Por FÁBIO HORÁCIO-CASTRO*
Relato pessoal sobre o conflito entre as ciências sociais e a literatura.
Em junho de 2021 a literatura arrombou as portas da minha casa. Era época de pandemia, chovia aos prantos sobre a casa do Anfão e eu estava deitado numa rede, notebook ao colo, alguns livros pelo chão, ao lado. Eu terminava de preparar as aulas da semana seguinte, as quais seriam em modo remoto, como todas as demais, naqueles dias. Estava isolado no meu sítio, com a Marina, minha esposa, dois cachorros, três gatos e uma planta carnívora que exige demasiada atenção e que se presta a personagem de folhetim. De repente, o telefone tocou. Era Henrique Rodrigues, o escritor – e também coordenador da área de literatura do Sesc nacional – comunicando que eu recebera o prêmio Sesc de Literatura por meu primeiro romance, O réptil melancólico.
Naturalmente, considerei ser um trote, mas as evidências e os detalhes foram aparecendo na fala do Henrique Rodrigues. Ademais, ninguém, afora a Marina, sabia que eu havia enviado o livro para disputar o prêmio. Não podia ser trote. Não era. Ademais, logo em seguida recebi um telefonema do Rodrigo Lacerda, do Grupo Editorial Record. A coisa era séria. E depois comecei a receber emails e telefonemas tratando de coisas variadas que fugiam ao meu controle: contrato, capa, 1a revisão, 2a revisão, fotografia, biografia, nome de autor, resumo, orelhas… Era a literatura invadindo, a minha casa.
Só que não. Também não era. A literatura já estava ali, sempre esteve, ruidosa no seu silêncio. A diferença era que era preciso, agora, ter uma identidade social de autor. Nos dias seguintes fui tomado por esse sentimento de estranhamento que caracteriza muitos autores, imagino, no processo de constituição da suas identidades, tanto narrativa como de autor. No meu caso, penso, havia uma dificuldade a mais (ao menos para mim): construir uma identidade de autor tendo que negociar com a exigente identidade de cientista e pesquisador no campo das ciências sociais.
Sim, porque a literatura, muitas vezes, se insurge contra valores que são centrais na sociologia. Por exemplo, onde esta diz ideologia, a literatura diz subjetividade e é capaz até de gritar coisas como fluxo da consciência e monólogo interior. E onde a literatura pede sensibilidade e transcendência, a sociologia exige controle de viés e identidade. Onde uma diz discurso, a outra diz narrativa. Por fim, lá onde a literatura sugere criatividade, a sociologia responde com “reprodução social.
Esse conflito produziu incontáveis situações de bloqueio em meus diálogos como autor, ao longo desse primeiro ano de ser-escritor. Seja em debates e encontros com outros escritores e produtores culturais, seja em debates, seja em entrevistas. Como num conflito íntimo ético, o escritor e o cientista se entreolharam, desconfiados, um mal entendendo o ponto de vista do outro. E realmente, muitas vezes, bloqueei minha fala, interrompi o raciocínio e hesitei em concluir alguma ideia. Certo, sou pesquisador e professor, e estou acostumado com plateias, mas o diálogo científico está baseado numa objetividade e numa impessoalidade que, certamente, são incômodas no mundo da literatura. E essa questão se tornou central ao longo desse ano.
Porém, consegui encontrar um ponto de equilíbrio para a relação entre os dois Fábios que eu era: a ideia de que somente a literatura pode dizer certas coisas e a ideia de que ambas, ciência e literatura, convergem na sua tarefa de dizer o mundo. Complementarmente, isso leva à percepção de que é preciso participar do debate público e o meu livro trazia coisas que precisavam ser colocadas. Afinal, foi também por isso, e para isso, que ele foi escrito.
Retour en arrière… O réptil melancólico vinha sendo tecido aos poucos, havia anos, mas foi a emergência da pandemia e uma indignação com o governo brasileiro e seu elogio da ditadura que me fizeram conclui-lo. Explico melhor: como muitos (como quase todos) a experiência da pandemia, agravada pelo descaso e pela necropolítica do governo Bolsonaro me fez encontrar, profundamente, a finitude da vida. O réptil melancólico, que traz um pouco da minha infância durante a ditadura militar e algumas histórias de pessoas que foram perseguidas pela ditadura foi concluído como pura revolta contra toda ameaça à liberdade e à democracia.
E assim, com essa disposição, me organizei para lidar com essa nova realidade e para o meu primeiro ano de ser-escritor. A primeira grande decisão foi a de tomar um nome de autor – efetivamente um heterônimo, com o qual pudesse dar conta da superposição de vozes que a literatura representava na minha vida, e assim o cientista Fábio Fonseca de Castro, com seus livros e artigos científicos foi se organizando para se tornar o escritor Fábio Horácio-Castro – sobrenome paterno, carregado de histórias literárias, que vão de bibliotecas secretas a cartas do século XIX desaparecidas e reescritas – coisas que outro dia conto.
E, nesse processo de ser-escritor, agradeço profundamente ao prêmio Sesc, que possibilita algo que, creio, somente ele faz por um autor: inseri-lo numa cena literária diversa e complexa, mas orgânica, espalhada irregular, mas fortemente, pelo país, permitindo um verdadeiro laboratório para um escritor iniciante construir sua identidade. Com efeito, esse prêmio tem duas peculiaridades: a capilaridade do sistema Sesc, que distribui o livro em bibliotecas, escolas e clubes de leitura e, ainda, por outro lado, o circuito de viagens, que leva os autores premiados a vários estados brasileiros, para conferências, conversas e trocas literárias e também, a partir de uma parceria com a Fundação José Saramago, ao Festival Literário Internacional de Óbidos, em Portugal. A importância dessa capilaridade e desse circuito está na sua capacidade em formar, para os autores premiados, uma base mais ampla de leitores – e um público leitor consolidado é, como se sabe, em seguida à sua obra, o maior ativo de um escritor.
Foi um ano de peregrinação, diálogo e aprendizado. Aprendizado sobre o universo da indústria, do mercado, do campo literário. De fora, pouco se imagina a complexidade disso, formada, primeiramente, por indivíduos, mas também por instituições, por processos e por dinâmicas de poder e redes de conexão.
Bourdieusianamente, podemos tracejar uma cartografia do campo literário colocando nele, além do escritor – a figura-âncora (embora nem sempre preponderante), em torno da qual o sistema se organiza – seus leitores, os editores, as editorias, os agentes literários, os livreiros, os críticos, os prêmios literários, a instituições de Estado de ação cultural, as bibliotecas, as revistas especializadas, os influenciadores digitais literários etc.
E todas assas categorias possuem complexidades. Por exemplo, descobri que, na linguagem especializada do mercado do livro, os leitores são divididos em subcategorias, como os leitores “beta”, os leitores fidelizados, os “grandes” leitores, os leitores emergentes, etc. Os editores também são classificados segundo suas estratégias editorias e o tamanho das casas editoriais. Por exemplo, há editores “tradicionais”, mas também os editores “tradicionais conservadores”. Tudo muito complexo, cheio de sutilezas.
E não é só desse tipo de complexidade que falo. Além de pessoas e de instituições, como disse, há processos: os direitos autorais, a negociação da próxima obra, a cultura das premiações literárias, as feiras e festivais de livro e da leitura. E isso sem falar no fato de que, cada vez mais, se faz necessário que o escritor se torne “autor”, com habilidades de midiatização não apenas de suas obras mas, sobretudo, de si mesmo. Faz-se necessário que tenha habilidades para participar de eventos e falar de qualquer coisa que for aparecendo, inclusive de si mesmo.
Ser-escritor é, ao que parece, um procedimento complexo, que pressupõe o conhecimento de certos códigos de identidade e um processo meio estafante de endossar e revalidar determinados marcadores sociais, dentre os quais produzir uma narrativa consistente a respeito de si mesmo e de sua obra.
Eu pensava que ser escritor era, exclusivamente, escrever e publicar livros, numa ingenuidade que hoje me parece constrangedora para alguém que tem 30 anos de vida profissional na ciência. Ocorre que a vida acadêmica, embora tenha seus bem conhecidos conflitos e vaidades, possui outros rituais, que incluem os princípios gerais da referência/deferência e da abertura para o diálogo, ou seja, dialogar com quem veio antes e saber que, necessariamente, seus dados serão superados pelos que virão depois. Há, portanto, uma humildade processual e estrutural na fundamentação da vida acadêmica – o que não quer dizer que a vida acadêmica não deixe de ser um espaço de vaidades constantes e mesmo absurdas. No entanto, são mundos diferentes.
Tenho impressão de que o mundo da literatura abjuga essa cultura da referência e da deferência porque tem certa pretensão à eternidade – uma eternidade mítica, marcada pela presunção de perenidade e presente, por exemplo, no conceito de “imortalidade”, tacitamente aspirado pelos escritores, tão marcante na vida literária e que possui dimensões econômicas evidentes.
Há uma cenografia literária a obedecer, ou a construir, conforme o caso. A primeira descoberta que fiz foi a de que mais importante do que a obra tende a ser o autor – ainda que não haja autor, evidentemente, sem obra (acho).
De imediato, isso significa dialogar com o interesse de plateias formadas por potenciais leitores, que mediam seu interesse por sua obra a partir de um proto-interesse por você – ou melhor, por sua figura de escritor. Assim, por exemplo, numa plateia majoritariamente adolescente, alguém perguntou “Quem é a Marina e por que você dedicou seu livro a ela?”. Atendi a essa curiosidade malsã, mas logo depois surgiu uma pergunta inusitada: “Você pensou em dedicar o seu livro a alguma outra pessoa, antes de dedica-lo à Marina?”. Depois, até anotei essa pergunta, para guardar como exemplo de curiosidades que são maiores do que a minha. Na hora, até pensei que era para rir, mas não era. Respondi que não, mergulhando num mar de olhares curiosos, enquanto, imagino, formavam-se perguntas que não se iriam enunciar.
Aliás, fico pensando nas perguntas irrespondíveis que me fizeram durante esse primeiro ano de ser-escritor. Como tenho o hábito de fazer listas, fiz uma lista dessas perguntas irrespondíveis: Por que o seu livro não se passa no Acre? Você já viu o réptil? Você também é melancólico? Você já teve impressão de estar sendo observado pelo réptil? Você sonha ou tem pesadelos com o réptil? Você não acha que devia ter escrito um livro de poesia em vez de um romance? Você realmente acredita no que escreve? Você já tentou ser vegano? Quantas doses você tomou da vacina da Covid?
E isso para não mencionar as perguntas curiosas que me foram feitas no Pará e com a prosódia e os fantasmas belemenses: Por que não aparece nenhuma fruta ou comida típica da Amazônia no teu livro? Por que tu escreveste esse livro dessa maneira? Por que tu falas de Belém sem dizer o nome da tua própria cidade? Não te sentes envergonhado disso, tu? Tu vais obrigar os teus alunos a lerem o teu livro? Por aí afora.
O grande António Lobo Antunes, escritor português neto de paraenses, afirmou, numa entrevista concedida a Maria Luísa Blanco, que “no livro que é bom, o autor não está, não se nota” (BLANCO, 2002, p. 29). Esse pensamento me assombrou quotidianamente, durante o meu primeiro ano de ser-escritor, seja porque meu livro é atravessado por estratégias metaficcionais, inclusive com metateoria e com considerações a respeito do ato de narrar, seja porque, pelo que entendi do mundo dos livros, do campo literário, quando o autor não aparece, o livro não vende e sem venda de livros, não há autor e, muito menos, livro. Então, aparentemente, tem-se aí um impasse que merece ser considerado, porque, do que pude perceber, neste primeiro ano andando por circuitos literários, tudo gira em torno de estratégias de metainvisibilidade, ou seja, da arte de aparecer ostensivamente e, sutilmente, em seguida, desaparecer.
O autor, na sua vida privada e quotidiana, não é a mesma coisa que o sujeito-texto, aquele que tem um estilo, temas e que domina gêneros. E, além deles, há um escritor hiper-narrativo, por meio do qual o autor representa a si mesmo ou se permite representar. Essa ideia está presente em Calaça (2009), na sua teoria a respeito dos três níveis presentes em cada autor.
Passei todo o meu primeiro ano de ser-escritor obcecado por essa multiplicidade de eus aos quais devia prestar atenção, a um tempo mediando nome e heterônimo; a outro, mediando a ambiguidade ciência/ficção; a outro, ainda, inventando uma hipernarração para mim mesmo, uma narrativa que não deixasse de ser solícita e honesta, mas que protegesse minha privacidade da voragem do campo literário… Mas bem sei que essas ponderações e interrogações são apenas perguntas, igualmente malsãs, quando não impertinentes, que o atônito professor Fábio Fonseca de Castro costuma fazer ao escritor Fábio Horácio-Castro. Questões impertinentes, para dizer o mínimo, para alguém que escreve um livro que tem como personagem central, ainda que alegórico, um réptil, que troca de pele, atravessa paredes e temporalidades.
Se perceberam, estive falando, aqui, sobre a dificuldade de construir uma identidade de autor em meio às exigências do campo literário. Estando resolvida a identidade da pessoa e, igualmente a identidade narrativa, que faz o livro, segue atribulada a identidade como posso me representar.
*Fábio Horácio-Castro, escritor e sociológo, é professor na Universidade Federal do Pará (UFPA). Autor, entre outros livros, de O réptil melancólico (Record).
Referências
BLANCO, M. L. Conversas com António Lobo Antunes. Lisboa: D. Quixote, 2002.
CALAÇA, F. José Luis-Diaz: cenografias autorais na época romântica. Polifonia, (28:01), 279-288, 2013.
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