A vitória da extrema direita na Holanda

Imagem: Rachel Xiao
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JUAN TORRES LÓPEZ*

A extrema direita aparece porque, ao mesmo tempo, as esquerdas desaparecem ou perdem o norte, dividem-se privilegiando as questões identitárias e territoriais ou dizendo à sociedade o que é ou não politicamente correto

A recente vitória da extrema direita nas eleições gerais dos Países Baixos (Holanda) só surpreendeu aqueles que estavam alheios ao que vem acontecendo nesse país nos últimos treze anos. Desde então, governa a direita liberal, liderada por Mark Rutte, que não parou de implantar reduções de impostos para os mais ricos, privatizações e cortes nas despesas e benefícios sociais.

Os Países Baixos, por exemplo, têm um dos sistemas fiscais mais regressivos da Europa: a porcentagem da renda gasta em impostos para a maioria dos grupos por renda é de cerca de 40%, mas apenas 20% para o 1% mais rico da população.

Os sucessivos governos liberais seguiram uma política de habitação orientada para o mercado, que incrementou as dificuldades de acesso para a classe média, sem melhorá-lo para as pessoas com renda mais baixa, o que provocou um aumento acentuado dos preços.

Mark Rutte disse, no início de seu mandato, que tinha que acabar com a ideia que, segundo ele, seus compatriotas tinham do Estado: “uma maquininha de felicidade”. Para conseguir isso, cortou os investimentos e as despesas, provocando uma piora dos serviços públicos de saúde, transportes, educação e assistência (em 2015, a assistência aos idosos e seus dependentes passou a ser uma “obrigação” familiar). A diretora da UNICEF nos Países Baixos denunciou em 2018 que, nesse país tão próspero, os direitos das crianças vulneráveis foram deixados de lado.

Nos últimos treze anos, os sucessivos governos liberais levaram a cabo uma verdadeira espoliação da renda e dos direitos das classes de renda média e baixa, ao mesmo tempo em que transformaram seu país no paraíso fiscal mais agressivo da Europa, concedendo todo tipo de favores fiscais e financeiros às grandes empresas.

Talvez a prova mais evidente desta espoliação é que as famílias dos Países Baixos possuem o endividamento mais elevado em relação à sua renda bruta disponível de toda a Europa: 187,03% no primeiro trimestre deste ano, o dobro das famílias espanholas (89,4%).

A estratégia seguida pelos liberais holandeses (como os de outros países) para evitar que esta espoliação se traduzisse em revolta social foi dupla. Por um lado, culpar as classes trabalhadoras pelo desperdício de dinheiro público e, por outro, responsabilizar a imigração por todo o mal que lhes estava acontecendo.

A primeira atingiu seu pico mais vergonhoso em 2021: até o governo teve que renunciar, quando se descobriu que tinha acusado mais de 30 mil famílias de baixa renda de fraude nos benefícios sociais, sem qualquer fundamento. Cerca de 70.000 crianças foram as principais vítimas da falsa acusação e 1.115 acabaram em instituições de acolhimento por conta disso.

O discurso contra a imigração não parou, tornando-se cada vez mais forte, na medida em que crescia a espoliação, quando, na verdade, os trabalhadores imigrantes estão nos empregos de salários mais baixos e precários e os problemas associados à imigração têm a ver, sobretudo, com o enfraquecimento dos serviços públicos e sociais referidos.

Ao contrário do que acontecia há algumas décadas, a direita liberal não esconde a espoliação que ocorre quando governa. Reconhece-a agora, mas culpa a imigração ou os próprios espoliados (como dizem meus colegas economistas liberais, porque não investem o suficiente em si próprios).

É quando aparece a extrema direita, oferecendo ajuda (soberania, segurança, valores tradicionais, defesa da nação…) e proteção contra o inimigo que vem tomar “o que é nosso”.

Contudo, a extrema direita aparece porque, ao mesmo tempo, as esquerdas desaparecem ou perdem o norte. Em vez de se centrarem nas questões socioeconômicas que realmente condicionam a vida das pessoas com um discurso ecumênico, dirigido às grandes maiorias sociais para protegê-las numa perspectiva transversal e de sentido comum, dividem-se e fragmentam-se para se identificarem com os interesses de pequenos segmentos ou grupos minoritários da população, privilegiando as questões identitárias e territoriais ou dizendo à sociedade o que é ou não politicamente correto. Sem conseguir impedir o que vem para cima de nós.

*Juan Torres López é professor de economia na Universidad de Sevilla. Autor, entre outros livros, de La renta básica (Planeta).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Publicado originalmente no site Ganas de escribir.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Andrew Korybko Lincoln Secco Celso Favaretto Valerio Arcary André Singer Ronald Rocha Daniel Afonso da Silva Liszt Vieira André Márcio Neves Soares Paulo Sérgio Pinheiro Thomas Piketty Renato Dagnino Ricardo Abramovay Ricardo Musse Armando Boito Marilena Chauí João Adolfo Hansen Alysson Leandro Mascaro Denilson Cordeiro Jean Marc Von Der Weid Igor Felippe Santos Atilio A. Boron Yuri Martins-Fontes Marcus Ianoni Marcos Silva Henri Acselrad Remy José Fontana Matheus Silveira de Souza Tales Ab'Sáber Otaviano Helene Marcelo Módolo Michael Roberts João Paulo Ayub Fonseca Paulo Capel Narvai Vanderlei Tenório Gilberto Lopes Rodrigo de Faria Sandra Bitencourt Everaldo de Oliveira Andrade Ricardo Fabbrini Luiz Werneck Vianna José Geraldo Couto Luiz Eduardo Soares Flávio R. Kothe Elias Jabbour João Lanari Bo José Dirceu Bernardo Ricupero Jorge Branco Manuel Domingos Neto José Micaelson Lacerda Morais Carlos Tautz Bento Prado Jr. Henry Burnett Paulo Martins Anselm Jappe Daniel Brazil Julian Rodrigues Tadeu Valadares Alexandre Aragão de Albuquerque Manchetômetro Maria Rita Kehl Francisco de Oliveira Barros Júnior Juarez Guimarães Marjorie C. Marona Andrés del Río Ricardo Antunes Luiz Bernardo Pericás Vinício Carrilho Martinez Marcos Aurélio da Silva João Sette Whitaker Ferreira Salem Nasser Ladislau Dowbor Jorge Luiz Souto Maior Marilia Pacheco Fiorillo Airton Paschoa Samuel Kilsztajn Lorenzo Vitral Dennis Oliveira Luciano Nascimento Leonardo Sacramento Jean Pierre Chauvin Alexandre Juliete Rosa Eleonora Albano Gilberto Maringoni Luiz Roberto Alves José Raimundo Trindade Boaventura de Sousa Santos Sergio Amadeu da Silveira Mariarosaria Fabris Paulo Nogueira Batista Jr Chico Whitaker Claudio Katz Ronald León Núñez Rafael R. Ioris Marcelo Guimarães Lima Ari Marcelo Solon Luís Fernando Vitagliano Slavoj Žižek Eduardo Borges Rubens Pinto Lyra Luiz Marques José Machado Moita Neto Carla Teixeira Priscila Figueiredo Fernando Nogueira da Costa Bruno Machado Annateresa Fabris Fábio Konder Comparato Eugênio Bucci Kátia Gerab Baggio Érico Andrade Antônio Sales Rios Neto Osvaldo Coggiola Chico Alencar João Feres Júnior Eliziário Andrade Antonino Infranca Celso Frederico Caio Bugiato Francisco Pereira de Farias José Costa Júnior Mário Maestri Michael Löwy Alexandre de Lima Castro Tranjan Gabriel Cohn Milton Pinheiro Vladimir Safatle Antonio Martins Dênis de Moraes Tarso Genro João Carlos Salles Bruno Fabricio Alcebino da Silva Alexandre de Freitas Barbosa Luis Felipe Miguel Gerson Almeida Leda Maria Paulani Michel Goulart da Silva José Luís Fiori Luiz Carlos Bresser-Pereira Eleutério F. S. Prado Leonardo Boff Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Daniel Costa Berenice Bento Ronaldo Tadeu de Souza Lucas Fiaschetti Estevez Plínio de Arruda Sampaio Jr. Fernão Pessoa Ramos Francisco Fernandes Ladeira Afrânio Catani Leonardo Avritzer Eugênio Trivinho Paulo Fernandes Silveira Flávio Aguiar Walnice Nogueira Galvão Heraldo Campos João Carlos Loebens Benicio Viero Schmidt Luiz Renato Martins

NOVAS PUBLICAÇÕES