O que é um genocídio?

Imagem: Chrisna Senatus
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por VLADIMIR SAFATLE*

Genocídio não é algo ligado a algum número absoluto de mortes, mas sim a uma forma específica de política de apagamento dos corpos

No dia 13 de novembro, nomes fundamentais da teoria crítica contemporânea, como Jürgen Habermas, Rainer Forst, Nicole Deitelhof e Klaus Günther, entenderam por bem publicar um texto, a respeito do conflito palestino e suas consequências, intitulado “Princípios de solidariedade. Uma afirmação”.

Começando por atribuir toda a responsabilidade da situação atual aos ataques do Hamas, defendendo o “direito de retaliação” do governo israelense e fazendo considerações protocolares sobre o caráter controverso e polêmico da “proporcionalidade” de sua ação militar, o texto termina por afirmar o absurdo de pressupor “intenções genocidárias” ao governo de extrema direita de Israel, conclamando todos ao mais profundo cuidado contra “sentimentos e convicções antissemitas por trás de toda forma de pretextos”.

O que inicialmente impressiona em um texto escrito por quem seria legatário da força crítica da Escola de Frankfurt e seu comprometimento antiautoritário é aquilo que não tem direito de aparecer quando certos europeus estão a clamar por “princípios de solidariedade”. Pois seria o caso de lembrar que, quando o texto de Jürgen Habermas e companhia foi publicado, o mundo contava mais de 10 mil palestinos massacrados e o governo israelense continuava a afirmar que nem sequer permitiria um cessar-fogo para a abertura de corredores humanitários.

Poderíamos esperar que isso tivesse a dignidade de nos indignar, que um texto sobre solidariedade, neste momento, começaria dizendo que colocar uma população de 2,5 milhões de pessoas em um estado cotidiano de terror no interior de uma lógica inaceitável de punição coletiva não é maneira alguma de combater o Hamas, mas sim de fortalecê-lo.

No entanto, chama a atenção como defensores de princípios universalistas de justiça parecem, na verdade, prontos a usá-los estrategicamente quando é o caso de expiar seus fantasmas locais de responsabilidade perante catástrofes passadas. A não ser que a racionalidade comunicativa tenha, afinal, fronteiras geográficas e esqueceram de nos avisar. Mas uma teoria que nunca pensou estruturas coloniais e seus modos de permanência e desdobramento não está preparada para os desafios do presente.

Pois militantes de direitos humanos, funcionários da ONU, diplomatas dos mais variados países, que insistem nas intenções genocidárias do governo israelense, têm todo o direito de serem ouvidos e levados a sério. Elas e eles estão a defender que “genocídio” ocorre todas as vezes em que o vínculo orgânico de populações ao “genos“, ao que nos é comum, é negado.

Quando o comandante das Forças Armadas israelense diz que do outro lado há “animais humanos”, ele expressa, de forma pedagógica, intenções genocidárias. Quando ministros do governo de Israel afirmam ser plausível o uso de bombas nucleares contra Gaza e não tem outra punição que o simples afastamento de reuniões ministeriais futuras, quando descobrimos planos de deslocamento em massa dos palestinos para o Egito, estamos sim diante de expressões de intenção genocidária. Tais intenções devem ser nomeadas.

Genocídio não é algo ligado a algum número absoluto de mortes, mas sim a uma forma específica de política de apagamento dos corpos, de desumanização da dor de populações, de silenciamento do luto público que retiram populações de sua humanidade e expressam processos historicamente reiterados de sujeição. Quando falamos dos palestinos, estamos a falar de um povo apátrida, sem terra – e, por isso, como bem lembrou Itamar Vieira Júnior na Folha de S. Paulo, sem liberdade alguma.

Povo que não pode contar com a solidariedade internacional porque espera há 50 anos que a lei internacional que define a posse de seu próprio território seja respeitada e que, quando se vê vítima de uma punição coletiva em pleno século XXI, encontra textos que nem sequer têm a capacidade de lembrar que nada disso começou com os ataques do Hamas.

O Hamas é efeito terrível de uma causa que merece ser pensada em seu horizonte histórico correto. Tomar o efeito pela causa é a melhor maneira de não resolver problema algum. Alguém deveria lembrar aos signatários do texto em questão que a teoria crítica exige escutar a história dos desterrados e dos vencidos.

*Vladimir Safatle é professor titular de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação (Autêntica). https://amzn.to/3r7Nhlo

Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Bernardo Ricupero Elias Jabbour Manuel Domingos Neto Gabriel Cohn Milton Pinheiro Luiz Roberto Alves Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Paulo Fernandes Silveira Annateresa Fabris Eleutério F. S. Prado Vanderlei Tenório Chico Whitaker Jorge Branco José Costa Júnior Remy José Fontana Marilena Chauí Tadeu Valadares Anselm Jappe Fernando Nogueira da Costa Lincoln Secco Vladimir Safatle Fernão Pessoa Ramos João Paulo Ayub Fonseca Alexandre Aragão de Albuquerque Luis Felipe Miguel Vinício Carrilho Martinez Marcelo Guimarães Lima Plínio de Arruda Sampaio Jr. Jean Pierre Chauvin Francisco Fernandes Ladeira João Carlos Loebens Marjorie C. Marona Érico Andrade Juarez Guimarães Ricardo Fabbrini Walnice Nogueira Galvão Jorge Luiz Souto Maior Marcos Aurélio da Silva Antonio Martins Lucas Fiaschetti Estevez Osvaldo Coggiola Eugênio Trivinho Michael Löwy Igor Felippe Santos Daniel Brazil Atilio A. Boron Bruno Fabricio Alcebino da Silva Andrew Korybko Marcos Silva Yuri Martins-Fontes Alysson Leandro Mascaro José Luís Fiori André Márcio Neves Soares Mariarosaria Fabris Leda Maria Paulani Ronaldo Tadeu de Souza João Adolfo Hansen Ricardo Antunes Antônio Sales Rios Neto Alexandre de Lima Castro Tranjan Francisco de Oliveira Barros Júnior Fábio Konder Comparato Luís Fernando Vitagliano Gilberto Lopes Denilson Cordeiro Carla Teixeira Andrés del Río Julian Rodrigues Kátia Gerab Baggio Claudio Katz Marcus Ianoni Ladislau Dowbor João Feres Júnior Paulo Martins José Geraldo Couto Maria Rita Kehl Leonardo Avritzer Matheus Silveira de Souza Alexandre Juliete Rosa Luiz Eduardo Soares João Carlos Salles Celso Favaretto Tarso Genro Leonardo Sacramento Boaventura de Sousa Santos Heraldo Campos Chico Alencar João Lanari Bo Henry Burnett Carlos Tautz Dênis de Moraes Luciano Nascimento Thomas Piketty Bento Prado Jr. Sergio Amadeu da Silveira Ari Marcelo Solon Everaldo de Oliveira Andrade Dennis Oliveira Salem Nasser Samuel Kilsztajn Priscila Figueiredo Ricardo Abramovay Bruno Machado João Sette Whitaker Ferreira Tales Ab'Sáber Eugênio Bucci Eliziário Andrade Luiz Marques Rubens Pinto Lyra Manchetômetro Marilia Pacheco Fiorillo Celso Frederico Renato Dagnino Rodrigo de Faria Daniel Costa André Singer Michel Goulart da Silva Luiz Werneck Vianna Alexandre de Freitas Barbosa Armando Boito Otaviano Helene Gerson Almeida Slavoj Žižek Berenice Bento Benicio Viero Schmidt Ronald Rocha Afrânio Catani José Dirceu Caio Bugiato Daniel Afonso da Silva Henri Acselrad Ricardo Musse Gilberto Maringoni Eduardo Borges Lorenzo Vitral José Machado Moita Neto Sandra Bitencourt Luiz Carlos Bresser-Pereira Leonardo Boff Francisco Pereira de Farias José Micaelson Lacerda Morais José Raimundo Trindade Valerio Arcary Liszt Vieira Marcelo Módolo Paulo Sérgio Pinheiro Antonino Infranca Flávio R. Kothe Jean Marc Von Der Weid Ronald León Núñez Rafael R. Ioris Michael Roberts Luiz Bernardo Pericás Eleonora Albano Flávio Aguiar Paulo Capel Narvai Airton Paschoa Paulo Nogueira Batista Jr Mário Maestri Luiz Renato Martins

NOVAS PUBLICAÇÕES