O amor do Grupo Wagner por Richard Wagner

Charlie Millar, Imortalidade II
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Por ALEX ROSS*

O nazismo influenciou a estética distorcida do grupo mercenário, mas o mesmo aconteceu com o espetáculo wagneriano de Hollywood

“Wagner cancela ameaça de marcha na capital da Rússia” era a desorientadora matéria principal da edição de 25 de junho de 2023 do jornal Times. O eternamente problemático compositor Richard Wagner, o padrinho de todos os artistas cancelados, estava mais uma vez no topo das notícias, setenta e oito anos depois de o Daily Mail ter noticiado os memoriais de rádio nazistas para Hitler sob a manchete “Concerto wagneriano da morte”.

Tendo passado boa parte de minha vida vasculhando as consequências caóticas da vida e da obra de Richard Wagner, supunha que a notoriedade do velho mago já havia passado do auge, mas sua capacidade de consternar o mundo novamente nunca deve ser desconsiderada. Uma organização mercenária russa chamada Grupo Wagner, cujo nome foi fornecido por um ex-agente da G.R.U. com tendências nazistas, estava protestando contra a conduta errática da guerra da Rússia contra a Ucrânia – um país que, de acordo com a propaganda russa, foi invadido por neonazistas, embora Volodymyr Zelensky, o presidente ucraniano, seja judeu. Para citar Hans Sachs em “Die Meistersinger”: “Loucura! Loucura! Loucura em toda parte!”

Em 23 de agosto, Yevgeny Prigozhin, que liderava o Grupo Wagner, e Dmitry Utkin, que cunhou o nome, morreram quando seu avião caiu do céu. Enquanto as Valquírias carregam seus cadáveres para o Valhalla de excedentes do exército que os aguarda, uma pergunta permanece, uma que talvez nunca seja respondida por completo: que papel, exatamente, Richard Wagner desempenhou na imaginação mercenária? Antes da fundação do grupo, por volta de 2014, Utkin usava “Wagner” como seu codinome militar.

A maioria dos observadores supõe que ele adotou o nome por causa de sua predileção por imagens nazistas. Ele tinha o hábito de assinar cartas com dois traços angulares em S, significando o S.S. Como centenas de artigos sobre o grupo nos lembraram, Richard Wagner era o compositor favorito de Hitler; portanto, ele deve ter servido como um código para o hitlerismo. Qualquer pessoa que coletasse evidências da odiosidade inerente de Wagner poderia ficar satisfeita com o fato de o caso ter sido provado além de qualquer dúvida razoável.

No entanto, Utkin não parecia ser um wagneriano do tipo “peregrinação a Bayreuth”. Luke Harding, repórter do The Guardian que escreveu extensivamente sobre o Grupo Wagner, afirma que a principal inspiração do mercenário foi a sequência “Ride of the Valkyries” (Cavalgada das Valquírias) no filme Apocalypse now – a cena em que um esquadrão de helicópteros americanos destrói uma pacata vila vietnamita enquanto ouve Richard Wagner nos alto-falantes. A sugestão de que o interesse de Utkin pelo compositor foi mediado pelo espetáculo hollywoodiano de grande orçamento muda a aparência da questão. Expõe o grau em que Richard Wagner se tornou um significante flutuante na cultura pop – um recipiente pelo qual passam as fúrias modernas.

Richard Wagner tem raízes profundas na Rússia. O culto à sua música começou a se formar no final do século XIX e atingiu seu apogeu nos anos após 1900, quando uma impressionante variedade de personalidades, desde o czar Nicolau II até o radical diretor de teatro Vsevolod Meyerhold, abraçou suas óperas. Os simbolistas russos o saudaram como o profeta dos mundos oníricos artisticamente integrados e, quando pessoas como Alexander Blok e Vyacheslav Ivanov se voltaram para o radicalismo bolchevique, levaram Wagner com eles. Alexander Blok escreveu: “Quando a revolução começa a soar no ar, a arte de Richard Wagner responde de volta”.

Nos primeiros anos da União Soviética, Richard Wagner foi apresentado como um artista proletário exemplar. Anatoly Lunacharsky, Comissário do Povo para a Educação, patrocinou uma tradução do ensaio Arte e Revolução, de Wagner, de 1849, comparando-o ao “Manifesto Comunista”. As óperas receberam encenações surpreendentes nos estilos construtivista e futurista. O próprio Lênin era um fã casual de Richard Wagner; após sua morte, em 1924, a Música Fúnebre de Siegfried foi tocada em seu memorial. O gosto bolchevique por Richard Wagner desapareceu com a ascensão de Stalin, embora, no período do Pacto Hitler-Stalin, Sergei Eisenstein tenha conseguido montar uma produção de Die Walküre. A invasão alemã de 1941 pôs fim ao wagnerismo russo por gerações.

As coisas mudaram na década de 1990, quando Valery Gergiev, diretor artístico do Teatro Mariinsky, em São Petersburgo, começou a reger as óperas regularmente. Em 1997, apresentou a primeira encenação russa de Parsifal em quase oitenta anos; em 2000, se voltou para o ciclo do Anel. Naquela época, Valery Gergiev demonstrou pouco interesse em política. Quando o entrevistei em 1998, ele me disse: “Nunca se sabe que tipo de comunista, socialista, presidente ou ditador militar surgirá. É melhor você fazer o que pode fazer amanhã do que pensar em sete anos à frente”.

O ditador de fato apareceu, e Valery Gergiev se deu bem com ele. Sob o patrocínio de Vladimir Putin, o maestro se tornou uma das figuras culturais mais poderosas da Rússia. Talvez a transformação de Valery Gergiev em um oligarca de Vladimir Putin tenha incentivado a absorção de Richard Wagner pelo nacionalismo russo militante. O pseudofilósofo de tendência fascista Aleksandr Dugin, cuja defesa de uma esfera de influência eurasiática influenciou tanto Vladimir Putin quanto o Grupo Wagner, também pode ter desempenhado um papel importante.

Certa vez, Aleksandr Dugin tentou transformar uma frase de Parsifal – a enigmática declaração de Gurnemanz “Aqui o tempo se torna espaço” – em uma “proclamação do triunfo da geopolítica”. No entanto, o conhecimento de Aleksandr Dugin sobre a ópera parece pequeno; ele afirma que a frase vem no final de Parsifal, o que não é o caso. É duvidoso que o wagnerismo mercenário possa ser entendido sem referência a Hollywood.

Hollywood tem um longo histórico de fetichização de Richard Wagner, que remonta à montagem da Ku Klux Klan em O nascimento de uma nação, em 1915. A página do compositor no IMDb contém mais de mil e quinhentas entradas. (Muitas delas, com certeza, são para o Bridal Chorus de “Lohengrin”, que geralmente não tem ramificações ideológicas). Há alguns anos, venho compilando uma lista anotada das aparições de Richard Wagner em filmes, que atualmente vai até 1950. Sua carreira como receptáculo da malevolência nazista começa no final dos anos trinta.

Um dos primeiros e mais estranhos exemplos é o filme de Busby Berkeley, de 1939, do musical de Rodgers e Hart, Babes in Arms, no qual garotos de vaudeville insatisfeitos encenam uma cerimônia vagamente nazista de acendimento de tochas e fogueiras, em determinado momento inventando novas palavras para The Ride of the Valkyries: “Por que estamos torcendo? Para que estamos aqui?” (A música Kill da wabbit, de Elmer Fudd, é mais adequada). A figura do vilão nazista amante de Richard Wagner, um dispositivo confiável até hoje, foi inaugurada por Conrad Veidt no filme Escape, de 1940.

Uma pesquisa sobre o cinema alemão do mesmo período mostra que os nazistas usaram Richard Wagner com mais parcimônia do que se poderia esperar. Não houve nenhum filme biográfico heroico, nem a “Cavalgada” figurou em muitas cenas de batalha. Em geral, apesar da paixão de Hitler por Richard Wagner durante toda a vida, o valor de propaganda do compositor se mostrou limitado.

Sua obra era muito longa, muito complicada, muito ambígua em suas implicações. Die Meistersinger era apresentada todos os anos nos comícios do Partido Nazista em Nuremberg, mas as fileiras do Partido achavam o ritual oneroso; uma vez, Hitler, irritado, mandou trazer hóspedes de um hotel próximo para ocupar os assentos vazios. Alguns membros da hierarquia nazista tinham dúvidas sobre a adequação de Richard Wagner à nova Alemanha: uma aura de decadência o cercava e circulavam rumores de que ele tinha ascendência judaica. Winifred Wagner, nora do compositor, pediu a Heinrich Himmler que impedisse a disseminação das histórias judaicas.

A utilização mais flagrante de Richard Wagner no filme nazista ocorre no filme de guerra Stukas, de 1941, no qual um piloto de caça sofre uma perda de moral após sofrer um ferimento. Como parte de seu processo de recuperação, ele é enviado ao Festival de Bayreuth – Hitler realmente acreditava que os soldados feridos poderiam se beneficiar da exposição a Richard Wagner – e é milagrosamente curado. Quando o piloto ouve os acordes de “A viagem de Siegfried ao Reno”, seus olhos se iluminam e sua mente se enche de lembranças de um alegre serviço à pátria.

No entanto, quando ele volta a voar, ele e seus companheiros não cantam Richard Wagner, mas um hino de combate vigoroso: “Nós somos os Hussardos Negros do ar, / Os Stukas, os Stukas, os Stukas”. Joseph Goebbels, que controlava o cinema e o rádio nazistas, tinha um senso apurado de como a cultura popular poderia energizar as massas. Durante a guerra, a música clássica era ouvida com menos frequência no rádio. Um entrevistado de uma pesquisa da Wehrmacht escreveu: “O soldado que está lutando na frente de batalha quer música leve, dança e jazz”.

O entusiasmo de Hollywood por Richard Wagner em tempos de guerra, portanto, não se originou apenas do desejo de reproduzir a paisagem sonora da Alemanha nazista. Ele tinha raízes mais profundas e distorcidas. Há muito tempo os filmes vinham empregando Richard Wagner como uma abreviação: a “Cavalgada” já era uma escolha popular para debandadas de cavalos e batalhas. A proliferação de vilões nazistas permitiu a continuação dessa prática, de uma forma um tanto hipócrita: Wagner podia dar sua emocionante carga orquestral às cenas de ação mesmo quando estava sendo demonizado como uma ameaça teutônica.

Logo ficou claro que a tela de cinema tinha uma fraqueza geral pela iconografia nazista, como Leni Riefenstahl havia demonstrado pela primeira vez em O Triunfo da Vontade. As colunas ordenadas, os estandartes e as suásticas, os uniformes bem cortados, os rostos bem definidos e os corpos de super-heróis: Hollywood continua reciclando esse material porque ele prende a atenção. No final do filme original Guerra nas Estrelas, a estética de Lemi Riefenstahl é triunfantemente apropriada pela Rebelião no estilo americano.

Esse é o subtexto da peça “Cavalgada das Valquírias” em Apocalypse Now, na qual a música do compositor favorito de Hitler se torna o tema da agressão militar americana. Francis Ford Coppola, que dirigiu o filme, e Walter Murch, que editou a trilha sonora, sem dúvida pretendiam que ela tivesse um componente crítico, alinhando o sanguinário tenente-coronel Kilgore com os generais wagnerianos dos filmes de guerra do passado. Ainda assim, Apocalypse teve o efeito, inadvertidamente, de criar uma nova forma de fetichismo de Wagner. Os soldados americanos tocaram “Ride” nos alto-falantes durante a invasão de Granada e durante as duas guerras do Iraque. O apego de Dmitry Utkin a Richard Wagner foi evidentemente uma variação barroca dessa moda militar.

O bombardeio hipermasculino de Hollywood é o modelo dominante para os esforços de propaganda do próprio Grupo Wagner, que são conhecidos coletivamente como Universo Estendido Wagner ou Wagnerverso. Pelo que vi, o compositor do Anel e de Tristão e Isolda desempenha pouco ou nenhum papel nesse conjunto de obras: é mais provável que Enter Sandman, do Metallica, seja usada como acompanhamento de um vídeo de recrutamento.

Em 2019, Prigozhin começou a lançar filmes no estilo de Hollywood que celebram a ação de mercenários. Esses projetos misturam o estilo extravagante dos filmes de ação da velha guarda – Rambo, Red Dawn e similares – com a pornografia dos jogos de tiro em primeira pessoa. As trilhas sonoras seguem a tendência atual de Hollywood de drones sombrios, batidas estrondosas e minimalismo em modo menor. Uma cena de clímax em um filme do Grupo Wagner chamado Tourist ecoa o Adagio para Cordas de Samuel Barber, ouvido anteriormente em Platoon.

Do ponto de vista da história cultural, portanto, o Grupo Wagner é mais um problema americano do que alemão. O culto à violência, o apelo à raiva e à sede de sangue dos jovens do sexo masculino, a celebração de um desejo robótico de lutar até o fim – Hollywood vem injetando tudo isso na identidade global há quase um século. Richard Wagner, um artista que se preocupava principalmente com os emaranhados de poder terreno e amor espiritual, não tem lugar nesse mundo, exceto como fonte de memes musicais recortados.

Utkin e Prigozhin conseguiram manchar o nome de Wagner para uma nova geração. Aqueles que veem o compositor como algo além de uma figura irremediavelmente má podem se perguntar se algum dia ele escapará do purgatório histórico em que vive. Muito provavelmente, ele não escapará, nem deveria. O antissemitismo de Richard Wagner era letalmente intenso e se infiltrava em suas óperas. Seu chauvinismo alimentava um senso de supremacia alemã. O Anel pode ser uma crítica ao poder, mas sua própria flexão de músculos musicais enfraquece seu evangelho de amor. Thomas Mann articulou com maestria esse dilema quando observou que a obra de Wagner se presta ao seu próprio mau uso. Stukas e Apocalypse Now são distorções; no entanto, a música permite essas distorções com sua vontade de dominar o espectador.

Ao mesmo tempo, os anais do wagnerismo oferecem uma série de mensagens contrárias. Uma longa procissão de forasteiros e sonhadores usou o compositor para aliviar seu senso de isolamento ou para transmitir seus ideais. Houve e há wagnerianos socialistas, wagnerianos místicos, wagnerianas feministas, wagnerianos negros, wagnerianos judeus, wagnerianos gays.

A última edição da revista acadêmica alemã Wagnerspectrum destaca o último nome, chegando ao ponto de colocar uma bandeira do arco-íris na capa. Na virada do século passado, Bayreuth serviu de refúgio para homossexuais, principalmente porque o filho de Wagner, Siegfried, que dirigiu o festival por várias décadas, era conhecido por ser gay. Kevin Clarke, em um ensaio do Wagnerspectrum sobre “redes LGBT ocultas” em Bayreuth, observa que o festival nunca reconheceu oficialmente sua substancial herança gay; as bandeiras de arco-íris não são hasteadas lá, como em muitas outras instituições.

No caso permanentemente contestado de Richard Wagner, nem apologias abrangentes nem condenações gerais serão suficientes. A dificuldade é que o discurso contemporâneo tem pouca paciência com contradições enlouquecedoras do tipo que Richard Wagner personifica. Ele era ruim ou bom? Ele tornou o mundo melhor ou pior? Para isso, a melhor resposta é a resposta de Tristão ao rei Marcos: “Ó rei, isso / não posso lhe dizer; / o que você perguntaria / você nunca poderá saber”.

*Alex Ross é crítico musical. Autor, entre outros livros, de O resto é ruído (Companhia das Letras).
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Tradução: Henry Burnett.

Publicado originalmente na revista The New Yorker, em 02 de setembro 2023.


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