, entretanto, não perde a capacidade de crítica diante daquilo que considera de importância fundamental: constantemente faz reparos a desvios na execução do plano original, teme que a febre de imortalidade que ataca Juscelino ponha tudo a perder e não poupa críticas à política econômica do governo. Pondera que na situação em que o país se encontrava (o artigo é de 1958), uma catástrofe financeira parecia aproximar-se e a ofensiva contra Brasília tenderia a aumentar. E se a sua construção parasse, profetizava, uma ditadura militar deveria se implantar para ficar.

Mário Pedrosa: jornalista, crítico de arte, professor, militante político, autor de vários livros sobre arte e política, diretor de instituições culturais, faleceu em novembro de 1981, aos 81 anos, após enfrentar com dignidade muitos anos de exílios forçados, motivados por suas tomadas de posição políticas, sempre antiautoritárias.

*Afrânio Catani é professor titular aposentado da Faculdade de Educação da USP e, atualmente, professor sênior na mesma instituição. Professor visitante na Faculdade de Educação da UERJ, campus de Duque de Caxias.

Publicado originalmente no extinto Jornal da Tarde, em 14 de agosto de 1982.

 

Referência


Mário Pedrosa. Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo, Perspectiva, 1982, 416 págs.

 

 

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