Império de paixões

Faixa de Gaza sob bombardeio israelense / Reprodução Telegram
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Por DANIEL AFONSO DA SILVA*

Reabilitou-se com o 7 de outubro a alta intensidade da eterna empreitada do bem contra o mal alimentada por paixões

“La peur, la vraie peur est un délire furieux”
(Georges Bernanos)

Sob o choque do 7 de outubro de 2023, autoridades israelenses se apressaram em classificar o terrorismo do Hamas com aquele perpetrado pela Al Qaeda ante os norte-americanos no 11 de setembro de 2001. Comparação não infere razão. Mas nesse caso parece importante algum recuo para muita meditação.

Os ataques de 11 de setembro não necessariamente alteraram o curso geopolítico do mundo. Simplesmente precipitaram tendências, afirmaram nuances e acentuaram ilusões. Aquele evento sem-nome daquele dia foi televisionado. O mundo inteiro, assim, instantaneamente, recebeu um convite ao deserto do real. E, tão logo pôde, retribuiu.

A reação norte-americana foi a primeira a se instalar. “Justice will be done”, prometeu o presidente da ocasião. Politólogos se anteciparam em identificar tudo aquilo como o fim do fim da história. Sociólogos identificaram a vitória do choque de civilizações. Historiadores propuseram ser a vingança dos historicamente retirados da História. Linguistas reconheceram como o retorno dos bárbaros. E Pierre Hassner (1933-2018) – esse filósofo romeno sem par – considerou ser a revanche das paixões.

Passado o furor, as batalhas no Afeganistão e no Iraque foram rapidamente obliteradas pelas tormentas da crise financeira mundial de 2008. Apenas Osama Bin Laden continuou a observar as incontestáveis barbaridades que os norte-americanos iam fazendo naquelas bandas médio-orientais.

Tentando tudo renovar, Barack Obama foi ao Cairo em 2009 para tudo recomeçar. A Primavera dos Árabes veio logo em seguida sugerir que o recomeço era possível. Que o proto-africano que presidia os Estados Unidos, enfim, poderia, sim, ter razão. Que os ponteiros dos relógios ocidentais, africanos e médio-orientais poderiam se harmonizar. Que o mercado, a globalização, a justiça, a democracia poderiam se universalizar. Que o fim da história, por ali, poderia se realizar.

Esqueceu-se, portanto, de um detalhe. A história já tinha recomeçado – se é que algum dia realmente terminou.

Mesmo assim, africanos e médio-orientais desceram às ruas ansiando regimes democráticos, estados de direito e justiça de tipos ocidentais. Porém, não tardaram a notar que o fim seria mais penoso que o começo. Que as dificuldades não eram compatíveis com o esforço. Que aquele panteão de promessas eram um oceano de ilusão. Rapidamente, assim, todos os movimentos refluíram. Alguns dramaticamente. Outros enfaticamente. Moralmente ficou impossível alguma coisa aplaudir.

A catástrofe do “regime change” na Líbia transformou o Mediterrâneo no maior cemitério de seres humanos à luz do sol que todos podem hodiernamente sem bilhetes apreciar. A falácia da red line para afugentar o povo sírio resultou na guerra sem fim nem perdão pela proteção de Damasco que ninguém hoje tem a coragem de seriamente voltar a observar. Sobre Palmira, virou melhor esquecer para não se falar.

Quando se anunciou desde os Estados Unidos da América que justice has been done depois da neutralização do promotor dos ataques de 2011, tudo isso já vinha anunciado. Um completo vazio se instalou no ar. Um vazio silencioso. Mas penetrante. Perturbador até. Semelhante àquele de 11 de novembro de 1918. Similar àquele de 2 de setembro de 1945. Parecido com o outro de 9 de novembro de 1989.

Justice has been done? Ok. E agora?

Tudo que historicamente adveio depois de vazios silenciosos, penetrantes e perturbadores produziu agruras horripilantes. O entreguerras, por fato, foi incontestavelmente pior que o sonambulismo que levou à Segunda Grande Guerra. A Guerra Fria foi, por verdade, tão indigesta e cheia de guerras como as Grandes Guerras sem par. E o após-1989-1991 fez emergir um império de ilusões como nunca se viu. Precisou o 11 de setembro para trazer tudo de volta aos prumos com algum senso de proporção.

Anotou-se com o 11 de setembro que o império das ilusões foi transformado em oceano de paixões. Constatou-se, rapidamente, que a fúria das paixões era mais verdadeira que os interesses das nações. Movimentos apaixonados eram capazes de fazer qualquer coisa pelo seu propósito. Percebeu-se que a justiça, a democracia e a razão eram simplesmente fugas abstratas diante de um mundo eivado de rancores, ressentimentos e pulsões. Compreendeu-se que o mundo moderno kantiano não existia mais. Admitiu-se que, doravante, regredia-se ao mundo hobbesiano. Aquele das tragédias sem par. Aquele da força bruta, da virilidade, da guerra sem fim. Aquele sem regras nem direito tampouco leis. Aquele da desrazão. Muito anterior a qualquer civilização. Aquele das pulsões. Um mundo de bárbaros. Mas, agora, onde os bárbaros também eram aqueles que outrora imaginavam guerrear contra bárbaros.

A guerra terrorista norte-americana em resposta ao terrorismo da Al Qaeda, nessa perspectiva, revelou a falência de toda uma tradição inaugurada por Locke, endeusada por Kant, modelizada por Hegel, afiançada pelo presidente Woodrow Wilson e ansiada pelo politólogo Francis Fukuyama. A prosperidade prometida pela democracia liberal virou quimera. A democracia nem a felicidade se fizeram universais. A força da globalização não inibiu a ânsia da guerra. A garantia da regra e do direito não produziu a paz – amiúde nem perpétua. O imperativo da superioridade dos ocidentais não os impediu de regredir a selvagerias sem paralelos. Vide Kaboul, vide Bagdá. O mundo de Kant se ressignificou como um mundo de Hobbes.

Menos o 11 de setembro e mais a reação a ele, desse modo, reabilitou o retorno do medo, da insegurança, da dor. Voltou-se, assim, aos mundos de Georges Bernanos. Entendeu-se bem o que ele queria dizer com “La peur, la vraie peur est un délire furieux” [o medo, o verdadeiro medo é um delírio furioso]. Passou-se a viver sob o manto desses delírios insuportáveis. Delírios que abriram o novo século. Delírios que o alimentam todos os dias do século. Delírios que motivaram o 7 de outubro. Delírios que alimentam o seu depois.

O 11 de setembro, portanto, mudou os paradigmas. O ponto concreto da mudança foi quando o presidente George W. Bush decretou a implacabilidade do “nós contra todos”. Quando isso aconteceu, uma guerra santa foi decretada pelo eixo daqueles – europeus iluministas e norte-americanos pós-cristãos – que vinham assassinando o transcendente em favor da justiça e da democracia. Justiça e democracia eram a promessa da superação das paixões. Da contenção das pulsões. Do avanço da cidadania, da racionalidade e da civilização.

A perplexidade de todos os entendidos diante desse ato de mudança foi perdida em meio aos comentários, imagens e sons. Mas a lei de talião retornou à cena e ninguém verdadeiramente sério conseguiu negar.

Adeus, democracia. Adeus, Ocidente. Adeus, justiça. Tudo virou ressentimento versus ressentimento. Humilhação versus humilhação. Império de paixões.

O ressentimento e a humilhação sentidos pelos muçulmanos sempre foram imensos. Eles sempre estiveram soterrados desavergonhadamente em seus impérios inundados de paixões. A memória das vitórias de seus passados gloriosos começou a ser soterrada nas misérias do presente universalizado pelos imperativos ocidentais do iluminismo e da razão. A lembrança da sua grandeza na cultura, na política e na economia foi, pouco a pouco, contrastando com a evidência de seus cotidianos deveras cruentos de tormentas, exclusão, desigualdades e opressão. Uma tragédia sem par em terras médio-orientais. Uma tragédia simbolizada e matizada na existência do estado de Israel.

Por isso, os conflitos de 1956, 1967 e 1973 deixaram marcas tão profundas que ninguém atento em Washington, Jerusalém e Telavive conseguiu esquecer. Pensando bem, a investida nacionalista no Egito de Nasser deu o golpe de misericórdia nas tentações colonialistas franco-britânicas em todas as partes. Serviu de ultimato, por exemplo, aos franceses que se puseram a resolver a situação na Argélia. Ou resolviam essa questão ou os argelinos barbarizariam eternamente a realidade dos herdeiros de Voltaire.

Olhando com atenção, a solução da tensão de 1967, por sua vez, deixou ainda mais cicatrizes. Mas nenhuma delas parecida com as cravadas na alma do Ocidente quando o rei Faysal das arábias harmonizou o mundo muçulmano contra as ocupações de Israel em outubro de 1973. A partir daí virou evidente que guerra eterna havia se transformado numa guerra sem fim. Uma guerra de paixões. Ao estilo hobbesiano. Uma guerra para durar.

Quem, então, anos depois, analisou com consciência os eventos do 11 de setembro percebeu ali uma ofensiva radical islâmica, sim, contra os fiéis e infiéis ocidentais, europeus e norte-americanos. Mas também compreendeu a continuação da resistência àqueles – ocidentais, europeus e norte-americanos – que ocupavam sem nenhum testamento lugares sagrados de povos apaixonados, muçulmanos, não-cristãos nem judeus.

A história jamais teve fim para eles. Muçulmanos, não-cristãos nem judeus. Povos médio-orientais. Nunca a democracia de marca liberal, a justiça de tipo ocidental ou a razão iluminista teve para eles sentido nem lugar. Jamais o heroísmo, a virilidade, a consciência do trágico e a prevalência da morte lhes foram indiferentes. Precisou, no entanto, ter o 11 de setembro para os ocidentais, europeus e norte-americanos, sobre tudo isso se conscientizar.

Mas de tanto se conscientizar, fizeram da consciência um espelho. Reabilitar, entre ocidentais, o fanatismo, a virilidade, o heroísmo. Voltando, assim, a sucumbir às paixões. Paixões terríveis imantadas a entusiasmos. Entusiasmos peçonhentos que conduziram a nacionalismos extremos. Nacionalismos extremos que produziram todos os totalitarismos que fizeram todos os avanços da civilização no Ocidente regredir.

Sob o registro da “guerra ao terror”, portanto, norte-americanos e ocidentais saíram trocaram o império das leis pelo império das paixões. Passaram a sinceramente chafurdar fanatismos. Realizaram que a vida neste mundo, após o 11 de setembro, precisava ser a da batalha eterna do bem contra o mal. Do niilismo profundo. Com um Nietzsche puro e abrangente. Mundos sem lei. Onde, claro, justice should not only be done. Sendo preciso: justice will never been done.

Ao se mover desse modo após o trágico do 11 de setembro, sem perceber – ou percebendo tudo conscientemente – ocidentais, europeus e norte-americanos, sucumbiram às armadilhas dos outros. Querendo ou não, reabilitaram a descivilização dos anos de 1930. Gostando ou não, atolaram o mundo inteiro num verdadeiro fosso de desrazão.

Se eles todos, até ali, tinham medo dos bárbaros, como aludia o saudoso Tzvetan Todorov, agora, o seu maior receio era ter que reconhecer que os piores bárbaros poderiam refletir no espelho quando quaisquer deles se prostrassem diante de um.

Não é ao acaso que as Nações Unidas deixaram fluidos os conceitos de terror, terrorismo, genocídio e crime contra a humanidade. Tudo isso remete a emoções, ao medo, à dor. Fortes, quentes e frias paixões. Não há justiça que aplaque paixões. Do contrário, todos os ocidentais, defensores da justiça e da razão, estariam mofando em alguma prisão.

De toda sorte, o incontestável traumatismo dos ataques do 11 de setembro teria justificado que ocidentais respondessem na mesma moeda. Esqueceram-se, porém, que a sua cultura e os seus princípios sugerem a oferta da outra face. O negligenciar desse gesto cristão levou europeus e norte-americanos ao mesmo registro de seus oponentes médio-orientais. Isso fez com que os outrora moradores do império da razão retornassem ao seu império de paixões. Um império de delírios. Onde o medo se responde com o medo. A raiva com a raiva. A desrazão com a desrazão. A dor com mais dor.

Nada mudou de lá pra cá. Nada mudou do 11 de setembro ao 7 de outubro. Não há, assim, razão para se espantar com a declaração do secretário geral das Nações Unidas António Gutierrez que informa que, no mêsversário da nova fase do conflito israelo-palestino, Gaza virou um imenso cemitério de crianças. Tampouco parece plausível estranhar que mais de duzentos corpos humanos estejam sem identificação em necrotérios israelenses pela simples razão de não serem mais identificáveis.

Reabilitou-se com o 7 de outubroa alta intensidade da eterna empreitada do bem contra o mal alimentada por paixões. Uma empreitada já instaurada no 11 de setembro original, do início do século, em 2001. Uma empreitada eterna e sem fim. E, pior, sem árbitro para o Juízo Final.

*Daniel Afonso da Silva é professor de história na Universidade Federal da Grande Dourados. Autor de Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas (APGIQ). [https://amzn.to/3ZJcVdk]


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