Pintando o 7 de Setembro

Clara Figueiredo, série_ Brasília_ fungos e simulacros, congresso nacional, 2018.
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Por EUGÊNIO BUCCI*

Tomara que o feriado nacional deste ano venha em moldes diferentes daqueles que vimos no período de negacionismo, conspiração, muamba e milícia

O maior dos feriados nacionais está logo aí. Mais duas semanas e teremos de atravessar aquela manhã enclausurada em desfiles, com os recos inexpressivos marchando e tocando corneta ao mesmo tempo e, para completar, as autoridades em cima do palanque apertando os olhos para suportar a luminosidade asfáltica. Como tem sido há dois séculos, as paradas militares, as criancinhas embandeiradas e os discursos que ninguém consegue escutar marcarão a data cívica. Nada de novo sob o sol de quase primavera, portanto.

Nada de novo, a não ser pelo significado das cores. Isso terá de ser diferente. É claro que o visual será o mesmo, pautado no dueto entre o velho verde e o indefectível amarelo. O sentido, porém, terá de mudar. O auriverde não pode mais seguir sendo o símbolo de acampamentos ilegais na porta de quartéis silenciosos. Camisetas canarinho não podem mais ser uma senha de golpismo.

Eis aí a questão que atazana o governo federal. É uma questão semiótica. É uma questão grave. Na terça-feira, o jornal O Estado de S. Paulo noticiou que a Presidência da República está investindo R$ 3 milhões na preparação do “desfile cívico-militar” com o objetivo de promover o “resgate” da bicromia pátria, hoje prisioneira das trevas. O gasto talvez seja alto, mas a causa é mais do que pertinente.

Trata-se de uma pauta do mais alto interesse público, ainda que o problema a ser resolvido tenha, aqui e ali, o aspecto de uma piada de mau gosto. Quando a gente pensa nas dondocas e tchutchucas fantasiadas de lábaro estrelado brincando de marcha-soldado nos estacionamentos do Exército, é inevitável pensar numa comédia bufa. O delírio antissistêmico do governo que passou, dado o seu grau exacerbado de ignorância e despreparo, nunca se dissociou de um roteiro meio pastelão. Mas não deixemos por menos. Aquilo tudo nos ameaçou de verdade. Com seus lances risíveis, os golpistas não estavam aí de brincadeira. Por isso, as tentativas de quartelada, mesmo que ridículas, terão de ser levadas a sério. A democracia deve seguir firme na investigação e na punição dos responsáveis pelos atentados contra o Estado de Direito.

Pelos mesmos motivos, não podemos descuidar do significado dos símbolos da Pátria. Que alternativa nos resta? Deixar as cores da bandeira sequestradas pela infantilização reacionária dos fascistinhas de WhatsApp e pela estupidez que depredou palácios em Brasília no dia 8 de janeiro? Não. Ou viramos a página da desordem sígnica ou os cidadãos minimamente informados vão continuar com uma ponta de inibição na hora de desfraldar o estandarte. É preciso pintar o 7 de Setembro em novas bases.

Se trabalharmos bem, o uniforme da seleção brasileira de futebol voltará a encarnar um sentimento positivo. Aliás, no passado era assim. Não nos esqueçamos de que a cor da campanha das Diretas Já, em 1984, foi o amarelo. No samba Pelas tabelas, Chico Buarque fez o seu registro daquelas manifestações. “Quando vi todo mundo na rua de blusa amarela”, canta o compositor, que não se refere às hordas golpistas de classe média alta, mas ao povo que se levantou contra o arbítrio.

O sentido das cores já foi muito diferente. Nos anos 1990, havia uma bandeira nacional enorme cobrindo uma parede inteira da sala da diretora de redação da revista Capricho, que era a cartilha afetiva das adolescentes brasileiras. A diretora que trabalhava naquela sala era Mônica Figueiredo. Personalidade exuberante, de uma criatividade rebelde e excêntrica, Mônica não tinha nada que lembrasse uma caserna. Não elogiava golpes de Estado e não pactuava com a censura. Mônica jamais insinuou que um notório torturador devesse merecer lugar de honra na história do nosso país. Ela era o oposto dessas moléstias do espírito: uma editora inadministrável, que não batia continências a ninguém.

Naquele tempo, há uns 30 anos, a revista Placar, que funcionava no mesmo prédio da Editora Abril, numa travessa estreita da Avenida Berrini, teve o seu logotipo redesenhado pelo designer Roger Black. A inspiração veio diretamente do “pendão da esperança”, que, para aquela geração, era sinal de alegria, leveza e liberdade, como o amarelo das Diretas Já. Todo mundo ali gostava da bandeira. A gente dava bandeira.

Essas lembranças vão aqui para dizer que não há nada de errado em sonhar com a tal ressignificação das cores nacionais. Não há nada de impossível nessa pretensão. A bandeira não precisa ser um carimbo na fachada de um prédio a indicar que ali mora um sujeito que tem armas dentro de casa e é machista, racista, xenófobo e mesquinho. A bandeira pode muito bem representar outra mensagem, oposta, melhor e superior. Em uma palavra, civilizada.

Como nação que se respeita, o Brasil tem de tomar para si esse objetivo. Vai nos fazer bem. Tomara que o 7 de setembro deste ano venha em moldes diferentes daqueles que vimos nesse período de negacionismo, conspiração, muamba e milícia. Seria uma justa homenagem a Mônica Figueiredo, que morreu no domingo, em Lisboa, vítima de câncer de pulmão.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica).


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