Por CAMILA BOLINI, MARIA LUÍSA NÓBREGA & AFRÂNIO CATANI*
Podemos falar em um projeto de universidades latino-americanas que teve seu berço na Argentina e que hoje orienta o significado jurídico da autonomia universitária
1.
O ensino superior na Argentina data de mais de quatro séculos, com a criação de sua primeira instituição, a Universidade de Córdoba, em 1613. O surgimento e desenvolvimento do ensino universitário nacional possui uma história rica e pioneira, e que o diferencia de outros países na América Latina.
Há mais de um século, os estudantes organizados ocuparam a Universidade de Córdoba, exigindo que a instituição voltasse a operar, pois essa encontrava-se fechada e sem reitor. Esse movimento social e político deu origem ao Manifesto de Córdoba, que no decorrer de suas manifestações reivindicava a autonomia universitária perante o Estado e a Igreja, a gestão acadêmica interna, com processos democráticos para a ocupação das funções da reitoria e da docência (cátedras), bem como a defesa da modernização dos currículos de acordo com o estado da arte do conhecimento literário, filosófico, científico e artístico no mundo.
As respostas iniciais às demandas estudantis por parte do Estado não foram as mais promissoras, e muitos desses estudantes acabaram sendo acusados de prevaricação e sacrilégio, visto que a educação superior da época possuía características fortemente clericais. Desse modo, suas propostas foram rejeitadas pelas forças conservadoras.
Dentre as pautas que circulavam no Manifesto havia um ideal de reforma que atuasse na formulação de uma gestão universitária participativa e que buscasse uma educação vinculada à ciência, pois até aquele momento a educação de base clerical e jesuíta ditava as normas dos conhecimentos atrelados às formações profissionais dos estudantes, sendo esta muitas vezes dogmática. Um exemplo desse modelo é que aos estudantes era vedado o estudo da teoria evolucionista de Darwin, na medida que esta representava um sacrilégio em relação aos ensinamentos do criacionismo presente na educação religiosa.
As pautas da reforma mobilizaram os jovens a pensar o modelo de gestão, de ciência e também de direitos estudantis através das demandas por políticas comprometidas com a realidade social, com a extensão universitária para a comunidade, por assistência social aos estudantes de baixa renda, imigrantes e povos originários e pela defesa de liberdade de expressão dos estudantes e da cátedra enquanto instituição.
Somente em 1918, após a realização de novas manifestações e da troca de reitor, algumas pautas foram concretizadas por meio de uma reforma que ficou conhecida internacionalmente como a Reforma Universitária de Córdoba. As principais mudanças consistiram na reorganização da gestão universitária, a qual passou a ser compartilhada entre professores e estudantes em uma tentativa de governo participativo e democrático.
O Manifesto e a Reforma Universitária de Córdoba foram movimentos pioneiros tanto na América Latina quanto em contexto internacional, pensando que somente na década de sessenta do século passado iriam explodir os movimentos estudantis universitários na França, no conhecido maio de 68. Já no contexto brasileiro, somente em 1920 teríamos a criação da primeira universidade nacional, a Universidade do Rio de Janeiro.
Todavia, os ideais pautados pelo manifesto e pelo movimento estudantil universitário de Córdoba atravessaram os limites da própria Argentina e deram início a um movimento social e político latino-americano de modelo universitário conectado às demandas da realidade regional e do povo.
Entre as contribuições extrafronteiras estão as concepções políticas de gestão participativa, situação na qual as instituições públicas de educação superior respondem a uma forma tripartite de decisões tomadas por professores, alunos e funcionários, além da formação de confederações internacionais de estudantes, que passam a se interessar, debater e reivindicar politicamente por reformas educacionais em seus países. Destaque-se, também, a contribuição de professores e de funcionários, bem como de movimentos estudantis orientados pelas condições de trabalho, de estudo e de assistência social.
Podemos falar em um projeto de universidades latino-americanas que teve seu berço na Argentina e que hoje orienta o significado jurídico da autonomia universitária através da relação entre ensino, pesquisa e extensão na transmissão de conhecimentos (ABOITES, 2006).
Da Reforma aos dias atuais, o ensino superior no país experimentou um caminho de lutas, resistências e conquistas de acordo com o contexto histórico e político. A Argentina viveu seis golpes de estado ao longo do século XX: em 1930, 1943, 1955, 1962, 1966 e 1976. Os quatro primeiros estabeleceram ditaduras provisórias enquanto os dois últimos criaram ditaduras de tipo permanente, segundo o modelo de estado burocrático-autoritário, sendo que tais acontecimentos, evidentemente, afetaram o desenvolvimento das políticas de educação superior.
2.
No começo do século XX, com a acelerada urbanização e os movimentos já comentados, envolvendo a Reforma Universitária, a Argentina vivencia um período marcado por fortes tensões políticas mas, ao mesmo tempo, um primeiro experimento democrático e de ascensão de novos setores sociais. Nesse momento histórico, a universidade inicia sua jornada como instituição de expressão política independente do Estado, na qual os intelectuais podiam expressar-se politicamente, sem estar necessariamente articulados aos partidos e agremiações políticas (Suasnábar, 2009).
Na década de 1940, durante o governo peronista, a universidade consolida o diálogo com a comunidade, sendo uma instituição que pensa sobre a realidade de sua população na tentativa de responder às demandas relacionadas à modernização, ao desenvolvimento social e econômico interno e ao planejamento educacional de toda a população.
Nesse sentido, a universidade passa a ser reconhecida como formadora de recursos humanos para a sociedade e produtora de conhecimento científico, aparecendo com mais força o interesse pela educação atrelada à pesquisa e à formação profissional de professores universitários. (SUASNÁBAR, 2009).
As décadas de 1960 e 1970 foram marcadas por tensões e radicalizações políticas que acompanharam o movimento internacional, com fortes repercussões na política interna. O golpe militar de 1966 constituiu-se em uma ruptura do projeto desenhado até o segundo terço do século, sendo que nesse período o espaço universitário, que antes era pensado para o desenvolvimento do país, passou a ser um domínio de resistência às posturas antidemocráticas, engajando-se na luta pela liberdade democrática do país (SUASNÁBAR, 2009).
Durante esse período emerge a concepção da produção de conhecimento atrelada ao engajamento político e a figura dos intelectuais como profissionais inimigos da ordem autocrática vigente. A universidade, então, passa a ser um ator social importante nas disputas sociais, sendo esta uma tendência que ocorre não somente na Argentina, mas também em outros países que vivenciaram ditaduras civis-militares. Também nessa época, vários intelectuais foram exilados de seus países pelas ditaduras latinoamericanas, sendo tal movimento responsável pela abertura dos debates teóricos sobre a ciência engajada politicamente, com demandas democráticas e contando com a colaboração internacional (MOLLIS, 2012).
O retorno à democracia na Argentina marca o início de um período de reconstrução dos espaços universitários, assinalando uma tentativa política de retorno aos ideais da Reforma Universitária de 1918.
No começo da década de 1990, com as reformas neoliberais que assolaram a Argentina e o mundo, modificou-se uma vez mais a relação entre Estado e sociedade, alterando também a organização das universidades. (SUASNÁBAR, 2009). Observou-se a perda da centralidade do Estado nas tomadas de decisão nas políticas públicas e na articulação das relações com o mercado, havendo o esvaziamento do debate e da construção de conhecimento científico-político, estando essa mais atrelada à formação de profissionais para o mercado de trabalho que possam corresponder à própria lógica neoliberal vigente. Assim, a universidade é introduzida nos paradigmas de competitividade, avaliação e financiamento voltados ao mercado e aos valores neoliberais, realidade que encontra ressonâncias até os dias atuais.
Na atualidade universitária argentina há a convivência de novos e velhos ideais: se por um lado a tentativa de mercantilização do conhecimento e da formação de profissionais gera o esvaziamento da figura dos intelectuais, por outro se luta pelo espaço universitário autônomo, livre e acadêmico, voltado à investigação, ao conhecimento e à transmissão do estado da arte científico de seu tempo histórico. Enquanto observa-se a defesa de uma ciência pragmática orientada à manutenção do status quo, também se pratica uma ciência orientada eticamente ao desenvolvimento justo, democrático e igualitário da sociedade – ver, a respeito, AZEVEDO: CATANI, 2011; CATANI: HEY, 2007.
Isso se dá a partir da legislação educacional do ensino superior no país, representada por três principais leis: a Ley de Educación Nacional (Ley nº 26.206), a Ley de Educación Superior (Ley nº 24.521) e a Ley de Educación Técnico Profesional (Ley nº 26.058).
Na primeira, se estabelece e se conceitua a educação enquanto direito garantido pelo Estado, baseada na igualdade, gratuidade e equidade do acesso. Em consonância a esta, a Ley de Educación Superior prevê o acesso universal ao ensino superior argentino, desde que o estudante cumpra requisitos mínimos, como a conclusão do ensino secundário e ter menos de 25 anos – após esta idade, o aluno deverá comprovar conhecimentos ou experiências laborais condizentes com o curso escolhido.
Na Ley de Educación Superior também se estabelece a responsabilidade por parte do Estado de financiar, supervisionar e fiscalizar as universidades nacionais públicas. Isso significa que cabe ao Estado argentino fornecer recursos para o funcionamento das universidades, mas, igualmente, dar condições para que os alunos possam permanecer em seus estudos, com bolsas e auxílios necessários.
Enquanto isso, a Ley de Educación Técnico Profesional fixa os parâmetros para a educação técnica, voltada aos conhecimentos técnico-científicos e à aplicação de conhecimentos para o mercado de trabalho. Atribui-se ao Ministério da Educação, Ciência e Tecnologia a responsabilidade de fornecer auxílio financeiro para os custos adicionais da formação, como alimentação e transporte, àqueles em situação de maior vulnerabilidade social. Além dos suportes financeiros, também são previstos auxílios pedagógicos com o objetivo de nivelar o conhecimento dos estudantes, como tutorias e apoios extraclasse, assim como a integração de mulheres às áreas técnico-profissionais.
Apesar de contar com uma legislação educacional embasada nos princípios da igualdade, gratuidade e equidade do acesso, a educação superior argentina ainda enfrenta muitos obstáculos no que se refere ao ingresso e, sobretudo, a permanência dos estudantes. Com o objetivo de analisar estes dois aspectos, aqui se enfatizarão as universidades estatais, cujo acesso gratuito e universal estão garantidos pelas legislações educacionais, bem como os níveis de “grado” e “pregrado”,[i] pois representam o primeiro contato da população com a educação superior (MAZZOLA, 2015).
No Gráfico 1 é possível verificar a mudança no perfil das universidades argentinas. Até 2010, as instituições privadas eram numericamente superiores às estatais. No entanto, a década seguinte é marcada pelo crescimento das universidades estatais, superando as universidades particulares.
Gráfico 1 – Universidades argentinas estatais e privadas (2004-2020)
A partir do crescimento das universidades públicas, mais argentinos puderam frequentar o ensino superior, com acesso universal, gratuito e com políticas de permanência garantidas pelo Estado. No entanto, os dados estatísticos anuais para o período de 2000 a 2020 (Gráfico 2) demonstram que, apesar de o número absoluto de estudantes matriculados ser crescente, o total de ingressantes progride timidamente, enquanto o total de egressos mostra-se pouco variável e inferior às duas últimas estatísticas.
Gráfico 2 – Número de estudantes de pregrado e grado em universidades estatais argentinas (2000-2020)
A partir da disparidade entre o número total de estudantes e o número de egressos, ressalta-se que existem obstáculos ao longo da formação que impossibilitam o aluno de concluir o curso escolhido. Apenas 51,7% dos alunos que ingressaram em 2015 continuaram seus estudos após o primeiro ano de curso, distribuídos proporcionalmente entre estatais (51,7%) e privadas (51,8%), de acordo com a Secretaria de Estadísticas Universitárias da Argentina. Cinco anos depois, com a turma de ingresso em 2020, a taxa de retenção aumentou para 62,4%, com a distribuição de 61,6% para as universidades estatais e 64,6% para as instituições privadas. No entanto, mesmo após o crescimento desta taxa ao longo do tempo, quase ⅓ dos estudantes não permanece no curso. Isso demonstra que, apesar de contar com políticas de permanência e auxílio estudantil, tais mecanismos ainda se mostram insuficientes para lidar com as demandas discentes.
Além disso, é importante ressaltar que a partir de 2018, quando se nota um aumento expressivo na população estudantil total, bem como no número de ingressantes, a taxa de retenção nas universidades particulares passa a ser superior a das estatais, com acesso universal e gratuito. As universidades particulares surgem como uma opção barata para o aluno, além de, em geral, estarem mais voltadas à atuação e inserção no mercado de trabalho, com impactos quase imediatos na renda desses estudantes.
Gráfico 3 – Taxa de retenção no primeiro ano (2015-2020)
Em consonância a este quadro está a taxa de egressos em tempo teórico (Gráfico 4), ou seja, as pessoas que concluíram seus cursos superiores no tempo previsto pelo programa. No período de 2015 a 2020, esta estatística não alcança os 50% em nenhum momento, ou seja, menos da metade dos estudantes consegue concluir seus estudos no tempo teórico. Este é um dado que corrobora a hipótese de que as políticas de permanência não são suficientes, pois os estudantes levam mais tempo para o egresso devido a intercorrências na formação – seja pelas dificuldades em conciliar jornadas de trabalho com jornadas de estudo, dificuldades com locomoção, alimentação, compra de materiais etc. Outro aspecto importante a ser destacado é que as maiores taxas de egressos em tempo teórico encontram-se vinculadas às universidades particulares, cujos currículos são mais enxutos, de aplicação mais prática e vinculados a saberes exigidos pelo mercado.
Gráfico 4 – Taxa de egressos em tempo teórico (2015-2020)
3.
A partir dos dados apresentados, podemos concluir que apenas a universalização do acesso ao ensino superior, com a extinção de vestibulares e processos seletivos, não é uma solução permanente para a formação de uma população com qualificações superiores. Além de uma política facilitadora do ingresso à universidade, são necessárias outras políticas de permanência estudantil, com auxílios financeiros, auxílios a estudantes com dificuldades acadêmicas, bem como uma educação básica que aporte satisfatoriamente os pré-requisitos do ensino superior.
A partir deste panorama histórico acerca da educação superior argentina, buscou-se demonstrar que os atores que compõem a universidade no país (docentes, discentes e funcionários) reivindicam participação mais representativa da sua população na elaboração de políticas públicas voltadas à educação superior, desde o Movimento de Córdoba.
Apesar do acesso universal à universidade ser garantido por lei, há um quadro de exclusão estrutural dos grupos historicamente não representados. Sensivelmente afetados pela fragilidade das políticas de permanência estudantil, esses alunos e alunas, ainda que ingressem, não conseguem concluir seus cursos. Desta maneira, os desafios e perspectivas para o ensino superior argentino apresentam a demanda por instrumentos viabilizadores da democratização da universidade.
*Camila Bolini é mestranda no Programa de pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da USP.
*Maria Luísa Nóbrega é mestranda no Programa de pós-Graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia da USP.
*Afrânio Catani é professor titular sênior aposentado da Faculdade de Educação da USP. Atualmente é professor visitante na Faculdade de Educação da UERJ, campus de Duque de Caxias.
Referências
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Nota
[i] No sistema educacional argentino, o nível “pregrado” configura-se por cursos com duração de 2 anos e meio, ou 1600 horas, enquanto o nível “grado” representa aqueles com duração mínima de 4 anos, ou 2600 horas.
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