Trabalho por intermédio de plataformas

Harun Farocki, Trabalhadores deixando a fábrica em 11 décadas, 2006
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Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR*

O atual debate institucional sobre a regulação do trabalho por aplicativos é um processo político nada democrático

Em 19 de junho de 2023, a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), entidade que representa empresas como 99, Amazon, Lalamove, iFood e Uber, e também integrante do Grupo de Trabalho criado pelo Ministério do Trabalho para regulamentar o trabalho por aplicativos, apresentou sua proposta, com a explicitação de nove itens, os quais integrariam a sua “Carta de Princípios” para tratar do que chama de “trabalho por intermédio de plataformas”.

Entre os tópicos, encontram-se formulações tendentes a conferir direitos aos(às) trabalhadores(as) por aplicativos, tais como, “a garantia de remuneração mínima, assegurando que os trabalhadores recebam o equivalente ao salário-mínimo nacional proporcional ao tempo efetivamente trabalhado; a limitação de horas trabalhadas e a contratação de seguro contra acidentes”.

Segundo a Abomitec, seu objetivo seria complementar a proposta que fez anteriormente, em abril de 2022, de modo a conferir outras garantias aos(às) trabalhadores(as), além da inclusão na previdência social, já “oferecida”.

Para o diretor-executivo da entidade, o documento apresentado ao GT é uma demonstração de que as empresas buscam “melhorar as condições de trabalho mediado por plataformas digitais” e que possuem “o firme propósito de contribuir com a criação de uma legislação que atenda a uma nova realidade do mundo do trabalho, contemplando as demandas das empresas e dos trabalhadores”.

Os nove itens apresentados no documento (que pode ser visualizado aqui na íntegra) dizem respeito a: (1) Segurança jurídica. (2) Independência do trabalhador. (3) Seguridade social. (4) Garantia de remuneração mínima. (5) Limitação de horas de trabalho. (6) Segurança e saúde do trabalhador. (7) Transparência. (8) Neutralidade competitiva. (9) Diálogo entre plataformas e trabalhadores.

São as entrelinhas das propostas, no entanto, que revelam os reais objetivos das empresas representadas pela entidade. Senão vejamos.

 

O processo político nada democrático da regulação

Primeiro, é importante destacar que todo esse debate institucional sobre a regulação do trabalho por aplicativos, feito a portas fechadas e com a participação das empresas e seus poderes políticos e econômicos, é um grande disfarce para, na verdade, se promover uma legitimação da desregulação deste tipo de trabalho, pois, juridicamente falando, esses trabalhadores, pelas condições em que seu trabalho é explorado, são empregados e possuem todos os direitos que a Constituição Federal e a legislação do trabalho asseguram a todos os trabalhadores.

O que se pretende, pois, não é regular, no sentido de se fazerem respeitar os direitos trabalhistas, e sim, por uma negociação induzida e, portanto, viciada, forçar as lideranças desses trabalhadores (não representados pelas Centrais), a aceitarem uma regulação que aparenta avançar no assunto, mas que, no fundo, busca constituir um obstáculo a avanços concretos em termos de reconhecimento dos direitos que, vale repetir, os trabalhadores de aplicativos já possuem, mas que não são respeitados.

Uma regulação do trabalho por plataformas só seria necessária para, assegurado o mínimo geral, acolher as demandas específicas dos trabalhadores, de modo a lhes garantir direitos que entendam necessários para melhorar sua condição de trabalho e de vida, como, por exemplo: liberdade de escolha, pelo trabalhador, dos horários de trabalho, até o limite da jornada diária e semanal; períodos de descanso; locais específicos e salubres de descanso; fornecimento, pelo empregador, do meios de produção (veículos, motocicletas, bicicletas etc.); manutenção pelo empregador dos meios de produção etc.

O Direito do Trabalho, ademais, como se sabe, é resultado das conquistas históricas da classe trabalhadora, em suas lutas para limitar o poder do capital e auferir maiores salários e melhores condições de vida e de trabalho. Não, há, pois, sentido lógico, em visualizar uma legislação trabalhista que atenda os interesses do capital e, assim, legitime uma forma de superexploração do trabalho baseada em condições aviltantes de execução dos serviços e, por consequência, no sofrimento dos trabalhadores e trabalhadoras.

Os direitos trabalhistas e previdenciários, no contexto de um processo democrático, com efetiva participação popular e de todas as representações sociais, já foram alçados ao rol de direitos fundamentais na Constituição de 1988 e qualquer “debate” que se institucionalize para negar aplicabilidade a esses direitos, por mais plural e democrático que queira parecer, não passa de mais um atentado à democracia.

 

A ausência de autonomia

O documento apresentado pela ABOMITEC possui a grande utilidade de permitir aos trabalhadores e trabalhadoras visualizarem bem o quanto as empresas proprietárias de aplicativos têm a compreensão de que se integram a uma autêntica relação de emprego com aqueles e aquelas que realizam o seu negócio, embora tentem negar haver este vínculo, dizendo-se apenas intermediárias do serviço que os trabalhadores e as trabalhadoras prestam aos usuários. E o fazem, nitidamente, para se esquivarem das responsabilidades sociais, legalmente estabelecidas, que pendem sobre todo e qualquer empregador.

Fosse este, efetivamente, um trabalho autônomo, que se realizaria, portanto, sem qualquer ingerência das empresas e sem que os lucros destas fossem medidos na imediata proporção da quantidade e da qualidade dos serviços realizados pelos trabalhadores, ou seja, se a utilização do aplicativo ficasse sob o controle exclusivo de quem dele se vale para oferecer serviço a outra pessoa (sem qualquer intermediação, inclusive), todo esse debate seria inócuo, pois não haveria a necessidade de se formular uma regulação específica de natureza trabalhista, visto que há muito a legislação do trabalho já estabelece quem é empregado e, por consequência, quem não é, sendo que o não empregado, na qualidade de verdadeiro autônomo, não tem sua força de trabalho explorada, de forma estrutural, por outrem.

Daí porque, inclusive, apenas ao trabalhador empregado, não autônomo, a proteção jurídica trabalhista, fixando-se como ente obrigado aquele que se vale do trabalho alheio para a realização de seus objetivos, tem pertinência, embora, por certo, direitos relativos à seguridade social todas as pessoas, empregadas ou não, devem ter.

Vale perceber que se a autonomia dos trabalhadores existisse de fato, uma proposta partindo das empresas não teria o menor sentido, pois seria como se estivessem interferindo na liberdade alheia e no poder de autogestão daquele que é dono do seu próprio negócio.

A proposta que fazem denuncia o controle e explicita a atividade econômica de exploração do trabalho alheio.

 

Segurança jurídica para explorar o trabalho sem assumir responsabilidades

Ao clamar por segurança jurídica, as empresas reconhecem que não estão diante de uma hipótese de trabalho autônomo, já que, do contrário, a segurança jurídica já estaria dada, como se tem por configurado nas inúmeras e variadas relações de prestação de serviços eventuais que existem por aí.

O que querem, pois – e isto o documento deixa bem nítido – é uma “segurança jurídica” para continuarem explorando o trabalho alheio sem assumir as responsabilidades jurídicas decorrentes dessa exploração, apropriando-se dos valores correspondentes aos direitos dos trabalhadores e aos encargos sociais e tributários.

No discurso, repetem o eufemismo “trabalho intermediado por plataformas”, mas sabem que se trata, na verdade, de uma exploração do trabalho alheio, tanto que seu negócio, efetivamente, é o da venda dos serviços executados pelos trabalhadores para os usuários dos aplicativos.

 

Uma relação de interdependência

As empresas insistem na retórica de chamar os(as) trabalhadores(as) de “independentes”, mas o que se tem, concretamente, é uma efetiva relação de interdependência, já que os(as) trabalhadores(as) não realizariam os serviços sem os aplicativos e a gestão realizada pelas empresas, e estas, as empresas de plataformas, não existiriam sem os trabalhadores.

De forma concreta, as empresas proprietárias de aplicativo, para efetivarem o seu negócio, dependem completamente dos serviços que trabalhadoras e trabalhadores lhes prestam. Sem os serviços prestados, as empresas de plataformas, no modo como se integram ao mercado consumidor, simplesmente não existiriam.

E é muito importante que os(as) trabalhadores(as) tomem consciência disso, para que conheçam e exerçam o seu poder.

 

Reduzir a liberdade, em nome da liberdade

O documento em questão se põe em defesa da “liberdade” dos(as) trabalhadores(as), quando, bem sabem as empresas de aplicativos, como todos sabemos, aliás, que os(as) trabalhadores(as) não têm real e efetiva liberdade, pois são medidos, avaliados e remunerados conforme a produção, podendo até ser desligados em função dos resultados apresentados e condutas assumidas. Seria, pois, uma espécie de “liberdade vigiada” e “limitada”, mantidas as empresas como as definidoras desses parâmetros e até mesmo como a julgadora, sem direito de defesa, dos atos e fatos ocorridos no exercício da suposta “liberdade”.

Tentando induzir parte dos trabalhadores a aderirem às suas propostas, as empresas, espertamente, tentam fazer crer que a liberdade, embora falsa – conquanto até mesmo muitos trabalhadores entendem haver, quando comparam com sua situação em uma fábrica, diante da opressão ostensiva e direta do líder do setor –, é resultando do fato de não haver vínculo de emprego neste tipo de serviço, sugerindo que o reconhecimento do vínculo poderia eliminar essa pequena parcela de liberdade experimentada.

Ocorre que, como já dito mais acima, o vínculo de emprego é a fórmula jurídica criada para limitar o poder do capital, para, portanto, conferir mais espaços de liberdade aos trabalhadores, tanto que os preceitos básicos da regulação trabalhista são a liberdade de associação e o livre exercício da greve como instrumentos de luta para conquista de direitos e melhorias de trabalho e de vida da classe trabalhadora.

Rechaçar direitos trabalhistas em uma sociedade capitalista com o argumento de que estes direitos eliminam a liberdade dos trabalhadores, fazendo supor que a liberdade está na venda da força de trabalho regida unicamente pelas regras de mercado, é uma negação histórica, um grande engodo ou uma enorme escorregada ideológica (quando parte da própria classe trabalhadora ou de “pensadores” com ela identificados), que se promove sempre a serviço ou em proveito daqueles que se beneficiam da exploração do trabalho alheio.

E a melhor tática para se atingir este resultado, do ponto de vista dos interesses do capital, é transformar os trabalhadores nos próprios agentes da destruição de suas conquistas.

 

A questão dos horários flexíveis

Liberdade e flexibilidade de horários nunca foram obstáculos ao reconhecimento de direitos aos trabalhadores e serão plenamente bem-vindas em uma regulação específica deste tipo de relação de emprego, desde que sejam definidas atendendo o ponto de vista da deliberação dos trabalhadores e não do empregador, para que não sirvam de subterfúgios para ações estratégicas de supressão concreta de direitos.

 

Direito à Seguridade Social

Quanto à Seguridade Social, há de se perceber que a proposta da ABOMITEC reconhece a necessidade de proteção social para os trabalhadores por aplicativos e, até mesmo, o risco a que estes se submetem na atividade exercida.

Mas os direitos fundamentais que decorrem da condição de cidadania não dependem de reconhecimento ou mesmo de favor de ninguém.

As empresas, de todo modo, fazem este reconhecimento porque não querem se comprometer com nada que vá além do pagamento da contribuição social, para que o Estado, este sim, se ocupe das questões ligadas à saúde dos(as) trabalhadores(as).

Concretamente, jogam para toda a sociedade o custo social de um trabalho que se realiza com elevado grau de risco. Dito com outras palavras, apropriam-se exclusivamente do lucro decorrente da exploração do trabalho alheio e jogam para a sociedade o elevado custo social dessa atividade. Em suma, publicizam o custo e privatizam o lucro.

 

Desprezo com a vida dos(as) trabalhadores(as)

Há, efetivamente, um elevado grau de violência no modo como a “Carta de Princípios” encara as vidas dos(as) trabalhadores(as). O documento não expressa nenhuma preocupação com as condições trabalho. Não se manifesta sobre o que seria obrigação das empresas para a prevenção dos acidentes e a preservação da saúde dos trabalhadores. Não se refere a EPIs, manutenção dos veículos, uso de capacetes regulares, botas, alimentação adequada, períodos de descanso, férias, salário mínimo, limite de jornada de trabalho etc, até porque muitas destas são, precisamente, as preocupações constantes das normas de proteção do trabalho na relação de emprego. Mas como não querem, de modo algum, por questão sobretudo ideológica, se ver integradas a uma relação de emprego com os(as) trabalhadores(as), o jeito é desconsiderar a condição humana dessas pessoas para que sejam vistas, unicamente, como números em um sistema informatizado.

O efeito real dessa postura (ou estratégia de gestão e tática jurídica) é o de assumirem, sem qualquer constrangimento, que muitos trabalhadores poderão ficar doentes ou ser mutilados e até perder a vida em acidentes, já que a única preocupação manifestada é com os benefícios que a Previdência Social lhes concederá em tais contingências.

Confira-se que a manifestação pública que fazem é em favor de que a Seguridade Social – custeada por toda a sociedade – assegure benefícios a estes trabalhadores, mas apenas nos “casos de doença, acidentes e outras adversidades, além da aposentadoria por idade”, prevendo, inclusive, que se crie um “regime específico de recolhimento de contribuição previdenciária” no qual se possibilite “o recolhimento na fonte da contribuição dos trabalhadores, por meio de retenção pela plataforma tecnológica, respeitando a proporcionalidade do trabalho efetivamente realizado, sem prejudicar os diferentes usos da plataforma, seja ele regular ou esporádico”.

Bem verdade que o documento traz a expressão “segurança e saúde”, mas, na verdade, nada se diz a respeito de segurança e saúde, notadamente no aspecto essencial da prevenção. O que se faz, mais uma vez, é lidar com o sofrimento dos(as) trabalhadores(as) como algo natural e, com isto, “oferecer” a “contratação de seguro contra acidentes que complementem a proteção oferecida pelo sistema público de seguridade social brasileiro”.

De todo modo, paradoxalmente, esta “oferta” já diz muito sobre a compreensão das empresas acerca da relação de interdependência que detêm com aqueles e aquelas que lhes prestam serviços e da responsabilidade que possuem com o que se passa com estas pessoas na execução dos serviços, cujas condições são dadas pelo próprio modo de exploração do trabalho engendrado pelo negócio desenvolvido por essas empresas.

 

Rebaixamento do ganho dos(as) trabalhadores(as)

O documento preconiza que os trabalhadores por aplicativos devem ter um salário mínimo, como se o direito fundamental ao salário mínimo, previsto na Constituição Federal e nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, dependesse de um favor do empregador.

Mas, mesmo neste aspecto, a “Carta de Princípios” é enganosa, já que a preocupação é de criar uma fórmula que lhe forneça “segurança jurídica” para pagarem aos(às) trabalhadores(as) um valor inferior ao salário mínimo.

As empresas aparentemente “dão” com uma mão, mas, ao pleitearem que o salário mínimo seja pago em correspondência proporcional às horas trabalhadas, concretamente, retiram com a outra.

Ora, o salário mínimo, como mínimo necessário à sobrevivência, deve ser garantido independe do número de horas trabalhadas, até para que a tática de punição dos trabalhadores com o não oferecimento de chamadas seja interrompida ou, ao menos, minimizada. Além disso, a defesa do salário mínimo neste contexto apaga as conquistas históricas da categoria, na consolidação de um piso salarial superior ao mínimo legal.

 

Jornada de trabalho sem limites

O documento ainda traz proposta de “limitação de horas de trabalho”, mas não chega a admitir que a limitação da jornada prevista na Constituição Federal – de 8 horas diárias e 44 horas semanais – também assegurada nas Declarações de Direitos Humanos, seja concretamente respeitada neste tipo de serviço.

Propõe, meramente, “discutir o tempo máximo de permanência na plataforma”, mas “considerando a proteção do trabalhador e a sua ampla liberdade de utilizar múltiplos aplicativos simultaneamente diante da existência de inúmeras plataformas com modelos de negócios distintos e concorrentes”.

Ou seja, não propõe nada e ao mesmo tempo sugere que a limitação pode ser, efetivamente, “ilimitada”.

Trata-se, pois, de mais uma manifestação bastante reveladora do quanto se pretende alcançar uma “segurança jurídica” para explorar o trabalho alheio sem qualquer limite.

 

A ameaça

Por fim, embora com aparente recurso de razoabilidade e ponderação, termina com uma ameaça, consignando que o Grupo de Trabalho, no qual se discute a regulação no âmbito do Ministério do Trabalho, “deve avançar a partir da avaliação dos impactos e riscos resultantes de cada proposta apresentada, pautada por evidências e dados, garantindo a formulação de uma política pública que melhore a vida do maior número de trabalhadores e cidadãos brasileiros”. Cabe, por certo, substituir “cidadãos brasileiros” por interesses econômicos das empresas, dado que, se contrariados forem, vão embora do país, deixando os “cidadãos brasileiros” sem esta “comodidade”.

 

Conclusão

É extremamente necessário que no curso desses debates se diga a estas empresas que a noção básica de cidadania reside na consideração de que há uma igualdade plena entre cidadãos e cidadãs no que se refere à titularidade de direitos fundamentais; que nenhum direito fundamental pode ser desconsiderado sob o argumento de, com tal medida, conferir viabilidade a um empreendimento econômico; que nenhuma “comodidade” é legítima quando baseada no desrespeito a direitos fundamentais, rol ao qual se integram, constitucionalmente, os direitos sociais, englobando os trabalhistas e os previdenciários; e que nenhuma racionalidade econômica, expressa em tom de ameaça, tem a potência de gerar perda da independência e do vigor das instituições democráticas, no que tange ao compromisso frente à efetivação da Constituição Federal, Declarações Universais e Tratados internacionais, sobretudo, quando relacionados ao rol dos Direitos Humanos e ao regime democrático.

A soberania e a democracia brasileiras não estão no cardápio!

*Jorge Luiz Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (Estúdio editores).


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