Pinheiros, terra arrasada

Imagem: Lars Englund
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Por CELIA MARIA MARINHO DE AZEVEDO*

Não é de hoje que Pinheiros sofre com a expulsão de seus antigos moradores

Dentro de alguns dias mais um sobrado vai abaixo no bairro paulistano de Pinheiros. É um sobrado grande de dois andares, carcomido pelo tempo, mas que ainda assim abriga muitas vidas. São pequenos negócios que existem lá há décadas. Os inquilinos já foram avisados, receberam um prazo para se retirarem com todas as suas mercadorias e móveis de trabalho. Mais gente pequena expulsa pelos grandes – ou melhor – grandíssimos negócios.

Acompanho de longe o sofrimento dessas pessoas de pequena estatura social, tão pequena que podem ser simplesmente excluídos de seus diminutos espaços onde eles labutam por uma vida honrada. Sentimento pessoal de impotência diante da visão de um pequeno comerciante de uma lojinha onde se vende tudo o que “uma dona de casa” (como se anunciava antigamente…) procura para cuidar bem de seu lar. Vassouras, rodos, baldes, panos de limpeza, entre eles, o popular “pano de pó” (alguém ainda conhece essa expressão?), aventais, tapetinhos, latas de lixo, saboneteiras, pratos, copos, enfim miudezas indispensáveis no dia a dia.

Seu olhar é resignado, de uma tristeza profunda, nada a fazer a não ser mudar-se para um bairro distante, depois da ponte (do rio Pinheiros) e tentar fazer uma nova freguesia. Lá se vão 23 anos de trabalho, fixado no mesmo lugar, mas o que fazer? Ele me diz desolado: “conseguimos vencer a pandemia, mas…”, e eu completo: mas não os capitalistas! Ah, eu me lembro bem desse homem entrevistado pela TV Globo numa matéria sobre as dificuldades dos pequenos negócios na pandemia. Tanta luta…

Sofro também pela viúva recente da lojinha ao lado. Perdeu o marido de repente faz tão pouco tempo. Mas ela e o filho haviam decidido continuar com o pequeno negócio que o marido erguera com ela há décadas, e cujo sucesso era atestado não só pelos moradores do bairro como por aqueles que vinham de longe comprar seus LPs, CDs, DVDs, agulhas de vitrola cada vez mais raras no mercado. E o que dizer sobre o sofrimento do velho barbeiro parado na calçada à espera de um freguês? O que vai ser desses fregueses que ele atende também há muitos anos e que já não mais poderão contar com a sua barbearia? Seu olhar desolado é de alguém que perdeu o rumo da vida.

Não é de hoje que Pinheiros sofre com a expulsão de seus antigos moradores. Ou melhor, quem sofre é essa gente de vida simples que batalha pelo pão de cada dia. Mas quem ganha, sem dúvida, são os especuladores, as construtoras, os bancos, tudo uma gente “desalmada”, como diziam os antigos. Como moro aqui há décadas pude acompanhar várias ondas de ataque contra os seus moradores.

Um exemplo triste foi a demolição da Rua Martin Carrasco e seu entorno. Havia ali, na rua defronte à pracinha da igreja de Pinheiros, a popular Fotolândia, fundada há mais de 70 anos por um fotógrafo emigrado do Japão. Durante a ditadura de Getúlio Vargas, ele e sua família padeceram com a proibição de falar japonês. Então à noite, apagavam-se as luzes e um professor dava aulas clandestinas para as crianças não perderem o idioma de seus pais. Tanta história perdida na memória das famílias! De qualquer modo, a família conseguiu sobreviver com o seu trabalho na lojinha de fotografias. Mais tarde o pequeno negócio paterno foi herdado pelo filho também fotógrafo. A loja prosperava – difícil encontrar algum velho morador de Pinheiros – que não tenha tirado uma ¾ com ele. E assim se passaram uns trinta anos até que as construtoras, sempre associadas com o poder público, conseguiram a demolição de toda aquela área.

Expulsos os velhos moradores – muitos inquilinos entre eles – ergueu-se uma grande praça com bancos precários sem encosto, muito próprios para não dar conforto aos sem teto. Graças, porém, à luta de pessoas com um olhar no social, a Prefeitura viu-se obrigada a proporcionar bancos mais confortáveis e bonitos. Também graças a esses ativistas das causas sociais e ambientais, plantaram-se árvores e até mesmo se conseguiu erguer um pequeno bosque num recanto que escapou da cobiça das construtoras. A praça ficou bonita, porém, às custas de quanto sofrimento…

Lembro-me de um homem que guardava no bolso do paletó, com imenso carinho, uma pequena fotografia da antiga Martin Carrasco, onde ele morara na juventude. Não posso também me esquecer dos inúmeros camelôs que armavam suas barracas sobre as calçadas esburacadas da Rua Butantã. Para onde foram assim que os trabalhos do Metrô tiveram início?

O progresso acenado pela construção da linha amarela do Metrô foi o grande chamariz do poder público para se desculpar de tantos transtornos, o maior deles aquele imenso buraco que se abriu perto da margem do rio Pinheiros. A história do maquinário inapropriado nunca foi realmente esclarecida, mas o fato é que diversas pessoas foram simplesmente engolidas pela abertura súbita da cratera. Dizia-se, a vida vai melhorar para todos, o trânsito vai fluir melhor, muita gente vai preferir deixar os carros em casa. É o progresso para todos, ufanavam-se os políticos.

Desde então inúmeros edifícios foram construídos no entorno. Edifícios de escritórios envidraçados, condomínios de luxo, a desfilar uma arquitetura monótona, que prima pela feiúra com suas grossas colunas e portais suntuosos. A maioria desses prédios parece pretender arranhar o céu (nada a ver com a antiga beleza gótica…) e, pior ainda, encena uma ameaça perene às velhas casinhas de Pinheiros. Detalhe: quase toda essa gente dos edifícios gosta de sair de carro, jamais de se misturar com o povo nas estações de metrô. Se não fosse assim, então por que tantas garagens foram construídas nos subsolos?

Agora o novo Plano Diretor traz uma nova ameaça ao bem-estar dos moradores: a construção de edifícios de altura ilimitada, o que vai dar mais um grande impulso às demolições de imóveis e à expulsão de seus moradores. Pergunto-me ainda: será que esses capitalistas não leram sobre o afundamento de diversas cidades pelo mundo devido ao peso dos edifícios? Não, o mais provável é que eles embarquem alegremente num submersível, sem nenhum segundo pensamento para as futuras gerações, inclusive seus próprios descendentes.

Em tempos recentes, as construtoras desenvolvem uma nova estratégia de invasão com vistas à demolição do bairro. Os velhos moradores estão na mira delas em especial, melhor dizer em linguagem clara, seus cadáveres. Mal o defunto esfria e já os representantes engravatados desses grandes empreendimentos descem sobre os herdeiros tal como um bando de urubus em busca de carniça. Compram seus imóveis e os fecham em seguida, murando suas portas e janelas, devido ao risco de “invasão” pelos sem teto, cada vez mais numerosos a dormir ao relento sob marquises muito disputadas.

Em seguida, esses zelosos novos proprietários desaparecem. Nessas casas fechadas acumula-se lixo de todo tipo enquanto o mato cresce dentro de seus portões acorrentados e nas calçadas fronteiriças. Um morador reclamou para a Prefeitura. O máximo que se fez foi cortar as touceiras de mato das calçadas… Alegou-se que nada se podia fazer para dentro dos portões porque se trata de propriedade privada. Pronunciada essa palavra santíssima sagrada, resta agora aguardar que outros moradores morram ou então cedam aos apelos de compra de suas casas pelas construtoras. Com o abandono das casas vizinhas, as casas habitadas se desvalorizam rapidamente e assim torna-se cada vez mais difícil resistir àquela gente cheia de mesuras, com suas pastinhas de contratos em letrinhas jurídicas de difícil compreensão.

Aviso: este artigo, escrito com base numa memória longínqua que me vem desde os anos 1980, tem tão somente a triste intenção de ser um réquiem para Pinheiros e seus moradores. Há muitos e muitos anos, alguém declarou para grande escândalo de uma burguesia emergente que “a propriedade é um roubo”. Sem dúvida, um roubo. Mas, como felizmente a Terra é redonda, espero que ela se mova numa direção mais benéfica para a humanidade. Como, por exemplo, o recado inscrito numa parede externa de uma “ocupação”, em alegres letras coloridas: “Se morar é um privilégio, ocupar é um dever”. Com esse lembrete de um direito básico – o direito à vida – percebo afinal que um laivo de esperança pode bem brotar dos muros da cidade.

*Celia Maria Marinho de Azevedo é professora aposentada do Departamento de História da Unicamp. Autora, entre outros livros, de Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites (Annablume).

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