Origens da guerra na Ucrânia

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Por ALEXANDRE ARAGÃO DE ALBUQUERQUE*

O chamado Ocidente se arvora a possuir o monopólio da verdade e a exclusividade da agressão

“O início de qualquer nova guerra geralmente se dá no final da anterior” (Viktor Medvedchuk).

O conflito na Ucrânia, envolvendo o assim chamado Ocidente, imperialista, comandado pelos EUA-OTAN contra a Rússia, foi precedido pela Guerra Fria. Tudo parte da concepção em torno do resultado final daquele “conflito gélido”. Para os EUA-OTAN, a Rússia foi a supostamente derrotada; consequentemente, tornou-se “presa fácil” a ser controlada pelo império ocidental vencedor. Para esse bloco de poder, os territórios fronteiriços à Rússia são zonas de influência do Ocidente, não cabendo aos russos quaisquer reivindicações, passando a ser “infundada” a defesa de seus interesses na região, representando um “claro ataque” às determinações e objetivos dos EUA-OTAN.

Como afirmou Margareth Thatcher, primeira-ministra do Reino Unido (1979-1990), “não precisamos mais olhar o mundo através do prisma das relações Leste-Oeste porque a Guerra-Fria acabou. A posição da Rússia no Leste não é mais importante. Há um vetor, um dono do mundo, um vencedor”. Este assim chamado Ocidente se arvora a possuir o monopólio da verdade e a exclusividade da agressão: nenhum país do mundo possui tantas bases militares no exterior quanto os EUA, o planeta inteiro está repleto delas.

Mas a Rússia tem um olhar diferente sobre a questão. Ela não se vê de forma alguma como perdedora. Pelo contrário, por meio das reformas democráticas introduzidas por seus governos, tanto na política quanto na economia, o confronto militar nuclear foi substituído pelo comércio internacional acarretando uma integração com o Ocidente, fazendo amigos os antigos inimigos. Portanto, uma grande vitória para ela e para o mundo, em virtude do fim de uma guerra e sua ameaça nuclear, transformada em uma cooperação igualitária e de construção conjunta de uma nova realidade política e econômica, principalmente a partir da criação em 1992 da União Europeia (UE), a qual incluía a Rússia que se via como um membro de pleno direito desta nova união.

Estas duas abordagens antagônicas irão orientar os eventos futuros.

A partir daí a Rússia começa rapidamente sua integração ao mercado europeu, muito mais rápido, por exemplo, do que a Ucrânia, em virtude dos enormes recursos energéticos demandados pela Europa, enquanto a Ucrânia é incapaz de comprar recursos energéticos a preços europeus. Importante destacar que, a independência da Ucrânia, nos anos 1990, poderia ter acabado em colapso econômico não fosse o desempenho dos territórios do sudeste ucraniano (russófonos e russófilos) que incorporou a Ucrânia à divisão internacional do trabalho devido à sua enorme capacidade de produção e indústria desenvolvida.

Apesar deste fato histórico ser omitido pelo Ocidente, foi o sudeste, com a região de Donbass envolvendo Donetsk e Luhansk, que salvou a economia da Ucrânia e com ela sua independência política, obtida em 1991. Sendo assim, é importante deixar registrado que a Ucrânia tem fortes ligações históricas com a Rússia, fazendo parte deste país por mais de 300 anos, produzindo forte impacto em sua cultura, composição étnica e mentalidade, nutrindo relações fraternas e simpatias mútuas, uma relação infinitamente mais próxima do que a existente entre Reino Unido e Canadá, por exemplo.

Contudo, o crescimento da Rússia e sua integração à Europa passa a ser temida pelos EUA que declaram essa influência russa como perigosa, criminosa e corrupta. O pensamento do império colonizador ocidental não pode tolerar o crescimento econômico e a autonomia de uma colônia distante. As Periferias não podem ultrapassar o Centro, nem financeira, nem política, nem culturalmente. Como afirmou enfaticamente o primeiro secretário-geral (1952-1957) da Otan, Hastings Ismay: “O objetivo da Aliança do Tratado do Atlântico Norte é manter a União Soviética fora da Europa, os americanos dentro, e os alemães embaixo”. EUA dentro da Europa, Rússia fora. Eis o centro do confronto atual. Ou seja, a força militar intervencionista dos EUA-Otan sobrepôs-se e destruiu a possibilidade da união entre as nações, no caso, da integração da União Europeia.

O famoso e competente jornalista investigativo Seymour Hersh publicou no dia 08 de fevereiro uma revelação bombástica (How America Took Out The Nord Stream Pipeline) descrevendo minuciosamente como a Marinha estadunidense bombardeou o Nord Stream, uma obra de engenharia russo-alemã (Gazprom) que permitiria à Alemanha importar o gás natural russo a preços muitíssimo mais baratos e transporte mais ágil e seguro do que o gás importado dos EUA. Seymour Hersh revelou que já em junho de 2022, a Marinha estadunidense plantou explosivos nos gasodutos Nord Stream 1 e 2, detonados remotamente em 26 de setembro.

O artigo foi recebido com completo silêncio nas principais publicações da mídia corporativa estadunidense, destruindo toda a narrativa do não envolvimento dos EUA na guerra travada no território ucraniano. Esta operação, segundo Seymour Hersh, foi ordenada pelo presidente Joe Biden e planejada pelo secretário de Estado Antony Blinken. E pelo Direito Internacional, a Alemanha deveria ter declarado guerra aos EUA diante de tamanha agressão armada; mas, como está subjugada, ficou muda. Além disso, a destruição do Nord Stream torna a Europa mais dependente das importações de gás natural americano, substituindo o gás russo, correspondendo a um importante objetivo dos EUA na guerra da Ucrânia desde o início: colocar a Europa mais firmemente sob o seu controle.

A Ucrânia foi submetida a uma guerra híbrida em 2014 (no Brasil esta guerra híbrida teve início com as jornadas de 2013, levando o neofascismo brasileiro ao poder em 2018), impondo àquele país uma mudança educacional, cultural e midiática, sob o pretexto de reformas democráticas, fomentando um forte processo de manipulação da opinião pública ucraniana (desinformação), atiçando o ódio ucraniano ao povo russo (como aqui ocorreu com a campanha antipetista e antilulista). Volodymyr Zelensky, também conhecido como marionete dos EUA-OTAN, foi colocado no poder prometendo a paz, mas se tornou a personificação da guerra.

Para levar seu projeto adiante, ele esmagou qualquer tipo de oposição interna ao seu governo. Políticos, jornalistas, ativistas sociais que defendiam a paz e as boas relações com a vizinha Rússia foram reprimidos, com seus veículos de imprensa fechados, sem qualquer base legal e seus bens foram saqueados, sendo considerados “traidores” pelo governo de Zelensky. Em resumo, o partido da paz foi considerado traidor, e o partido da guerra tomou os rumos do poder.

Na terça-feira, 21, o presidente russo Vladimir Putin realizou um forte discurso para Assembleia Federal da Rússia diante do agravamento da crise por meio da visita inesperada do Joe Biden a Kiev, capital da Ucrânia. Numa análise detalhada da crise, Putin destacou que já em 2014 foi preciso ficar de prontidão em virtude do golpe de Estado ocorrido na Ucrânia que colocou no poder um regime neonazista. Desde então, a região ucraniana de Donbass tem resistido, defendido o direito de viver em sua terra, de falar sua língua nativa, combatendo e não se rendendo apesar dos bloqueios e constantes bombardeios lançados contra civis por artilharia, tanques e aviões, pelo ódio não disfarçado de Kiev.

Segundo Vladimir Putin, as promessas dos líderes ocidentais consistiema em falsificações, mentiras cruéis, pois encorajaram os neonazistas ucranianos a cometerem atos terroristas contra a população da região de Donbass, jogando com a vida das pessoas, como ocorreu na Iugoslávia, Iraque, Líbia e Síria. Milícias neonazistas ucranianas foram treinadas em academias e escolas militares ocidentais, recebendo armas e munições. Além disso, os EUA-OTAN estavam implantando rapidamente bases militares e laboratórios biológicos secretos pertos das fronteiras da Rússia.

Vladimir Putin ainda registrou que, segundo a avaliação dos próprios especialistas americanos, as guerras desencadeadas pelos EUA desde 2001 mataram quase 900 mil pessoas e mais de 38 milhões se tornaram refugiados. “Agora eles só querem simplesmente apagar tudo isso da memória da humanidade e fingir que isso nunca aconteceu. Mas ninguém no mundo vai esquecer”, disse o presidente russo.

Sobre a tentativa do assim chamado Ocidente de deflagrar uma guerra híbrida no interior território russo, Putin alertou: “Nós somos um país diferente. A Rússia tem um caráter diferente, nunca abriremos mão de nosso amor à Pátria, da confiança nos valores e costumes dos nossos antepassados, do respeito por todos os povos e culturas. Lembramos como os inimigos da Rússia tentaram usar gangues de terroristas contra nós, procurando semear a rivalidade étnica e religiosa para nos enfraquecer e nos dividir de dentro para fora. Nada disso deu resultado. Estou orgulhoso, penso que estamos todos orgulhosos, de que nosso povo multiétnico, a maioria absoluta dos cidadãos, tenha tomado uma posição de princípio sobre a operação militar especial, tenha entendido o significado das ações que estamos a fazer, apoiando nossas ações para proteger Donbass. A Rússia estará à altura de qualquer desafio, porque somos todos um só país, um só povo grande e unido. Estamos seguros de nós mesmos, estamos certos de nossos pontos fortes”.

A partir de hoje, 24 de fevereiro, terá início o segundo ano da guerra dos EUA-OTAN contra a Rússia em território ucraniano. Indaga-se: as lideranças mundiais, por mais um ano, continuarão paralisadas na busca da paz, permitindo a continuidade desta guerra cuja vitoriosa, até agora, é a indústria bélica?

*Alexandre Aragão de Albuquerque é mestre em Políticas públicas e sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).

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