Um epicurismo revolucionário?

Imagem: Fidan Nazim qizi
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Por FLÁVIO VALENTIM DE OLIVEIRA & RACHEL MARGALHO BARREIRA VALENTIM*

Os jardins sensoriais nas escolas públicas de periferia

A popularização da ciência

O debate em torno do que é ciência e o que é pseudociência tem produzido alguns efeitos colaterais sobre a reflexão da importância estratégica das ações de popularização da ciência, em especial da necessidade de estreitamento da relação entre a escola e a universidade pública. Antes de tudo, é preciso esclarecer que a popularização da ciência não se resume a imagem de um digital influencer com escassez de currículo na plataforma Lattes.

Por outro lado, é preciso reconhecer que Freud tem que ir à escola, pois é impressionante como agora nos currículos escolares às organizações privadas (que sempre vem pressionando o Ministério da Educação por verbas públicas) cultuam o chamado projeto de vida. Culto esse que é contestado pelos relatos de educadores que mostram como o projeto de vida é uma imposição de projetos meritocráticos.

É muito comum nesses projetos a propagação da crença de que os sonhos são iguais, no sentido de que uma jovem negra pode perfeitamente sonhar em ser uma jornalista famosa como a Maju Coutinho, mas sem ir a fundo na discussão da vigência dos projetos racistas no país ou como diz a psicanalista Isildinha Baptista Nogueira, do negro como personagem sublimador de suas próprias tragédias, sem apontar que “ser negro é estar excluído de sua própria humanidade”[i] numa sociedade de brancos. Uma simples análise do onirismo infanto-juvenil brasileiro (no melhor sentido psicanalítico) irá mostrar uma constelação de sonhos cujo conteúdo é a pulsão de morte.

Tomemos como exemplo o caso de 23 estudantes de uma escola pública do ensino médio, da periferia de Belém, que participaram de uma oficina do projeto de popularização da ciência.[ii] Sabor é saber e, por meio de uma pesquisa sobre o onirismo juvenil, revelam uma predominância de sonhos desagradáveis, como mostra o gráfico abaixo:

No onirismo como experiência negativa, os estudantes ressaltam a presença da morte como tema predominante (39%), seguido do medo de sequestros (22%), perdas familiares (pais, irmãos/irmãs) com 3%. Temos também a questão da violência e do abuso sexual (9%) e fracasso escolar (9%). O medo do afogamento com 4% (se não for levado no sentido literal) indica o receio de perda ou sufocamento de sua liberdade de expressão. A pesquisa mostra que o onirismo filtra o contexto da violência em que os estudantes vivem. Em outras palavras, isso significa que precisamos da psicanálise nas escolas públicas para escutar e conversar com os estudantes.

Em outra abordagem, esse parece ser o caso também do epicurismo. Chama a nossa atenção o fato de que o charlatanismo espiritual vem reacendendo um epicurismo servil da indústria farmacológica, do tipo: viva uma vida barata, remédios e felicidade, como se o epicurismo fosse sinônimo de resignação com o capitalismo.

Mas entra em questão a pergunta: o que isso tem a ver com a popularização da ciência e da filosofia? A questão é que essas apropriações são sempre perigosas. No filme O conformista (1970), o diretor italiano Bernardo Bertolucci mostrou bem que um fascista é um modelo patológico do platonismo porque sempre cria mundos superiores e paralelos.

Um epicurismo revolucionário?

Tem sido comum em atos públicos globais em defesa da justiça climática a exibição de cartazes em que os ativistas exibem a seguinte mensagem: “Ecologia sem luta de classes é apenas jardinagem”. De um modo geral, o cultivo de jardins sempre esteve associado ao estilo de vida burguês, pois, enquanto os operários viviam em bairros insalubres, em ruas sem saneamento, os burgueses industriais, por sua vez, exibiam seus jardins como alegorias do esnobismo social e com jardineiros que pertenciam às classes populares. Aliás, uma das cenas mais escandalosas da história do cinema é o ato final do filme Teorema do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, em que o burguês caminha completamente nu ao longo de um deserto, afastado e despossuído do seu jardim de prazeres.

Nunca é demais lembrar que foi o manifesto[iii] de um pensador da extrema direita que se apropriou do epicurismo e encantou muitos jovens céticos com a política. O ideólogo, certamente, falsificou muitas coisas da teoria epicurista com suas manias persecutórias, mas o fato é que ele mesmo se enxergava como um líder epicurista que propunha um jardim contra as instituições culturais brasileiras e atacava seus opositores como aqueles que viviam nos jardins das mentiras morais. O resultado dessa apropriação política extremista do epicurismo só poderia terminar na experiência autoritária do “cercadinho” governamental.

Nesse contexto, os jardins sensoriais podem retomar o conteúdo revolucionário das práticas epicuristas em nossa sociedade? É preciso lembrar que na Amazônia os jardins sempre tiveram uma função simbólica de resistência. Muitos desses jardins estavam conectados a medicina das benzedeiras e a autoestima das famílias populares, cujas práticas de jardinagem contestavam a ideologia elitista que se espalhou pela região Norte, a saber: que pobre é sempre amigo da sujeira.

Foi o próprio Epicuro (341-270 a.C.) que em uma carta endereçada ao jovem amigo Meneceu sintetizou o valor de sua doutrina. O epicurismo é acima de tudo uma filosofia da “saúde da alma” que assim diz: “Que nem o jovem se demore a filosofar, nem o velho de filosofar se canse”.[iv] Nessa frase simples o conselho dado pelo filósofo é que precisamos nos desembaraçar de duas ilusões muito comuns em nossas vidas. A primeira é de que temos todo tempo do mundo (quando se é jovem) e a segunda é de que o tempo findou, de que não se deve mais dedicar energias e esforços para os nobres projetos (a velhice). O que nos interessa na teoria de Epicuro é justamente o conteúdo revolucionário de sua filosofia no combate a atrofia do espírito, do envelhecimento precoce da juventude.

O jardim de Epicuro

Epicuro não escapou em sua época da fama de filósofo individualista. Daí sua imediata associação na modernidade aos prazeres burgueses alienantes. Mas o próprio Marx foi um filósofo que reabilitou a teoria da justiça epicurista e a importância de sua ética da liberdade contra as superstições do mundo. Marcuse não deixou também de valorizar aspectos do epicurismo como uma filosofia anti-hedonista dos prazeres burgueses. Na verdade, o que a sociedade burguesa faz é apenas “reprimir” outros prazeres sociais em detrimento de seu hedonismo selvagem, explorador e individualista. Não podemos esquecer que o epicurismo é uma filosofia da cooperação. [v]

O jardim de Epicuro era uma tecnologia da vida. Era o espaço de exercício da autonomia do indivíduo (como um átomo), mas o indivíduo, assim como um átomo, é algo sempre universal. Nesse aspecto, os jardins epicuristas eram lugares de acolhimento não hierárquico de “mulheres e homens de classes subalternas” e até mesmo de estrangeiros.[vi]

Epicuro via na política um espaço de distúrbios. Nesse âmbito reside a crítica de Marx e Marcuse. Tratava-se, entretanto, para o materialismo moderno em ver a política também como um espaço de emancipação, mas de todo modo, o jardim epicurista não era um claustro ou esconderijo e, sim, uma “nova forma de comunidade”, em que era “possível viver livremente, entre amigos, sem déspotas (adéspoton)”.[vii]

Claro que o mundo de Epicuro – é sempre bom lembrar – não era mais a Atenas democrática da experiência socrático-platônica, o próprio homem grego sentia-se desorientado. O nacionalismo grego já estava a muito tempo colapsado. O próprio Epicuro não deixou de reter a imagem do fracasso do filósofo político: justamente quando Platão tenta convencer um tirano de Siracusa sobre a justiça e a virtude. Claro que Cícero (outro modelo de filósofo político) foi um crítico do epicurismo nesse sentido do isolamento social, tratando-o como uma filosofia da infância, acorrentada nas fantasias de seu jardim.

As escolas epicuristas

O epicurismo não era uma filosofia política de segregação social. Os jardins de Epicuro eram conquistas de pequenos espaços, conquistas de si e seu fundo filosófico era de um jardim como espaço de inconformismo contra a política opressiva da época. É verdade que Sócrates andava e debatia nas praças públicas, mas suas escolas eram altamente especializadas, “era necessário já dominar bem as ferramentas conceituais da filosofia”.[viii] E isso não desqualifica Epicuro que, por sua vez, escolheu “um jardim na periferia da cidade”.[ix]

No caso dos jardins sensoriais para crianças e jovens da periferia, procura-se criar uma consciência social e uma sensibilidade ambiental em suas vidas. Os jardins sensoriais como atividades voltadas para crianças de escolas públicas têm como objetivo contribuir para a educação sustentável.  Eles ajudam a desenvolver práticas científicas por meio de caracterização química das plantas e sementes; despertam o protagonismo científico das crianças pela biodiversidade amazônica; desperta a sensibilidade, a gentileza e o carinho por meio do cuidado com os vegetais (como respeito pela pluralidade da vida) e incentivam as crianças a difundir práticas ambientais com suas próprias famílias.

Figura 1 – Crianças de escola pública em atividades no jardim sensorial.

Fonte: Projeto Sabor é saber (SEDUC-Pará. Apoio CNPQ/Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovações).

É curioso que ao desenvolver esse tipo de projeto se vai direto a um dos problemas muito sérios na educação básica: trata-se de como na própria escola pública se reproduz o mito da classe média – inclusive entre professores – dos estudantes grosseiros, que vão quebrar vasos e arrancar as folhas e flores. No final da atividade, as crianças, inclusive as mais “danadas”, pedem autorização para levar os vasos com as plantas, perguntam quantas vezes deve-se molhá-las. É gratificante ver as crianças – acostumadas a aporofobia desde cedo – levando suas plantas como se fossem um símbolo da amizade, como uma trégua no cotidiano de grosserias e ausências de amor parental.

Projeto paliativo? A questão é que se nós não educarmos desde cedo as crianças para uma pluralidade de sensações e respeito a diversidade de cores, de tamanhos, de cheiros e de seres, deixaremos uma seara aberta para o fascismo, e o fascismo adora encantar as crianças. Uma característica do fascismo brasileiro é associar a sensibilidade e a gentileza a cultura de efeminados.

A própria expressão bolsonarista que dizia: a “floresta não queima” é um conteúdo típico do sadismo fascista que traduz a natureza como um laboratório permanente para experiências de tortura e destruição. Nesse contexto, a lição de Epicuro ainda é válida no sentido de apontar que nós não somos “autossuficientes” e, portanto, o indivíduo precisa de “outros indivíduos para criar uma comunidade: uma comunidade de amigos”.[x]

*Flávio Valentim de Oliveira é doutor em educação pela UFPA. Autor do livro Animalidade e pensamento crítico (Paco). [https://amzn.to/3RCJdEI]

*Rachel Margalho Barreira Valentim é doutora em Engenharia dos Recursos Naturais da Amazônia (UFPA). Autora do livro Eutérpia no reino dos açaizais (Dialética). [https://amzn.to/3EYgCCc]

Notas


[i] NOGUEIRA, Isildinha Baptista. “Do olhar do outro. À sublimação de se constituir negro” in: A psicanálise na encruzilhada. Desafios e paradoxos perante o racismo no Brasil. DAVID, Emiliano de Camargo; ASSUAR, Gisele (orgs.) São Paulo/Porto Alegre: Hucitec, 2021, p. 47.

[ii] Trata-se do projeto Sabor é saber. Feiras de Ciências Apoio CNPQ e Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Processo: 423817/2021-3.

[iii] Trata-se do manifesto de Olavo de Carvalho. O jardim das aflições. De Epicuro à ressurreição de César: ensaio sobre o materialismo e a religião civil. Rio de Janeiro: Ateliê 19,1998.

[iv] Epicuro, “Carta a Meneceu” in NICOLA, Ubaldo. Antologia ilustrada de filosofia. Das origens à idade moderna. São Paulo: Globo, 2005, p.107.

[v] FUSARO, Diego. La farmácia di Epicuro. La filosofia come terapia dell’anima. Lombardia: Il prato/Icentotalleri. 2006. Ver especialmente capítulo 9: “Una filosofia individualista? L’amicizia, la politica, la teoria dela giustizia”.

[vi] FUSARO, Diego, op.cit.

[vii] MORAES, João Quartim de. Epicuro: as luzes da ética. São Paulo: Moderna, p. 62

[viii] FUSARO, Diego, Op.cit.

[ix] Idem.

[x] FUSARO, Diego, op.cit.


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