Pânico nas escolas brasileiras

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Por MARCOS DANTAS*

Ações do governo para impor deveres às plataformas em defesa da Democracia brasileira

A portaria 351/2023 do Ministério da Justiça, impondo às assim chamadas “redes sociais” alguns deveres relativamente à defesa da Democracia brasileira abriu um enorme debate em círculos jurídicos e políticos habituados às aparências de uma internet desconectada das realidades econômicas, políticas, até geopolíticas, nas quais ela, internet, realmente se assenta.

A portaria, segundo as informações que chegam através do noticiário jornalístico, seguiu-se a uma reunião do ministro Flavio Dino com representantes das maiores plataformas de “redes sociais”. Nessa reunião, as representantes do Twitter afirmaram, de modo arrogante e desrespeitoso, que não acatariam às demandas do governo brasileiro. Para alguns dos críticos da portaria, talvez fosse necessário, aqui, sublinhar a palavra “brasileiro”… Conforme lembrou o ministro às representantes da empresa, “termos de uso” não se sobrepõem à Constituição do Brasil. Em outras palavras, os interesses de uma empresa estrangeira não estão acima da soberania nacional.

Tenha sido, ou não, uma reação imediata a essa reunião, a urgência da Portaria se impôs quando estava claro que havia uma evidente conspiração para levar pânico às escolas brasileiras. E isto, depois de tudo o que aconteceu no 8 de janeiro: um quase golpe que sabemos muito bem não ter sido orquestrado 24 horas antes, mas ao longo de meses e meses de posts no Facebook ou Twitter, vídeos no YouTube, mensagens multiplicadas via WhatsApp ou Telegram. O nosso governo, na pessoa do ministro para tal dotado da necessária competência (em todos os sentidos), avisou que não seria mais possível seguir tolerando tanta leniência dessas empresas estadunidenses para com o nosso Estado Democrático de Direito. Em seguida, demonstrou que não estava para brincadeira: baixou a Portaria.

Sabemos que na linha da orientação ultraliberal que presidiu a elaboração do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), as atividades sociais ou econômicas que se dão acima da camada técnica da internet estão praticamente a salvo de quaisquer restrições, salvo se com base em nunca muito ágeis decisões judiciais. Enquanto que as mensagens nessa camada acima da camada técnica se multiplicam à velocidade de nanossegundos, as decisões na Justiça seguem a passo de cágado… Trata-se do polêmico artigo 19, emulado da Seção 230 do Decency Act estadunidense.

O artigo 19 não se refere às plataformas sociodigitais (como prefiro denominar YouTube, Facebook, Amazon etc.) mas a “provedores de aplicações”, entendendo por “aplicações” o “conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet”. Que “funcionalidades” são estas? Uma foto que eu posto no Instagram é uma “funcionalidade”? O próprio Instagram é uma “funcionalidade” ou ele se apoia em “funcionalidades” contidas no sistema operacional Android, nos pontos de troca de tráfego do NIC.br e nas redes de telecomunicações que possibilitam o trânsito de pacotes de internet? Falta essa definição…

O que devia estar muito claro (além do fato de o Marco Civil não ser “cláusula pétrea”…) é que essas “redes sociais” equivalem a meios de comunicação social, embora com algumas características próprias. Ao contrário do que poderiam ser os “provedores de aplicação” (o que quer que se entenda como tal), YouTube, Facebook, Twitter, nem mesmo WhatsApp ou Telegram não são nada neutros em relação aos conteúdos que neles circulam. Essas plataformas interferem diretamente na circulação desses conteúdos.

Com base no que é postado, elas produzem audiência para atrair veiculação publicitária. Quanto maior for o sucesso de um post, maior a audiência, maior a atração publicitária. É um modelo de negócios não muito diferente do modelo da radiodifusão, exceto pela muito maior precisão na identificação de um potencial consumidor para um interessado anunciante. Ao invés de caríssimos anúncios publicitários enviados para uma imensa, difusa e incerta audiência, como é típico do rádio ou TV, as “redes sociais” veiculam anúncios bem mais baratos para o anunciante, enviados para um consumidor potencial individuado pela mineração e extração dos seus dados pessoais pelos algoritmos, assim otimizando a relação custo/benefício.

O que tínhamos de estar dizendo agora é que, simplesmente, elas estão à margem do Marco Civil. E não há lei que as regule diretamente. De fato, elas se aproveitam desse vazio legal para se passarem por “provedores de aplicações” ou, outra expressão muito usada, “intermediários”. E assim, entre outros tantos problemas, dão-se ao luxo de simplesmente ignorar os interesses nacionais brasileiros, se é que não estão, de fato, a serviço dos interesses do país onde têm suas sedes…

Como agiu o ministro Flávio Dino? Para começar, agiu politicamente. É preciso deixar claro: a questão, antes de jurídica, é política! O ministro se mostra disposto a ir às últimas consequências em defesa da Democracia e da Soberania brasileiras. Afirmou: “volto a dizer, não é porque o governo quer, é porque a sociedade precisa. Se eles não entenderem, vão ser obrigados a entender”. “Eles”, leia-se “plataformas”. Afinal, este não é um governo que bate continência para a bandeira dos Estados Unidos…

No aspecto meramente jurídico, na inexistência de um marco regulatório que efetivamente trate das atividades políticas, econômicas, culturais que se dão sobre a internet, a portaria explora as condições legais disponíveis. Enquadrou as “redes sociais” na legislação de proteção ao consumidor. Jogada de mestre! A lei assegura que o consumidor tem que receber produtos e serviços de qualidade. Certamente, não pode estar atendendo aos requisitos de qualidade, segurança e outros abrangidos pela lei, um serviço que deixa chegar a seus usuários mensagens propagando ataques violentos a crianças nas escolas ou aos prédios centrais das instituições brasileiras. A portaria ministerial apenas determina que a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacom) investigue se as plataformas estão prestando, ou não, um serviço de qualidade. Caso a investigação conclua pela negativa, caberá acionar os órgãos judiciais competentes. Para tal, naturalmente, a Senacom está orientada a exigir das plataformas, as informações necessárias.

A portaria determina também que a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) tome as medidas cabíveis para proteger as escolas, para isto devendo contar com a “efetiva colaboração” das plataformas. É natural. Qualquer cidadão ou empresa deve colaborar com o governo e o Estado no cumprimento das suas (do Estado) obrigações, conforme definidas na Constituição.  Garantir a segurança das escolas, das crianças, dos professores, demais funcionários, defender a educação, com certeza é uma obrigação do Estado, dos cidadãos e cidadãs, das empresas que operam em território nacional, inclusive estrangeiras.

Quais as críticas? A panaceia dos “direitos humanos” como se defender crianças e jovens nas escolas não fosse respeitar um direito humano fundamental: o direito à segurança e à vida. A portaria também estabelece que a Senasp crie um banco de dados de “conteúdos ilegais” para compartilhar com as plataformas visando facilitar a identificação desses conteúdos e seus autores. Ora, primeiro: os críticos e críticas deveriam estar mais preocupados com as gigantescas bases de dados que essas plataformas possuem a nosso respeito, bases estas situadas em servidores fora do território e da jurisdição do nosso país.

Segundo: a polícia e o próprio Estado possuem também grandes bases de dados a nosso respeito com finalidades estatísticas, educacionais, sanitárias, fiscais, inclusive policiais. Qual o problema de o Estado passar a dispor de uma base de dados específica para reprimir atividades claramente criminosas efetuadas através das plataformas, com elas compartilhando para melhor lhes facilitar as práticas da assim chamada “moderação”?

O terceiro governo Lula iniciou-se e vai se desenrolar em condições muito mais difíceis do que os dois primeiros. Há 20 anos, a ameaça nazi-fascista, obscurantista, fundamentalista não estava tão clara, para a grande maioria dos políticos e ativistas democráticos, como já deveria estar agora, depois do que vivenciamos nos últimos quatro anos, no processo eleitoral, no 8 de janeiro. Nem o mundo estava vivendo a bi ou tripolaridade que agora experimenta, exigindo do Brasil malabarismos internacionais para garantir sua integridade e independência. Parece que tem gente que ainda não entendeu a real natureza da Lava Jato e do golpe de 2016, apesar das denúncias de Edward Snowden. Não podemos, diante de tudo o que já experimentamos em tão pouco tempo de novo governo, nos comportar como Chamberlain em Munique. O preço a ser pago depois será muito mais caro.

*Marcos Dantas é professor titular aposentado da Escola de Comunicação da UFRJ. Autor, entre outros livros, de A lógica do capital-informação (Contraponto).

Publicado originalmente no Jornal GGN [https://jornalggn.com.br/na-rede/dino-mostra-que-nao-sera-um-novo-chamberlain-por-marcos-dantas/].


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