Até a apuração: nessun dorma

Dora Longo Bahia. Revoluções (projeto para calendário), 2016 Acrílica, caneta à base de água e aquarela sobre papel (12 peças). 23 x 30.5 cm cada
image_pdf

Por LISZT VIEIRA*

Ninguém durma, para convencer mais gente a votar na democracia contra a ditadura, na civilização contra a barbárie

Lula venceu o debate. Na realidade, trata-se mais de um duelo em que o conteúdo das intervenções não importa muito. Pesa mais a atitude, a disposição guerreira de enfrentar o adversário e derrotá-lo com gestos, críticas e argumentos impactantes. Nesse duelo, se o candidato atacado for se defender e dizer que não é bem assim, não é verdade, perde pontos. É como esgrima: uma vez atacado, tem que contra-atacar imediatamente. Lembremo-nos da sabedoria antiga: Quem se defende, já perdeu!

Para a grande mídia – Globo, Globonews, Folha, Estadão, CNN, Lula venceu por pontos, e não por nocaute. Mas para as pesquisas da Quaest e Atlas, a vitória de Lula foi mais expressiva. Alguns comentaram que no final ele parecia cansado. Não é para menos, debateu com um mentiroso contumaz que só fez provocações. Mas manteve até o fim uma postura e compostura de estadista e não caiu nas provocações do adversário, que se comportou como um deputado do baixo clero, o que foi confirmado por ele mesmo em seu ato falho no final.

Lula teve momentos magníficos no debate. Outros, nem tanto. Por exemplo, a resposta no tema meio ambiente. Ele poderia destruir o adversário, o que não ocorreu. Jair Bolsonaro repetiu sua informação mentirosa sobre desmatamento que já havia dado no debate anterior e não recebeu resposta contundente. Lula nem precisaria citar dados, bastava falar no “passou a boiada” do Ricardo Salles, em desmantelamento do Ibama e do CNBio, dos incêndios na floresta, o Brasil é hoje vilão mundial em matéria de clima, algo dramático. Enfim, bola pra frente.

O debate, ou melhor, o duelo, não deve ter impacto no resultado eleitoral. Mas os vídeos com falas dos candidatos vão circular nas redes. E também com a entrevista, após o debate, quando Jair Bolsonaro deu um soco na mesa e foi afastado pelos assessores. Antes disso, porém, ele disse que vai respeitar o resultado das urnas. Foi uma confissão de que não tem força para dar o golpe.

Em textos anteriores, critiquei vários artigos que defendiam o cenário único do golpe, dado como certo. Trabalhei com a possibilidade de diversos cenários e considerei o golpe um cenário possível, mas improvável, por falta de apoio político/militar nacional e apoio diplomático internacional. É bom não esquecer que o presidente dos EUA mandou três diplomatas ao Brasil com a missão de dizer que o sistema eleitoral brasileiro é confiável e dar um recado aos militares: Nada de golpe! O Senado americano chegou a recomendar rompimento de relações diplomáticas com o Brasil em caso de golpe. Afinal, Jair Bolsonaro apoia Donald Trump e Vladimir Putin, dois inimigos de Joe Biden.

Forçoso é reconhecer que devemos 7dófilo informações importantes. Uma delas é que os conservadores dispostos a apoiar uma ditadura não são apenas 30%, como sempre imaginei. Podemos dizer que 40% do eleitorado apoiariam hoje uma ditadura que viria combinada com um modelo econômico neoliberal, embora nem todos tenham noção disso.

O eleitorado de Jair Bolsonaro não se constitui apenas de empresários, militares e evangélicos. A grande maioria de seus eleitores é formada por conservadores que rejeitam, assustados, o empoderamento das mulheres que não aceitam mais o seu papel tradicional como mãe de família e dona de casa. Nostálgicos da Casa Grande e da Senzala, ficam intimidados com a luta dos negros pela igualdade e escandalizados com a luta dos gays ( LGBTQIA+) pelo reconhecimento de seus direitos. Por exemplo, casamento entre pessoas do mesmo sexo é visto como algo vergonhoso. Além disso, associam desmatamento a progresso.

Assim, no eleitorado de B. não existem apenas interesses econômicos do empresariado capitalista, interesses corporativos dos militares, ou interesses de uma grande massa de evangélicos ludibriados em sua boa-fé por pastores corruptos. A grande maioria é mesmo composta por conservadores que introjetaram os valores da sociedade patriarcal, ignorados durante muito tempo pela esquerda como assunto secundário, fora do foco da luta de classes. Após a vitória de Lula, por margem mais apertada do que imaginávamos, a luta contra os valores conservadores da sociedade patriarcal será inadiável. Em vez de desprezar a “pauta identitária”, teremos de articular essas lutas por direitos com as lutas econômicas dos trabalhadores.

Mas nos últimos metros da reta final, a prioridade deve ser buscar indecisos. Na semana que antecede a eleição, foi importante procurar os que ainda estavam em dúvida. Para minha surpresa, eram muitos. Entrei num shopping e conversei com vendedores de várias lojas. Encontrei indecisos, eleitores de Lula e de Jair Bolsonaro sem muita convicção, os que vão se abster ou votar nulo. Distribuí um panfletinho personalizado. É uma atuação no plano microssocial complementar à atuação nas redes onde, aliás, predominam os gigantes da comunicação digital: André Janones, Felipe Neto e outros.

Essa correria às vésperas da eleição me fez lembrar a ária Nessun Dorma – Que Ninguém Durma – da ópera Turandot, de Puccini, quando a princesa manda todo mundo ficar acordado de noite para descobrir o verdadeiro nome de seu pretendente. No nosso caso, o nome nós conhecemos. Mas que ninguém durma, para convencer mais gente a votar na democracia contra a ditadura, na civilização contra a barbárie.

*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e Coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond).

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
7
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
14
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES