Por JOSÉ EDUARDO FERNANDES GIRAUDO*
A necessária derrota do bonde do terror não deve ser vista apenas como a derrota de um projeto abstratamente autoritário
No final de janeiro, a administradora da USAID (United States Agency for International Development), Samantha Power, visitou os países do sudeste da Europa, onde se encontrou com autoridades e com “jovens e empreendedores”. Destes, declarou ter ouvido estarem “preocupados e insatisfeitos com a corrupção”. Àquelas, exigiu o compromisso de “conter e combater a corrupção”. À imprensa, declarou que a região “merece um futuro sem corrupção”.
Alguns dias antes, o Secretário de Estado Antony Blinken decidira aplicar sanções (bloqueio de bens e ativos e proibição de entrada) a políticos da região acusados de “corrupção”. Ocioso dizer, todos desafetos de Washington ou culpados de favorecer os interesses e a “influência maligna” de Pequim ou Moscou num território considerado desde os anos noventa como chasse gardée dos EUA e de seus satélites da União Europeia e dos Five Eyes, que ali se apresentam, sem nenhum pudor, como os únicos representantes do “ocidente” e da “comunidade internacional”.
A agência dirigida pela neoconservadora Power, discípula de Madeleine Albright e defensora de operações de “mudança de regime” e de “bombardeios humanitários” contra governos “corruptos” e “ditatoriais”, tem orçamento de 51 bilhões de dólares, destinados nominalmente à ajuda ao desenvolvimento, mas usados na cooptação de elites políticas locais e no “convencimento” dos recalcitrantes quanto à oportunidade de seguirem as políticas da Casa Branca. Assim, segundo a cartilha do “combate à corrupcão”, sanções e “ajuda” se complementam, como o bastão e a cenoura, no adestramento das elites clientes ao redor do mundo.
Com efeito, tem sido uma constante, desde o começo da administração Biden, o uso do discurso anti-corrupção, a par da aplicação extraterritorial da legislação doméstica e de todas as formas de lawfare, para atingir indivíduos, instituições e países que obstaculizam os interesses econômicos e geopolíticos dos EUA e os interesses comerciais das corporações estadunidenses.
Como se sabe, a “corrupção” tem sido um leitmotiv recorrente em autores institucionalistas e neoliberais como Thomas Friedman, vindo sempre contraposta à “democracia”: os países que se recusam a adotar o programa neoliberal são a priori menos democráticos e portanto mais corruptos, já que, também a priori, as sociedades ditas “abertas”, “democráticas” ou “transparentes” são menos corruptas, além de terem maior sucesso econômico.
Tal “institucionalismo” pode ser visto em ação, por exemplo, nos casos do Afeganistão e do Iraque, países submetidos por duas décadas à ocupação imperialista, que não só destruiu as instituições que ali existiam, como mostrou-se absolutamente incapaz de criar novas instituições capazes de sustentar, seja o sucesso econômico, seja um mínimo semblante de democracia.
Além do que, o “combate à corrupção” eclipsa qualquer referência ao “desenvolvimento”, notável ausência na novilíngua das instituições financeiras e de “ajuda” internacionais, talvez por remeter ao ranço esquerdista e terceiro-mundista de economistas heterodoxos, marxistas e neokeynesianos. Afinal de contas, como ensinava Celso Furtado, o desenvolvimento não pode ser jamais heterônomo, imposto de fora.
Instituições nominalmente internacionais como o Banco Mundial e o FMI, ou assumidamente nacionais, como a USAID, esquivam o “desenvolvimento”, investindo antes em capacity building ou no “empoderamento dos atores locais”, seja lá o que isto for, enfatizando sempre o aspecto subjetivo, da mesma forma como no Brasil se fala em “empregabilidade”, como se o desemprego fosse fruto não das incapacidades objetivas, estruturais, do sistema econômico nacional (e das contradições do desenvolvimento assimétrico, desigual e combinado do capitalismo), mas de vícios de origem (de educação, de cultura, de caráter ou até mesmo raciais) do povo brasileiro.
O sociólogo equatoriano Alejandro Moreano, professor da Universidade Andina Simón Bolívar, no seu El Apocalipsis Perpetuo (Planeta), publicado após os ataques dos mujahedin treinados e financiados pela CIA ao World Trade Center e a invasão do Afeganistão pelos EUA, escrevia que “a sucessão das categorias centrais do pensamento social – revolução nos anos 1960, desenvolvimento nos anos 1970, democracia nos anos 1980, governabilidade nos anos 1990 – evidencia a passagem contínua do saber acadêmico das profundidades da vida social às exigências da ordem”. E acrescentava: “Temo que logo a categoria central será algo assim como a “policiabilidade”, ou seja, as técnicas punitivas das forças do establishment”.
Vinte anos depois, a “policiabilidade” se converteu no perfeito paradigma de ação e numa das principais componentes do arsenal ideológico do imperialismo. Em duas décadas tivemos a “guerra às drogas” e o Plano Colômbia; a “guerra ao terror” e a invasão do Afeganistão; a “guerra às ditaduras” e as invasões do Iraque, da Líbia e da Síria, além das sanções à Venezuela e das guerras híbridas ou “revoluções coloridas” no território da antiga União Soviética; e a atual “guerra à corrupção”, avatar último da guerra sem fim aos inimigos reais e imaginários do Império.
Como não poderia deixar de ser, a “guerra à corrupção” em escala global faz vistas grossas para casos evidentes e documentados de corrupção (sim, ela existe!) ao redor do mundo e dentro dos próprios EUA, sempre que cometidos por aliados e “cidadãos de bem” como por exemplo o primeiro-filho Hunter Biden, enterrado até o pescoço num milionário lamaçal de tráfico de influência. Não é à toa que, quando da divulgação dos Pandora papers, foram solenemente ignoradas e prontamente esquecidas as centenas de menções a pessoas próximas de Volodymir Zelensky, Petro Poroshenko, Sebastián Piñera, Guillermo Lasso, Antonio Macri e Paulo Guedes.
Um dos mais importantes episódios da “guerra à corrupção” em escala global compreendeu o golpe contra Dilma Rousseff, a prisão de Luiz Inácio da Silva e a eleição do atual inquilino do Alvorada, talvez o único chefe de estado sem pejo de bater continência à bandeira estadunidense. A inglória operação “Lava Jato” (sic: seria demais pedir aos meganhas e rábulas que a pariram que respeitassem a gramática), que possibilitou o golpe, o covarde encarceramento de Lula e o consequente advento da Besta, recebeu todo tipo de apoio de diversas agências norte-americanas, como a NSA, a CIA, a DIA, o DOI e o FBI.
Ainda mais sintomático da ferocidade desta que poderíamos chamar “Lava Jato Global” foi o caso da condenação de Othon Luiz Pinheiro da Silva. O vice-almirante Othon, à época presidente da Eletronuclear, foi preso em julho de 2015, por ordem do marreco de Maringá, cujo despacho, nas palavras de Miguel do Rosário, da revista Fórum, “é uma obra de ficção jurídica, oportunismo político e crueldade humana, fazendo questão de autorizar o uso de algemas num senhor quase octogenário, o mais importante engenheiro nuclear do país”.
Em agosto de 2016 Othon Luiz Pinheiro da Silva foi condenado pelo juiz Marcelo Bretas, bolsonarista convicto, a 43 anos de prisão, a pena mais alta da “Lava Jato”, acusado de ter recebido cerca de três milhões de reais de propina da Andrade Gutierrez, dinheiro na verdade pagos por serviços de consultoria prestados quando não ocupava cargo público. Aos 76 anos de idade, foi obrigado a abandonar a mulher, acometida pelo mal de Parkinson, e passou dois anos preso e isolado na base de fuzileiros navais de Duque de Caxias, onde chegou a tentar o suicídio, e no presídio de Bangu 8.
Em outubro de 2017, aos 78 anos, Othon Luiz Pinheiro da Silva foi libertado por habeas corpus concedido pelo TRF-2, que em fevereiro de 2022 reduziu a pena de 43 para quatro anos! O delegado que, a mando do vil marreco, o espancou e algemou, foi preso em outubro de 2020, sob a acusação de vender proteção ao crime organizado. Poucos dias antes, o TRF-2 aplicara, por 12 votos a 1, pena de censura a Bretas pela participação em eventos públicos ao lado do estadista.
Segundo Miguel do Rosário, o processo envolveu “a cooperação internacional selvagem” entre a “Lava Jato” e agências de outros países: o inquérito foi aberto a partir de informações entregues aos procuradores por advogada do Departamento da Justiça americano, que até um ano antes trabalhava para o maior escritório de advocacia que atendia a indústria nuclear americana.
Nada de novo sob o sol: segundo Fernando Augusto Fernandes, advogado do vice-almirante e autor do livro A Geopolítica da Intervenção (Geração Editorial), “é escandaloso, a Polícia Federal brasileira é, em larga escala, comandada pelos EUA. Está comprovado, inclusive com entrevistas de agentes da CIA. São milhões enviados para a doutrinação de policiais, compra de passagens e mesmo dinheiro para operações”.
Considerado o pai do Programa Nuclear brasileiro, Othon Luiz Pinheiro da Silva foi o principal responsável pelo desenvolvimento da tecnologia de ultracentrifugação, utilizada na produção de combustível nuclear para as usinas de Angra dos Reis, e conduziu os primeiros estudos para a produção do submarino nuclear brasileiro. À frente da Eletronuclear, retomou as obras de Angra 3, paradas havia 23 anos por pressão dos EUA. Sempre vigiado de perto por agentes da CIA, chegou a ter por anos o espião Ray H. Allar como vizinho de apartamento. Sua prisão interrompeu a retomada do programa nuclear brasileiro e a construção de Angra 3, abandonada desde então.
Em entrevista à Carta Capital após sua libertação, Othon Luiz Pinheiro da Silva assim respondeu à pergunta sobre quem teria interesse em sua condenação a 43 anos de reclusão: “Certamente interessa ao sistema internacional, preocupado com o fortalecimento de um dos países dos BRICS. Ficaram satisfeitos os brasileiros transnacionais, que gostariam de ser cidadãos de outros países, em particular dos Estados Unidos, que não dão importância aos problemas e desafios nacionais, não se preocupam em resolvê-los e, em proveito próprio, não se importam de agravá-los”. Bingo!
Às vésperas da terceira eleição de Lula, teima em circular, na grande imprensa pretensamente “democrática e progressista” e nas redes sociais, o mantra da “autocrítica” que o Partido dos Trabalhadores deveria ao país com relação à “corrupção” havida nos governos Lula e Dilma. Como se a corrupção – aquela real, e não a fantasmagoria criada pelo miserando candidato ao Senado pela União Brasil (ai, meus sais!) do Paraná – tivesse sido inventada pelo PT, e não grassado impune durante a privataria tucana, para nada dizer da quadrilha de milicianos hoje instalada na Esplanada. Como diria Totò ao “onorevole” Trombetta: “Mas me faça o favor!”
Não nos iludamos: a “autocrítica” que se nos exige não é e nunca foi a autocrítica da eventual “corrupção”, mas a autocrítica de um projeto, por mais modesto e tímido que tenha sido, de desenvolvimento nacional e de resgate das parcelas majoritárias da população brasileira do jugo secular imposto pelo imperialismo, pela financismo, pelo rentismo, pelo latifúndio e pelos monopólios privados. A operação “Lava Jato” nunca teve como alvo a corrupção, mas sim o BNDES, os BRICS, a integração sul-americana, o pré-sal e a soberania brasileira sobre a Amazônia. Como a “Lava Jato Global”, promovida indistintamente por republicanos e democratas, não tem nem nunca teve ou terá como alvo a corrupção, mas antes de tudo toda e qualquer tentativa de questionar o projeto neoliberal e o excepcionalismo estadunidense.
A necessária derrota do bonde do terror não deve ser vista apenas como a derrota de um projeto abstratamente autoritário. Não se trata de derrotar apenas as veleidades golpistas de um psicopata, mas de contrarrestar um projeto muito maior do que os arroubos autoritários do palhaço de plantão. Tal projeto, mais que ao autoritarismo propriamente político, visa à manutenção e ao aprofundamento do autoritarismo econômico e social, do verdadeiro “fascismo privado” que marca a vida quotidiana do povo e constitui a essência mesma da distopia neoliberal.
A vitória de Lula deve ser vista como mais uma página da luta contra o complexo de interesses e de poderes, públicos e privados, domésticos e transnacionais, que zelam a cada dia pela manutenção e pelo aprofundamento da condição destituída do povo brasileiro ante seus “melhores” (os “brasileiros transnacionais”) dentro de seu próprio país, e da condição subalterna do Brasil ante seus “melhores” (ah, as delícias do vira-latismo!) do hemisfério norte.
Em que pese o distanciamento oportunisticamente tomado nos últimos meses pelos círculos dirigentes estadunidenses com relação ao governo do inominável, cabe sempre lembrar que as distintas guerras – às drogas, ao terror, às ditaduras e à corrupção – nunca foram mais que capítulos na história de um projeto secular de dominação planetária e de submissão dos povos do mundo, da qual a “Lava Jato Global” é uma das ferramentas mais insidiosas.
O terceiro governo Lula está chamado a ser capítulo de uma outra história: aquela que narra as glórias e as derrotas vividas no processo de emancipação do povo, da nação e do estado brasileiros, duzentos anos após o grito do Ipiranga.
*José Eduardo Fernandes Giraudo é diplomata.
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