Carta da Itália

Imagem: Elyeser Szturm
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Por Luan Remígio*

Relato de um estudante brasileiro em Lecce, no sul da Itália, sobre o cotidiano local durante a pandemia do coronavírus.

Nos últimos dias ensaiei diversas vezes o início dessa carta, já tinha claro aquilo que gostaria de dizer. Na realidade, desde que cheguei em Lecce, no sul da Itália, pensava em escrever algo que pudesse ajudar aqueles que por algum acaso tivessem que realizar, como eu, estágio ou estudos aqui. Entretanto, o que me levou, mais uma vez, a querer escrever foram os acontecimentos recentes, sobretudo os decorrentes da pandemia global causada pelo Covid-19.

Antes de mais nada, queria dizer que a experiência aqui narrada está longe de ser um relato de alguém proveniente da classe média brasileira, muito pelo contrário: venho de uma família humilde do interior do Pará, que encarou os estudos como única forma de superar as adversidades, ensinamento que tento passar adiante para meus alunos. Não é apologia à meritocracia, pois não acredito nesta falácia. Aprendi isto com a vida, e diariamente a vejo sendo refutada. Infelizmente, a urgência deste relato se dá pelo fato do vírus ter chegado ao Brasil, ao Pará, e, não podemos esquecer, as desastrosas declarações do atual presidente e a forma como ele conduz o país diante do vírus é imaginável somente em obras distópicas de ficção científica.

Quando os primeiros casos começaram a ser contabilizados na Itália no final de janeiro, fiquei com uma dúvida: a doença é tão grave assim? Já havia casos de mortes e contágios na China aos montes, mas a forma como as autoridades encaravam a situação levantava a hipótese de “histeria”, de uma preocupação demasiada; parecia uma questão resolvível facilmente, tamanha era a petulância. Nos aeroportos, pelo que podia acompanhar nos noticiários, via algumas pessoas com roupas de segurança com uma espécie de termômetro, em forma pistola, verificando a temperatura daqueles que chegavam. Não sou expert em assuntos relacionados à área da saúde (sou da filosofia e não salvo vidas, como disse o Ministro da Educação), mas sei que o vírus tem um período de incubação e pode levar tempo para sintomas se manifestarem.

Cabe aqui um breve esclarecimento. Assim como o Brasil, a Itália não é um país homogêneo (imagino não ser exclusividade de ambos). No Brasil, o sul e o sudeste concentram as atividades financeiras, culturais, mais empregos e, claro, a capital financeira do país, melhor infraestrutura, melhores hospitais e o norte seria, grosso modo, o contrário. Na Itália, a coisa é diferente, o sul é considerado menos desenvolvido e as pessoas são mais receptivas, mais “calorosas”, parece com o Brasil com o qual estou acostumado.

Alguns dias depois, meados de fevereiro, as coisas começaram a complicar, sobretudo no norte da Itália. A primeira medida de suspensão das atividades didáticas nas universidades e escolas foi um primeiro impacto, embora restrita a algumas regiões do norte, como a Emília-Romana e a Lombardia, até hoje as áreas mais afetadas; em seguida, todas as atividades nas dependências universitárias; as regiões do norte foram consideradas “zona vermelha” e a possibilidade, informação vazada e depois confirmada, de fechamento das regiões e a necessidade de motivos convincentes (formulário devidamente preenchido, cabendo sanções – multa e até prisão – para aqueles que fornecessem informações falsas) para se locomover em território nacional desencadeou correria para as estações de trem, ônibus e aeroportos.

Os trens saiam abarrotados. Quando as sanções se tornaram mais duras, as pessoas se questionavam sobre salário, empregos, pensavam que era mais uma “gripezinha” (sic); “daqui a pouco criaremos anticorpos”; “temos que evitar as pessoas que estão no grupo de risco” (isolamento vertical). A falta de seriedade inicial por parte do governo no trato do vírus ecoou nos cidadãos, tornando difícil combater a pandemia até hoje. As aulas e atividades comerciais seguiam normalmente em Lecce. Não tardaria para o vírus chegar ao Sul.

Assim, em condições normais, o êxodo de pessoas em direção ao norte da Itália na busca de melhores empregos e salários (outra coincidência com o Brasil), mas que mantêm suas “raízes” no sul, frequentemente revisitadas; a “descida” de jovens do norte e regiões centrais em direção as universidades do sul; além do “Erasmus”, o programa de intercâmbio universitário europeu. Nas ruas de Lecce era comum ver alunos com suas mochilas e malas transitando pela cidade, chegando de cidades vizinhas, de outras regiões, em direção as suas residências, na maioria das vezes, compartilhadas. Mas, uma vez pensei: “esta medida do governo não vai servir de nada; por que não suspender as aulas aqui também?”. Mais ou menos duas semanas depois do início do período letivo, foi decretada a suspensão de todas as atividades didáticas presenciais, substituídas por aulas via internet; inicialmente, as dependências da universidade, como bibliotecas, salas de estudos e outros serviços administrativos funcionariam normalmente, medida que logo alterada.

Ao mesmo tempo, o número de mortos aumentou consideravelmente e a população começou a encarar as medidas com mais seriedade. O governo determinou uma série de procedimentos com objetivo de restringir a circulação de pessoas nas ruas. Recomendou-se também o “trabalho de casa”, para aqueles que podem realizar esse tipo de trabalho. No início, os bares (o bar para o italiano é uma coisa diferente, encontramos neles, sobretudo, café e alguns lanches rápidos como pizzas, doces, salgados, cigarros, água) e restaurantes ainda podiam funcionar, desde que se respeitasse a distância de segurança de um metro.

Como essa norma não surtiu efeito passou-se à radicalização e somente estabelecimentos considerados de primeira necessidade podem abrir: supermercados, postos de combustível, farmácias edícolas (local onde é possível comprar uma diversidade de coisas, principalmente jornais, revistas, livros) e tabaquerias (como o próprio nome sugere, local que também vende cigarros, tabaco, “seda”; serve também como uma “lotérica”, na qual podemos pagar boletos, realizar apostas, comprar selos de correio).

Várias medidas foram adotadas para tentar suavizar os efeitos do impacto econômico no país: auxilio a empresas e autônomos, por exemplo. O Estado dando segurança para a população. Mesmo sendo difícil e sofrendo críticas, o governo italiano está tentando (não tenho conhecimento suficiente para abordar as questões da política interna italiana).

Os supermercados continuam sendo abastecidos, embora alguns itens sejam mais difíceis de encontrar: os materiais de limpeza como água sanitária acabam rapidamente; por conta da mudança de hábitos, as pessoas estão consumindo mais “fermento”, pois estão comendo e cozinhando mais em casa, já que não podem sair para o famoso “aperitivo” (espécie de Happy hour). Pede-se que somente um membro da família saia para fazer compras no supermercado.

Não me recordo se em Milão ou Roma, alguns estabelecimentos estipularam um limite mínimo de 10 euros para fazer compras, pois alguns estavam usando a justificativa de fazer compras para sair de casa. Assim como os praticantes de corrida ou ciclismo: amigos marcavam um horário e local para se encontrarem vestidos a caráter e portando suas bicicletas. Isso levou ao fechamento de parques e praias. Aqueles que têm animais de estimação podem levá-los para passear, desde que se limitem às proximidades de sua residência e não tentem reviver as aventuras de Will Smith em “Eu sou a lenda”, como disse um governante italiano.

Durante a programação na TV vemos boletins sobre a situação do vírus (números de casos, curados e mortos), apelos nos programas para a população com a campanha: “eu fico em casa” [io resto a casa]. Advertência reforçada nas redes sociais, principalmente no Instagram, onde personalidades italianas fazem diariamente transmissões ao vivo incentivando a campanha e a importância de permanecer em casa: músicos, esportistas, escritores, radialistas, atrizes, atores etc. Nas farmácias, há tempos não se encontra máscaras ou mesmo álcool em gel – na farmácia na esquina da minha casa é possível ler: “Não temos máscaras nem álcool em gel. Dois clientes por vez”.

No meio de todos esses acontecimentos estamos Myrth e eu: ela no norte, em Parma, eu no sul, em Lecce. Nossas rotinas foram modificadas drasticamente com a quarentena e nossas pesquisas sofrem de algum modo com isso, principalmente a da Myrth, que necessita do laboratório.

A decisão de vir estudar por uma temporada na Itália não foi fácil, abrimos mão de algumas coisas para que juntos estivéssemos aqui. A distância foi algo no primeiro momento minimizada por nós, pensamos em primeiro lugar no profissional: ela obrigatoriamente deveria ficar em Parma, por questões institucionais; eu poderia tentar outras universidades e outros orientadores, mas a oportunidade de desenvolver parte da minha pesquisa sob orientação do professor Marco Brusotti teve um peso decisivo na minha escolha (isso graças ao meu orientador do mestrado, Ernani Chaves, e do doutorado, Henry Burnett).

De fato, enquanto perdurou a “normalidade” nas nossas vidas, tudo ia bem; a distância era administrável, conseguíamos nos ver com regularidade; no ambiente de trabalho, passamos a nos enturmar. “Fazer parte do local”, não é fácil, ainda mais quando a língua é diferente. Em todo curso de idiomas que fiz, escutei que ao se aprender um novo idioma se aprende também uma nova cultura. “Cultura” é um conceito tão vasto, que só me dei conta ao estar inserido em uma diferente.

As palavras carregam consigo significados que determinam também o modo de sentir; aos poucos estou aprendendo uma cultura nova, palavras novas e, talvez, sentimentos novos. Mas, é uma palavra conhecida que abraça aquilo que eu sinto hoje: saudade. Saudade da mulher que amo, da minha casa, da minha família no Brasil, dos meus amigos. Minha rotina se resume basicamente em tentar desenvolver minha pesquisa, ler coisas diferentes de filosofia, manter uma alimentação razoável, conter a ansiedade, me exercitar, acompanhar o noticiário.

A grande aventura e grande perigo é ir às compras. Foi em uma dessas idas, que percebi a gravidade da situação. Ao caminhar em direção ao supermercado mais próximo da minha casa, na rua se encontravam pouquíssimas pessoas e, ao cruzar com alguém, ambos se repeliam e buscavam a extremidade da calçada. Neste supermercado ainda não estavam fazendo controle na entrada, mas era grande o número de pessoas usando máscaras. Como não havia encontrado uma, fui com o meu “scaldacollo” (algo usado para esquentar o pescoço) para prevenir e o subiria caso precisasse.

Enquanto selecionava alguns itens e as pessoas dentro do supermercado respeitavam a distância de segurança, precisei entrar em um corredor onde havia um homem de meia idade; dirigi-me para o final do corredor passando pelo homem que estava no centro da extensão do corredor. Demorou pouco tempo até uma senhora, aparentando mais de 60 anos, entrar no mesmo corredor e, ficando entre nós dois, tossiu. Neste momento, ambos trocamos olhares de perplexidade e medo; a senhora parecia calma, nós não. Foi então que o homem cobriu o rosto com o seu cachecol, eu levantei o “scaldacollo” e abandonamos o corredor enquanto a senhora balbuciava algumas palavras, que não procurei entender, mas pareciam querer justificar sua tosse.

No dia seguinte, saí novamente decidido a fazer compras que durassem mais de 5 dias. Em direção a um mercado mais distante na companhia do Antônio, um dos três rapazes com quem divido apartamento, e encontrei o cenário visto na TV: pessoas esperando a vez para entrar no supermercado com senha, o que impediu que o professor Brusotti entrasse e a quem saudei de longe, por medida de segurança.

Dia após dia sentia ainda mais a gravidade da situação. Até o golpe fulminante do dia 21 de março, com os 793 mortos de Bergamo. A imagem dos caminhões do exército em prontidão para transportar os corpos sem espaço em sua cidade natal é uma das sensações, que escapam às palavras.

Em Lecce conheci o Alessandro, um estudante do doutorado em filosofia, que mora às proximidades de Bergamo. Nos sentíamos à vontade um com outro por sermos “novos” na cidade e fazíamos juntos visitas frequentes às “gelaterias” e “pasticcerias”, até que ele partiu para sua cidade. Trocamos algumas mensagens, mas depois ele sumiu. Havia dito que estava ocupado e depois me ligaria para explicar como as coisas estavam, pois preparava uma apresentação para o dia 2 de março. Isso foi antes do Covid-19.

Naquele dia resolvi enviar uma mensagem e a resposta foi muito triste, o que confirmou a veracidade das notícias: não era possível às famílias velarem os corpos, não havia espaço para os corpos, que ficavam em uma espécie de galpão esperando os caminhões. Alessandro contraiu o vírus ao socorrer o tio, que infelizmente não resistiu. Como agora, diante do computador, me faltaram palavras para exteriorizar o que sentia. Alessandro é um cara bacana, espero que os seus planos de ir ao Brasil um dia se concretizem.

Este extenso relato ainda não tem conclusão no tempo. Mas o que vi e vivi nos últimos dias me deixa muito preocupado: o descaso da autoridade máxima do executivo do meu país. Suas declarações são, no mínimo, desastrosas. O governo poderia ter estudado formas de enfrentar a pandemia de acordo com as experiências dos outros países e não minimizar a gravidade da situação ou repetir erros cometidos por outros, quando desconheciam o vírus – ainda não há substância capaz de tratar de maneira segura e satisfatória; as sequelas são desconhecidas.

Esse é o ponto. Não precisa ser especialista para se chegar a essa conclusão. As consequências econômicas ainda são difíceis de serem calculadas, mas o “mercado” (esta entidade abstrata) não está preocupado com vidas, ainda mais as “improdutivas”. A possibilidade do EUA injetar 2 trilhões na economia fez a bolsa americana alcançar alta recorde, mesmo em meio a pandemia. O mercado quer garantias, não importa o custo – 5 ou 7 mil vidas, qual a diferença?

A Itália foi negligente com o vírus no começo, como boa parte da Europa, e paga o preço agora, levantando o debate sobre adotar medidas que soam, ao menos para o ouvido ocidental, totalitárias: vigiar todos como fizeram (fazem) China e Coreia do Sul por meio de câmeras e GPS (George Orwell, 1984; Allan Moore, V de Vingança). Fala-se do “bom” uso da tecnologia de vigilância, não acredito No mesmo dia, o presidente do Brasil fala em possíveis “ataques a democracia”, desferidos pela “extrema mídia” (expressão que ainda não entendi) e partidos de esquerda.

É difícil dizer para o brasileiro ficar em casa. Mas, para aquele que puder, faça!

*Luan José Silva Remígio é professor da Seduc-PA, doutorando em filosofia pela Unifesp e intercambista na Universidade del Salento, Lecce, Itália.

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