Por EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO*
Dar-se conta de que somos todos indígenas – exceto aqueles que não o são – é juntar-se à luta por uma retomada da Terra pela terra
“Indígena” designa uma pessoa ou uma comunidade originária de um lugar determinado, que ali vive ou a ele está ligada por um laço imanente; que se sente uma “propriedade” da terra antes que proprietária dela. No francês corrente, “indigène” é uma dessas palavras cujo sentido foi algo corrompido pelo colonialismo. Os povos ditos indígenas são antes de tudo aqueles que foram invadidos pelos indígenas da Europa em sua expansão imperial a partir do século XVI. (Assim, estes últimos, acreditando terem sido colonizados – civilizados – por eles mesmos há tempos atrás, acham que deixaram de ser indígenas).
Os “indígenas” são também esses povos que não aderiram, seja à força ou voluntariamente, à marcha unilinear do “progresso”, e que teriam ficado aprisionados no passado remoto da espécie. Por conseguinte, a extramodernidade desses povos só pode ser vista como uma pré-modernidade pelos “ex-indígenas” da Europa e seus descendentes culturais, cujas crenças revelam uma obsessão com a temporalidade, erigida em diferença ontológica da Humanidade no interior da natureza.
A dimensão espacial do mundo não conta muito para eles, a não ser como pura extensão da qual podem extrair “recursos” materiais para a acumulação do capital. Como sabemos, o tempo é a medida do valor – em vários sentidos, para além do unicamente econômico.
Vejamos, porém, o que diz Vine Deloria Jr, o pensador e ativista sioux: “Quando a ideologia doméstica [estadounidense] se divide entre os índios da América e os imigrantes da Europa ocidental, a diferença fundamental é de grande importância filosófica. Os índios da América consideram suas terras – seus lugares – como tendo a mais alta significação possível, e todas suas declarações são feitas tendo em mente este ponto de referência. Os imigrantes consideram o movimento de seus ancestrais através do continente como uma progressão constante de acontecimentos e de experiências fundamentalmente bons, situando assim a história – o tempo – sob a mais favorável das luzes. Na medida em que um grupo se preocupa com o problema filosófico do espaço e o outro com o problema filosófico do tempo, as declarações de um e outro grupo não têm muito sentido quando transferidos de um contexto a outro, sem levar em conta o que ocorre. Os povos da Europa ocidental jamais aprenderam a considerar a natureza do mundo desde um ponto de vista espacial”.[1]
Mas eis que face à degradação das condições de habitabilidade do planeta e à impotência calculada das potências em reagir à catástrofe geohistórica que recebeu o nome de Antropoceno, vários povos da Europa estão se redescobrindo indígenas, isto é, estão se situando no espaço e experimentando suas intensidades, embora nem sempre no mesmo sentido. Alguns vivem sua indigeneidade sob o modo da xenofobia, e pensam sua relação à terra a partir do modelo da soberania estatal, como se fosse possível escapar ao mundo fechando-se nas fronteiras de um “país”, este belo nome usurpado pelos Estados territoriais modernos.
Outros, como os que fazem parte dos Levantes da Terra, tomam consciência de que todo avanço da causa da Terra passa por uma luta pela terra – a terra enquanto solo natal, lugar de vida e espaço de co-engendramento envolvendo inúmeras outras formas de vida. Esta luta deve incluir, ou até mesmo começar pela defesa dos territórios dos povos oficialmente qualificados de indígenas.
Esses povos estão espalhados por 20% da superfície terrestre, presentes em praticamente todos os biomas habitados pela espécie. Seu número é estimado em 476 milhões de pessoas, ou seja, 6% do conjunto dos humanos (mais gente, portanto, que a população de toda a América do Norte). Hoje estão todos englobados na população dos Estados-nação modernos, enquanto “minorias étnicas”. Seus territórios estão submetidos a violentos processos de extração mineral e de açambarcamento pela agroindústria.
As florestas, savanas ou outros tipos de habitats que compõem seus territórios abrigam 80% da biodiversidade restante do planeta. Esse último número deveria, por si só, nos convencer do papel central desempenhado pelos povos indígenas do ponto de vista do futuro da espécie humana, se o simples – por assim dizer – respeito a seu direito à existência não bastasse para nos comover. Eles são uma das últimas barreiras à transformação do mundo inteiro numa imensa plantation biopolítica, uma monocultura planetária tanto no sentido antropológico quanto agroindustrial.
Dar-se conta de que somos todos indígenas – exceto aqueles que não o são – é juntar-se à luta por uma retomada da Terra pela terra, parcela por parcela, lugar por lugar, zona por zona. Uma retomada que arranque a causa da terra das mãos dos fascismos e dos nacionalismos, e que libere a dimensão do espaço de sua apropriação pelo imaginário político do Estado.
*Eduardo Viveiros de Castro é professor titular de antropologia no Museu Nacional da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Inconstâncias da alma selvagem (Ubu).
Publicado originalmente no site da Editora n-1.
Nota
[1] Vine Deloria Jr. God Is Red: A Native View of Religion. Golden, CO: North American Press, 1992.
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