Lula na corda bamba

Imagem: Tima Miroshnichenko
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Por BRUNO MACHADO*

A nova âncora fiscal de Lula deverá ser quase tão ortodoxa quanto a de Michel Temer

Nas eleições de 2022, Lula foi vitorioso com o voto do trabalhador, o qual dividiu com Jair Bolsonaro, mas também ganhou com apoio da elite nacional, que abandonou majoritariamente o bolsonarismo. A anulação da condenação de Lula, a frente ampla com Geraldo Alckmin, o apoio de economistas tucanos e a subida da Bolsa no dia seguinte a eleição demonstraram que, pela primeira vez, Lula entrará no poder com apoio prévio da elite financista e latifundiária do Brasil. Entretanto, esse apoio será altamente frágil e cobrará de Lula uma política econômica tão conservadora quanto a que o ex-presidente aplicou no seu primeiro mandato como presidente da República.

Recentemente, quando deu a entender que seu governo deve buscar a responsabilidade social acima da responsabilidade fiscal, a Bolsa caiu e o dólar subiu, como acontecia com frequência nos anteriores governos petistas. É importante destacar que mercado financeiro não visa o desenvolvimento do país, o crescimento do PIB e muito menos o aumento da produtividade do trabalho. Na realidade, o mercado busca segurança na dívida pública (o que significa superávits fiscais), privatizações de bens públicos e aumento da taxa de juros da dívida pública.

O argumento central dos economistas liberais é de que o mercado teme déficits fiscais porque causam inflação que reduz a previsibilidade dos investimentos privados no país. Entretanto, os déficits fiscais são inflacionários a medida que a economia está aquecida, o que significa que o impacto dos déficits fiscais na inflação é menor em períodos de estagnação ou recessão.

A real causa dessa queda no mercado financeiro após a fala de Lula é o medo de que Lula não faça um governo liberal como estava subentendido em sua frente ampla. Dessa forma, o mercado demonstra sua força em decidir a política econômica do país causando instabilidade e pressionando por aumentos na taxa de juros da dívida pública, para compensar a intenção de Lula de não fazer um governo completamente entregue ao mercado financeiro. Tais movimentos de queda nos mercados financeiros poderão se repetir se Lula fizer um governo de enfrentamento à elite nacional e antecipa o voto dos parlamentares nos próximos quatro anos.

A suposta explicação técnica para o terrorismo especulativo é o risco de volta da inflação fora de controle como ocorria no Brasil dos anos 1980, porém a causa de tal descontrole era a falta de dólares no país, que foi resolvido com o Plano Real que forçou a paridade um para um e manteve o dólar em baixa com altíssimas taxas de juros (que dobraram a dívida pública em proporção ao PIB em poucos anos). Atualmente, as reservas em dólares e as exportações brasileiras mantém a estabilidade da moeda nacional, não havendo razão para tal terrorismo.

O terceiro mandato de Lula desafiará sua capacidade de conciliação e o colocará entre as demandas dos trabalhadores e a demanda da elite financista e latifundiária. Apesar de não ter voto nem legitimidade alguma para exercer o poder, as demandas da elite nacional demonstradas pela movimentação do mercado financeiro farão forte pressão para manter Lula na centro-direita, conforme a composição da frente ampla que o colocou em primeiro lugar nas urnas. As movimentações do mercado financeiro antecipam também os votos dos parlamentares, que em maior parcela servem aos interesses da elite brasileira, o que imporá dificuldade para a governabilidade desse mandato de Lula.

Apesar de vez ou outra adotar um discurso de enfrentamento ao neoliberalismo da elite econômica brasileira, Lula costuma voltar atrás e se explicar, demonstrando que não fará exatamente um governo de enfrentamento no que tange a políticas econômicas na prática, fora do campo do discurso político. Se isso se confirmar, como acredito que ocorrerá, Lula fará um governo de agenda mínima no campo social, sem reformas estruturais na produção e distribuição da riqueza nacional. Caso opte pelo enfrentamento não só no discurso, mas na política econômica, terá que contar com a mobilização popular para lidar com o terrorismo especulativo, pautas bombas no Congresso, volta do lavajatismo recauchutado na mídia e pedidos de impeachment.

O teto de gastos como âncora fiscal já demostrou sua discrepância em relação a realidade da economia, tendo que ser deixado de lado em todos os anos desde que entrou em vigor. A rigidez fiscal sem levar em conta os ciclos econômicos, e sem espaço para déficits fiscais, não é compatível com o capitalismo. Uma solução melhor para o controle dos gastos públicos no longo prazo é a meta de estabilidade da relação dívida/PIB, que teria como instrumentos não somente o corte de gastos, mas também o aumento da carga tributária.

A importância de uma relação dívida/PIB estável se deve ao fato do real ser uma moeda de baixa posição na hierarquia de moedas de reserva internacional, o que faz com que uma alta dívida pública eleve o risco da moeda nacional e exija maiores taxas de juros como contrapartida, causando fortes e duradouras crises econômicas.

Para que no longo prazo a dívida/PIB se mantenha estável serão necessários superávits fiscais nos períodos de economia aquecida para compensar déficits fiscais dos períodos de economia desaquecida. Uma das melhores maneiras de se calcular o superávit e o déficit fiscal desejáveis é fazendo tal cálculo em função do hiato do produto. Por exemplo, nos anos de 2015 e 2016 o hiato do produto foi de cerca de -2% e -4%, respectivamente, enquanto os déficits fiscais foram de cerca de 2% do PIB em cada um nesses dois anos.

Ou seja, todo o terrorismo da mídia orientada pelo mercado financeiro que afirmava que o Brasil estava prestes a quebrar com Dilma era infundado. A crise econômica do governo Dilma mostrou sua face na queda do PIB e na renda média do trabalhador, que não se recuperaram até hoje, em 2022, após sete anos do início da crise. Se Dilma fizesse um déficit maior de 3% ou 4% do PIB elevando a taxa de investimento/PIB para 20% através de investimentos públicos, provavelmente o PIB e a renda média teriam se recuperado, e a relação dívida/PIB não continuaria em ascensão até 2020, quando a queda drástica da taxa SELIC no governo de Jair Bolsonaro segurou o aumento da dívida pública.

É consenso entre os economistas heterodoxos e ortodoxos que só há crescimento do PIB e aumento da renda média se houver anterior investimento. Por isso, uma manutenção de 20% do PIB ao ano de investimento, somados o investimento privado e o público, é fundamental para manter-se uma trajetória de crescimento anual do PIB, o que contribuiu também para a redução da relação dívida/PIB. Se voltarmos aos anos de 2015 e 2016, entretanto, não poderíamos propor o aumento do investimento público como solução para a recessão pois a operação Lava Jato havia parado a maior parte das obras de infraestrutura pelo país.

Por último, é importante reavaliarmos a atuação do Banco Central na determinação da taxa básica de juros do país. A função da SELIC deveria ser pagar o preço do risco do real em relação ao dólar oferecendo ao mercado uma taxa de juros real correspondente ao risco dos títulos públicos brasileiros, o que hoje significaria uma taxa de juros real de cerca de 2% ao ano, ou seja, uma SELIC de 7%. Além disso, outra função da SELIC é impedir a baixa ou alta exarcebada do dólar no país, buscando um dólar entre R$4 e R$6, preferencialmente.

A inflação brasileira em torno de 5% ao ano não deveria ser motivo de alarde e elevação dos juros causando recessão. Quando a inflação não for relativa a elevação do dólar ou de preços administrados pelo governo, deve ser combatida com política fiscal, ou seja, com superávits fiscais. Inflação alta em período de hiato do produto negativo, em regra, é uma inflação de dólar ou de preços administrados, como a atual. Uma inflação entre 3,5% e 6,5% poderia ser a meta do BC, em vez da meta atual de inflação entre 1,5% e 4,5%, que não corresponde a uma meta realista em país da periferia do capitalismo como o Brasil.

Dessa maneira, uma âncora fiscal que coloque na balança meta de investimento em 20%, estabilidade da dívida/PIB em 10 anos e preveja superávits ou déficits fiscais de acordo com o hiato do produto positivo ou negativo é minha ideia geral para uma administração macroeconômica da economia do Brasil. Entretanto, é necessário sempre levarmos em conta que a política econômica depende mais da correlação de forças da política nacional, o que inclui o poder político e e o poder econômico, do que de questões técnicas. Por isso, é necessário uma nova regra fiscal que ao mesmo tempo em que considere os ciclos econômicos do capitalismo, contenha a elevação da dívida pública brasileira para agradar ao mercado financeiro e todo seu poder sobre o Brasil. Contudo, tal decisão provavelmente não ocorrerá, e a nova âncora fiscal de Lula deverá ser quase tão ortodoxa quanto a de Michel Temer.

*Bruno Machado é engenheiro.

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