Petrobras – depois do fim do PPI

Imagem: Loïc Manegarium
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Por ANTONIO MARTINS*

Algo se moveu, num governo que, apesar de suas ótimas intenções, parece ter tanta dificuldade de enfrentar o rentismo

O governo Lula livrará a Petrobras das garras dos rentistas? O imenso poder da empresa – cujos lucros, em 2022, foram iguais ao dobro do obtido pelos cinco maiores bancos brasileiros juntos – poderá impulsionar a reconstrução nacional em novas bases? Um fio de esperança reapareceu. Na terça-feira (16/05) acabou enfim o PPI, a política de preços que, imposta desde o governo Michel Temer, obrigava a estatal a vender seus combustíveis pelo mesmo preço dos importados.

Um dia depois, anunciou-se uma redução expressiva nas cotações da gasolina (-12,5%), no óleo diesel (-12,5%) e no gás de cozinha (-21,42%). Foi um alívio. O preço dos combustíveis tem enorme impacto sobre a inflação dos mais pobres. A política anterior gerava enorme imprevisibilidade econômica, chegando a resultar, em determinados períodos, em quase um preço novo a cada dia.

A equiparação obrigatória às cotações internacionais – quando a Petrobras pode produzir por muito menos – abria espaço para uma concorrência indesejável. Empresas privadas importavam derivados que o Brasil aprendeu a produzir há décadas, estimulando a ociosidade das refinarias nacionais. Por tudo isso, o fim do PPI foi saudado inclusive por críticos ácidos da política de petróleo, como o engenheiro Ildo Sauer, ex-diretor de Negócios em Gás e Energia da estatal. Ele equiparou o mecanismo anterior a um “delírio fundamentalista dos rentistas, interessados em extrair até o último centavo do petróleo brasileiro”.

Mas bastará reduzir os preços dos combustíveis para colocar a Petrobras a serviço das maiorias? A jornalista Maria Cristina Fernandes notou que a mudança de orientação foi vista com tranquilidade pelos acionistas privados da empresa. Os papéis subiram. Como o príncipe de Salina, imortalizado no romance O Leopardo, os rentistas parecem esperar que “algo mude, para que tudo permaneça como está”.

Ildo Sauer explica o porquê. A ligeira baixa nos preços desta semana não será suficiente para a farta renda proporcionada pelo petróleo brasileiro. A riqueza natural do país e as tecnologias desenvolvidas pela Petrobras permitem extrair por ano 1 bilhão de barris – 75% dos quais pela estatal. Como o óleo brasileiro é abundante, o custo total de extração não passa de 8 a 10 dólares por barril em média o que resulta num ganho hoje próximo a 70 dólares. Mesmo após o pagamento de impostos, royalties e despesas financeiras, resta à estatal um lucro que chegou em 2022 a R$ 188 bilhões. O xis da questão está em o quê se faz com ele.

Uma semana antes de anunciar o fim do PPI, a Petrobras divulgou seu balanço relativo ao primeiro trimestre do ano – já sob o governo Lula, portanto. Os números foram analisados pelo Ineep – Instituto de Estudos Estratégicos em Petróleo — e revelam que as políticas introduzidas por Michel Temer e Jair Bolsonaro persistem, inclusive por servirem a interesses muito poderosos.

Em apenas três meses, a estatal lucrou R$ 38,1 bilhões. A lei das Sociedades Anônimas obriga-a a distribuir 25% deste valor aos acionistas. Porém, a exemplo do que tem feito há pelo menos três anos, a Petrobras ultrapassou de longe este piso, distribuindo 64% de seus lucros, ou R$ 24,7 bilhões. Segundo os cálculos de Ildo Sauer, o valor equivale a dois terços do necessário para construir uma refinaria com capacidade de processar 1 milhão de barris por dia, gerar milhares de empregos e tornar o Brasil, de novo, autossuficiente na produção de combustíveis. Em vez disso, a quem estes lucros beneficiaram?

O Estado brasileiro detém, por lei, a maioria das ações com direito a voto na Petrobras, mas não é o maior acionista. Somados todos os tipos de papéis, os acionistas privados controlam 63,31% do capital. Deste total, 70% estão nas mãos de estrangeiros, em geral megafundos de pensão como o BlackRock. São eles que abocanharam a parte do leão dos lucros sob Michel Temer e Jair Bolsonaro, e continuaram a fazê-lo nos três primeiros meses de Lula.

Em contrapartida, persistiu também, neste período, a redução dramática dos investimentos da Petrobras. Eles limitaram-se a R$ 2,48 bilhões. A Associação dos Engenheiros da Petrobras adverte que este valor não é suficiente sequer para repor as reservas de petróleo da empresa. Ou seja: para encher os bolsos de seus acionistas privados, a estatal brasileira compromete seu próprio futuro. A tabela abaixo, também elaborada pela Associação dos Engenheiros da Petrobras com base em dados da companhia, escancara este absurdo. Entre 2005 e 2014, o que ela transferia aos acionistas girava em torno de um quinto do que investia em si mesma. A partir de 2021, porém paga-se aos rentistas entre sete e oito vezes mais do que se investe. Um passo indispensável para que a Petrobras possa se ligar a um novo projeto nacional, portanto, é alterar radicalmente a política de distribuição de lucros, preterindo os especuladores em favor de ações ligadas a um novo ciclo de desenvolvimento do país.

E quais são elas? Uma das primeiras ações é reverter o movimento de fatiamento da Petrobras, que, conforme declararam Jair Bolsonaro e Paulo Guedes, visava claramente criar condições para a privatização total da empresa. O desinvestimento tinha um propósito: transferir ativos estratégicos para grandes corporações privadas. Nesta toada, a estatal perdeu três de suas grandes refinarias (Bahia, Amazonas e Salvador). Abriu mão de sua distribuidora de combustíveis (a BR Distribuidora). Abandonou suas fábricas de fertilizantes. Envolveu-se numa operação que poderá privá-la da Brasken, seu braço petroquímico (construído em sociedade com a Odebrecht). Tudo isso pode ser revisto e revertido, desde que haja recursos e vontade política.

Recuperada da política de desmonte, a Petrobras terá fôlego para ajudar a reverter a reprimarização produtiva do Brasil. Poderá fazê-lo restaurando a “política de conteúdo nacional”, que a levava a priorizar fornecedores brasileiros, em suas compras vultosíssimas. Ela foi essencial para reanimar, nos governos anteriores de Lula, a indústria naval. Mas, anulada por Michel Temer e Jair Bolsonaro, ainda não foi reinstituída.

Hoje, haveria caminhos para expandi-la. Como propõe o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, a Petrobras precisa deixar de ser uma companhia petroleira, para converter-se numa empresa integral de geração de energia – de preferência, em parceria com uma Eletrobrás renacionalizada. Significa mergulhar, por exemplo em grandes projetos de geração de energia solar em placas móveis, instaladas sobre os reservatórios das hidrelétricas. Implica, também, estimular tecnologicamente o desenvolvimento de um setor industrial e de serviços em que pequenas empresas, empregando milhares de trabalhadores, voltam-se à instalação de painéis solares em áreas menores – de assentamentos da reforma agrária e pequenas propriedades agrícolas a residências urbanas.

Ildo Sauer espera um futuro ainda mais ambicioso. A sociedade brasileira precisa encontrar caminhos para se apropriar da maior parte de sua riqueza petroleira. Isso significa, por exemplo, rever a concessão de áreas petroleiras relevantes, entregues em leilões a concorrentes internacionais da Petrobras. Mas deveria levar a outro regime de exploração do petróleo brasileiro. Nele, o Estado assumiria diretamente a responsabilidade pela prospecção e extração do óleo. Contrataria, para tanto, os serviços da Petrobras, remunerando-a adequadamente. Canalizaria os ganhos, porém, para o desenvolvimento social e tecnológico do país – em especial, a saúde, educação e previdência pública e a pesquisa científica.

Visto o cenário em perspectiva, o fim do PPI, decretado esta semana, é um tímido começo. Ainda assim, algo se moveu, num governo que, apesar de suas ótimas intenções, parece ter tanta dificuldade de enfrentar o rentismo. Toda grande marcha começa com um primeiro passo, disse alguém. Resta esperar se virão os próximos — e lutar por eles.

*Antonio Martins é jornalista e editor do site Outras Palavras.

Publicado originalmente no site Outras palavras.


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