Nordeste: orgulho e preconceito

Imagem: Elyleser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por BERENICE BENTO*

Quando a questão se desloca da caridade para a questão política, o cristão doador de migalhas transforma-se em um fascista convicto.

Morte aos nordestinos. Analfabetos. Malditos. Cabeças chatas. Mortos de fome. Com indignação sem surpresa, vi o ódio ser vomitado contra nordestinos/as nas redes sociais, logo após o fim do primeiro turno da eleição presidencial. Sem surpresa porque, ao longo de toda a minha vida, escutei os mesmos insultos. Alguns vezes, sem saber que eu mesmo sou paraíba, quem cometia o insulto pedia minha cumplicidade. Sem surpresa porque, em 2014, quando Dilma Rousseff venceu as eleições, parte do sul e do sudeste cuspiu o mesmo ódio que agora retorna potencializado.

Em algum momento da minha vida, decidi me tornar o que eles diziam: sou paraíba. Assumi o insulto como elemento identitário. Corrigiam-me: você não é paraíba, e sim paraibana. Não, eu sou paraíba. Esse truque na luta política aprendi com os ativismos transviades. Precisamos esvaziar o poder que eles/elas acham que têm em nos produzir medo e vergonha. No lugar da vergonha, o escárnio.

Em 2014, eu morava em Nova Iorque. Foi lá que decidi que precisava escrever sobre a minha infância e parte da minha adolescência no Rio de Janeiro e revisitar as humilhações pelas quais fui submetida. Ainda há muito para ser dito, mas é preciso coragem. O título do meu livro de crônicas assume a minha condição paraíba (Estrangeira: uma paraíba em nova Iorque).

2022. Novamente sou tragada por lembranças da infância e das eleições de 2014. De um lado, ódio. Do outro, vídeos e textos que citam grandes nomes de artistas, músicos, políticos que são nordestinos. As mensagens terminam, geralmente, com “tenho orgulho de ser nordestino”. Acredito que essa estratégia de responder ao ódio com uma lista de grandes nomes e feitos não chega a arranhar o sólido edifício do ódio contra os “paraíbas” e os “baianos”. Ainda estamos acionando a mesma estratégia do agressor que se fundamenta no determinismo geográfico. Diga-me de onde vens, que te digo quem és, bem no espírito de Euclides da Cunha.

Não sabemos exatamente quando a aversão de setores do sudeste e do sul ao nordeste começou. Essa genealogia ainda precisa ser feita. Ao ler os Anais do Congresso Nacional durante os debates que aconteceram em 1871 em torno da Lei do Ventre Livre (lei que definiu que os/as filhos/as das mulheres escravizadas nasceriam livres), as discussões avançavam para uma grande divisão: sul escravagista versus norte abolicionista. Naquele momento, era esse binarismo regional que funcionava. O resultado final da votação na Câmara dos Deputados parecia dar razão à divisão. Votaram a favor da proposta 61 parlamentares e contra 35 (27 do sul/sudeste; 7 do norte e 1 do centro-oeste).

Esse selo de norte abolicionista aprofundou-se com o avanço de movimentos abolicionistas e a promulgação de leis locais que libertaram pessoas escravizadas antes da lei geral de 13 de maio de 1888. Em 30 de agosto 1881, um grupo de jangadeiros responsáveis pelo embarque de mercadorias no porto da capital da província do Ceará se recusou a transportar pessoas negras escravizadas que seriam levadas dali para outras províncias. Em 1º de janeiro de 1883, a Vila de Acarape (rebatizada de “Redenção”) alforriou os últimos escravizados. Outras abolições sucederam-se em cidades cearenses (Pacatuba, Itapagé, Aracoiaba, Baturité, Aquiraz, Icó e Maranguape) e em Fortaleza o mesmo se deu em 24 de maio de 1883.

Esses fatos históricos contribuem com a narrativa do norte abolicionista e o sul escravagista, principalmente quando o herdeiro político da casa-grande, Jair Bolsonaro, teve uma votação expressiva nessas regiões. Em compartida, também podemos associar a figura do Lula à dos jangadeiros do Ceará. Mas essas representações são enganosas. O que levou, de fato, os deputados nortistas a votarem a favor do projeto da Lei do Ventre Livre foi a escassa presença de pessoas escravizadas em seus estoques ou plantéis (como era nomeada a população negra escravizada).

Parte considerável fora vendida para os/as fazendeiros/as sulistas, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro, que viviam o apogeu do cultivo do café. E celebrar a libertação das pessoas escravizadas é contribuir com a política de esquecimento. Os/as libertos/as foram abandonados pelo Estado. É como se ali estivesse acontecendo o grande ensaio geral do que viria a acontecer em 13 de maio de 1888 e que se caracterizou pelo abandono absoluto da população escravizada que foi deixada para morrer.

A narrativa do nordeste abolicionista se deslocou dos fatos históricos, ganhou vida própria, autonomizou-se. Entre os inúmeros materiais que circularam na internet em defesa do orgulho nordestino, essa imagem foi recuperada. Pergunto-me até que ponto esse tipo de narrativa não poupa a pele dos senhores escravocratas nordestinos contemporâneos, encarnados em figuras de empresários (por exemplo, o dono da Riachuelo) e terminam por incluí-los nesse nordeste “puro”. Eles seguem praticando todos os tipos de violência e desrespeito contra os/as trabalhadores/as.

Ainda que o ódio contra nordestinos/as aconteça nas microinterações cotidianas, há momentos em que ele aparece de corpo inteiro. No entanto, essas reiterações de ódio contrastam com imagens de mobilizações nacionais quando acontece algum tipo de catástrofe natural que atinge alguma cidade nordestina. Pode-se ver uma ampla mobilização para arrecadar água, comida, roupas. Embora possa parecer contraditório, os que agora gritam “burros, cabeças chatas, esfomeados” podem estar entre aqueles que doam para programas no espírito do “Nordeste Esperança” em época de catástrofes. Na condição de miserável, esfomeado te queremos.

Agora, estamos falando de coisa séria, de eleição. E aí esses comedores de calango querem cruzar a fronteira da cozinha para a sala? Quando a questão se desloca da caridade para a questão política, o cristão doador de migalhas transforma-se em um fascista convicto. E diante da eleição de um nordestino, eleito majoritariamente pelo povo nordestino, resta clamar por um golpe militar para devolver as coisas para o lugar certo. E esse desejo não pode ser identificado exclusivamente como o desejo de brasileiros/as do sul e do sudeste. Parte considerável da elite nordestina estaria na linha de frente desse projeto.

Para quebrar o mito da amálgama território e identidade (tenho orgulho de ser nordestino), é preciso trazermos outros elementos para a cena: classe social, gênero, religião, sexualidade, raça. Mas estamos em luta e, às vezes, acreditamos, devemos recorrer ao essencialismo geográfico como estratégia. Esse caminho, no entanto, apenas reforça que somos o que a terra define. Ou seja, para combater os preconceitos, acionamos o orgulho, mas esse mesmo orgulho termina por reforçar a noção do nordeste como um todo homogêneo, indiferenciado, sem singularidade, enfim, sem rosto próprio.

*Berenice Bento é professora de sociologia na UnB. Atualmente é pesquisadora visitante da Universidade de Coimbra. Autora, entre outros livros, de Brasil, ano zero: Estado, gênero, violência (Editora da UFBA).

Publicado originalmente na revista Cult.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Celso Favaretto André Márcio Neves Soares Gilberto Maringoni Slavoj Žižek Jorge Branco Marcus Ianoni Berenice Bento Otaviano Helene Ricardo Fabbrini Marilena Chauí Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Luiz Roberto Alves Samuel Kilsztajn Luiz Renato Martins Bruno Machado Osvaldo Coggiola Benicio Viero Schmidt Rubens Pinto Lyra Eduardo Borges José Raimundo Trindade Maria Rita Kehl Marjorie C. Marona Gilberto Lopes Ronald León Núñez João Lanari Bo Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luiz Bernardo Pericás Juarez Guimarães Bernardo Ricupero Liszt Vieira Francisco de Oliveira Barros Júnior Michael Löwy Denilson Cordeiro Lucas Fiaschetti Estevez Vladimir Safatle Paulo Nogueira Batista Jr Vinício Carrilho Martinez Sergio Amadeu da Silveira Marcos Silva Jean Pierre Chauvin Caio Bugiato Ronald Rocha Alysson Leandro Mascaro Lincoln Secco Érico Andrade Marilia Pacheco Fiorillo Milton Pinheiro Alexandre de Lima Castro Tranjan Julian Rodrigues Igor Felippe Santos Leda Maria Paulani Luís Fernando Vitagliano Yuri Martins-Fontes Henry Burnett Eliziário Andrade Marcelo Módolo Gerson Almeida Mário Maestri Leonardo Sacramento Thomas Piketty Flávio Aguiar Tales Ab'Sáber Chico Whitaker Daniel Afonso da Silva João Carlos Loebens Francisco Pereira de Farias José Dirceu Eugênio Trivinho Rodrigo de Faria Manuel Domingos Neto João Adolfo Hansen Luiz Marques Luiz Werneck Vianna Chico Alencar Dennis Oliveira José Micaelson Lacerda Morais Fernão Pessoa Ramos Alexandre Aragão de Albuquerque Luciano Nascimento Ladislau Dowbor Tarso Genro João Carlos Salles Lorenzo Vitral João Feres Júnior Ronaldo Tadeu de Souza Michael Roberts Paulo Fernandes Silveira José Costa Júnior Tadeu Valadares José Luís Fiori Leonardo Avritzer Luis Felipe Miguel Heraldo Campos Sandra Bitencourt Afrânio Catani Henri Acselrad Everaldo de Oliveira Andrade Boaventura de Sousa Santos João Paulo Ayub Fonseca Leonardo Boff Eleutério F. S. Prado Dênis de Moraes Elias Jabbour Jean Marc Von Der Weid André Singer Alexandre Juliete Rosa José Geraldo Couto Armando Boito Vanderlei Tenório Jorge Luiz Souto Maior Claudio Katz José Machado Moita Neto Valerio Arcary Bento Prado Jr. Ricardo Abramovay Plínio de Arruda Sampaio Jr. Walnice Nogueira Galvão Daniel Costa Rafael R. Ioris Paulo Capel Narvai Celso Frederico Michel Goulart da Silva Carlos Tautz Paulo Sérgio Pinheiro Carla Teixeira Andrew Korybko Priscila Figueiredo Marcos Aurélio da Silva Kátia Gerab Baggio Fábio Konder Comparato Antônio Sales Rios Neto Remy José Fontana Manchetômetro Daniel Brazil Luiz Carlos Bresser-Pereira Atilio A. Boron Flávio R. Kothe Ari Marcelo Solon Ricardo Antunes Fernando Nogueira da Costa Matheus Silveira de Souza Renato Dagnino Anselm Jappe Annateresa Fabris Antonino Infranca Gabriel Cohn Alexandre de Freitas Barbosa Francisco Fernandes Ladeira Paulo Martins Andrés del Río Antonio Martins Luiz Eduardo Soares Mariarosaria Fabris João Sette Whitaker Ferreira Salem Nasser Marcelo Guimarães Lima Ricardo Musse Eugênio Bucci Airton Paschoa Eleonora Albano

NOVAS PUBLICAÇÕES