Adeus, besta!

Clara Figueiredo, série_ Brasília_ fungos e simulacros, congresso nacional, 2018.
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Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL*

Se o PT insistir em fazer o papel de bobinho republicano, será devorado pelos lobos

Há quatro anos, em uma entrevista para o Instituto Humanitas da Unisinos defendi a hipótese que o governo Bolsonaro, que estava por se iniciar, se caracterizaria por tão apenas uma coisa: destruição.

Claro, não era nenhuma profecia. Era apenas uma obviedade. O que não era muito difícil de deduzir logicamente, ainda hoje suscita, provavelmente para a esmagadora maioria das pessoas, no âmbito dos sentimentos, uma profunda aversão: melhor não ver muito bem (apesar de se saber bastante bem), para não ser assaltado pelo desalento, pelo desgosto de ter sido brasileiro nos últimos quatro anos.

Conhecemos muito bem o tamanho da boçalidade, mas, por uma questão de saúde psicológica, era recomendável não sentir o tamanho da perversidade, por mais que ela se escancarasse, até mesmo para se mostrar intimidatória (a tática social por excelência do bolsonarismo e provavelmente seu traço exclusivo de sociabilidade). Agora é a hora da ressaca. Agora vai ser preciso começar a fazer as contas… e sentir o tamanho do estrago.

O maior desafogo da eleição de Lula foi simplesmente esse: agora, todos aqueles que pensamos numa vida em sociedade – porque metade da população brasileira foi doutrinada, pelas mais variadas táticas discursivas (só uso esse termo por ser mais conceitualmente elegante que “lavagem cerebral”), a não pensar nisso – podemos voltar a nos indignar, sem que isso nos destrua por dentro.

A intimidação bolsonarista é análoga à do nazismo: a nulificação do pensamento sob o rolo compressor da mistificação e da bestialidade, sem que haja meios sociais eficazes para impugná-las. Tudo se reduz a um programa mínimo de sobrevivência. O bolsonarismo de fato é bíblico, na exata medida em que não é muito mais que uma forma de danação.

A lógica política do bolsonarismo mostrou-se com absoluta plenitude: a da aniquilação dos diferentes. É uma tremenda ingenuidade que alguns “cientistas políticos” e ciristas ingênuos queiram ver esse estado de coisas como um dado casual e naturalizado, meramente constatável, que expressa uma polarização como se ela fosse o Zeitgeist de uma pós-pós-modernidade tecida por bolsonaristas e petistas, ambos igualmente vociferantes. Não! Esse estado de coisas foi produzido por um dos lados, e é preciso dizer por quem. E isso agora precisa, sim, entrar no balanço de contas, sem o quê, Jair Bolsonaro terá ganho o terceiro turno, e a política no Brasil entrará de vez em estágio de zumbificação permanente.

O PSDB de São Paulo absolveu Paulo Maluf e ganhou mais de três décadas de controle do governo local. No fim das contas, o tucanismo se nutriu do malufismo, para entrarem, ambos, em simbiose profunda, até que o bolsonarismo se insinuasse como um barato muito mais potente. No caso desse último, no entanto, a coisa é de uma outra natureza de toxidade.

Suspeito que se as forças que elegeram Lula absolverem Jair Bolsonaro, elas não permanecem mais que dois anos no controle de qualquer governo. E isso também não é profecia. É dedução lógica singela. Simplesmente porque essas forças estarão inviabilizando a própria possibilidade da política e se rendendo ao campo simbólico demarcado pelo bolsonarismo, como tão gozosamente se dedicaram a fazer durante a campanha eleitoral.

Quando a equipe de transição de governo puser os olhos no detalhamento das rubricas do orçamento secreto terá um mapa mais preciso do tamanho do esbulho e de quem é quem na matilha predatória. Vai ser preciso faz bom uso desses dados. Se o PT insistir em fazer o papel de bobinho republicano (esporte predileto da ex-presidente Dilma Rousseff), será devorado pelos lobos. Porque é da natureza dos lobos devorar (e o republicanismo que se dane).

Não se trata de “caça às bruxas”, como temerosamente já insinuou o ainda presidente da Câmara, líder do Centrão, em seu primeiro discurso depois da nova eleição de Lula. Trata-se de desarmar os mecanismos da máquina de destruição, e trazer à luz suas vísceras.

E essa é só a sua faceta orçamentária. A face institucional da destruição é ainda muito mais tenebrosa. Se os progressistas brincarem de bobinhos republicanos com, por exemplo, aqueles que são os maiores (porque mais sistemáticos), mais incorrigíveis e mais calculistas inimigos do povo brasileiro, os militares, estarão se entregando como reféns a quem não hesita um só minuto em avalizar a destruição do país, em nome dos seus privilégios tutelares.

Tenho sérias dúvidas, no entanto, se o PT e seus aliados oferecem maiores esperanças de reversão da destruição. Durante toda a campanha, Lula falou para os desesperançados. Prometeu-lhes oportunidades. E não muito mais que isso. No estágio de deterioração em que estamos, qualquer outra coisa talvez seja, de fato, demasiada abstração. Mas o que o Lula talvez não saiba é que a lógica da máquina das “oportunidades” (individuais) é a mesma que move a doutrina predatória de que a sociedade é impensável. Ou será que basta estabelecer cotas para redes sociais e influencers, para então fabricar mais “empoderados”?

Posso estar equivocado, mas, em nenhum discurso de campanha que me lembre, ouvi Lula falar de bem comum e de construção do espaço público. Claro, abstração demais! (Curiosamente, isso que hoje é uma abstração era o argumento central da campanha presidencial de Lula em 1989). Resta saber se essas abstrações, em termos de visão política de mundo, chegam, em algum momento, a fazer parte da equação das “oportunidades”. Pelo já demonstrado pelos governos petistas, não parece.

O que o Lula não parece saber é que por trás das “oportunidades”, numa sociedade como a brasileira, se escondem os privilégios, ou melhor (ou pior), a lógica do privilégio. A esquerda, em geral, ainda não parece ter descoberto isso – os marxistas ortodoxos, na sua ingenuidade, estão desculpados, porque, para eles, “cultura” (isso que alguns antropólogos entendemos como o grande inconsciente submerso do iceberg em que as manifestações “culturais” são apenas a ponta acima d’água) não é mais que uma abstração imponderável.

Em termos de marcos simbólicos, o que parece faltar no discurso do programa de oportunidades dos progressistas brasileiros é simplesmente a sociedade, aquilo que se constrói por meio de relações, e não por meio de identidades reificadas. No único momento em que vi o PT ser interpelado por uma difusa demanda por ampliação da cidadania, que foi em junho de 2013, sua reação foi muito próxima do patetismo de alguém que vendeu a alma por um poder perpetuável, desfrutável e inquestionável.

O poder reificado foi elevado ao paroxismo pelo bolsonarismo. Também aqui, é a sociedade que é abstraída da equação. Minhas dúvidas sobre se o PT será capaz de reverter a destruição se assentam no reconhecimento, primeiro, de que a destruição é muito mais profunda que a da “falta de oportunidades” e, segundo, de que o PT detesta autocrítica. Aliás, Lula saiu da prisão em Curitiba e o proibiu taxativamente. E se, hoje, um dos campos da “polarização” conseguiu vender sua agenda política da aniquilação dos seus diferentes, em larga medida o conseguiu porque encontrou um campo de expectativas adubado pela arrogância do outro campo.

Mais que nunca é preciso estar atento e forte. Mas não é forte quem tem medo de peido (e o que é o Centrão, senão o reino da flatulência?). Não basta despachar a besta com uma festa na Paulista (catarse mais que justificada e memorável). É preciso desconstruir a máquina de destruição no que ela tem de mais íntimo; ter coragem de fazê-lo; reinventar-se ao longo desse caminho; e não deixar mais espaço para a bestialidade mesma. Do contrário, o progressismo estará aprisionado ao encantamento da sua (besta) nostalgia de que dias melhores forão.

*Ricardo Cavalcanti-Schiel é professor de antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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