Por JOÃO LANARI BO*
Comentário sobre o filme dirigido por Natasha Merkulova e Aleksey Chupov
O capitão soviético, produção russa de 2021 dirigida pelo casal Natasha Merkulova e Aleksey Chupov, é o tipo de filme que opera naquilo que Freud chamou de “retorno do recalcado”: um mecanismo psíquico por meio do qual conteúdos que foram expulsos da consciência retornam, de maneira distorcida ou deformada – sonhos, atos falhos, fantasias – graças à negociação entre a instância psíquica repressora e as representações reprimidas.
O cinema, afinal de contas também é um mecanismo psíquico, expõe conteúdos traumáticos da história soviética, os expurgos promovidos por Stálin entre 1937 e 38, e traz à tona o recalque que jazia adormecido no inconsciente dessa nação formidável, mas fadada a extremos, a Rússia. O filme se inscreve no conjunto de representações da União Soviética no cinema russo contemporâneo.
Estamos em 1938, Leningrado, atual São Petersburgo. Carrascos e torturadores são metrossexuais, usam uniformes vermelhos bem desenhados, praticam ginástica olímpica e sambo, a arte marcial russa. Nosso protagonista, Capitão Volkonogov (Yura Borisov) passa por uma crise de consciência detonada pelo suicídio de um colega, que se lançou pela janela, caindo a poucos metros por onde caminhava.
É o começo da jornada típica dos romances de Fiódor Dostoiévski, aliando no protagonista angústia e redenção, arrependimento e culpa. O capitão soviético descreve, em última análise, um processo de metanoia, ou seja: mudança do modelo mental do sujeito, transformação profunda que altera a consciência do mundo, seja expandindo-a ou limitando-a. Uma leitura religiosa – e não faltam leituras religiosas dos personagens de Fiódor Dostoiévski – diria que a metanoia do capitão é o processo pelo qual o arrependimento se converte em doutrina, no caso o cristianismo.
No plano real da matança desenfreada, esta é a calamidade das calamidades, que Fiódor Dostoiévski não viu, mas de certa maneira antecipou. Escrevendo em Diários de um escritor, salientou como característica do povo russo: “O que em particular me surpreende é a urgência, o ímpeto com que o homem russo se apressa às vezes a manifestar-se, em determinados momentos de sua vida ou da vida do povo, no que é bom ou no que é sórdido. Às vezes simplesmente ele não tem como se conter”.
O Grande Expurgo, como é conhecido o terror que paira na atmosfera do filme, foi um extermínio em massa organizado de forma burocrática a partir da ordem número 00447 aprovada pelo Politburo, comitê central do Partido Comunista. Em 31 de julho de 1937, iniciou-se a perseguição e o aniquilamento de membros de comunidades religiosas, opositores dos bolcheviques, cossacos, kulaks (donos de propriedades rurais) e suspeitos de espionagem internacional.
Até agosto de 1938, quando foi suspenso o frenesi assassino, estima-se em 800 mil pessoas assassinadas a partir de confissões obtidas sob tortura e julgamentos sumários, mais centenas de milhares deportados para os campos do Gulag, onde muitos morreram.
Não se sabe o número exato das vítimas diretas e indiretas do expurgo: a cineasta Natasha Merkulova fala em dois milhões, a Wikipedia menciona arquivos soviéticos da NKVD – a polícia secreta, depois nomeada KGB e atualmente FSB – para informar que 1.548.366 pessoas foram detidas no período, das quais 681.692 foram executadas, média de 1.000 execuções por dia. A precisão estatística não altera muito o absurdo do que ocorreu.
Diante de tudo isso, Volkonogov foge, à paisana, é preso com alguns sem-teto e forçado a cavar a sepultura de antigos colegas do esquadrão: a paranoia dos expurgadores muitas vezes virava contra as próprias vísceras, os agentes do extermínio. Seu parceiro, Veretennikov (Nikita Kukushkin), volta à superfície, depois de enterrado, para arrancar as vísceras do capitão e exigir que ele obtenha o perdão de pelo menos um entre os assassinados, para alcançar, enfim, a redenção.
Esta é a saga metafísica de O capitão soviético: um a um, o capitão visita familiares das vítimas em busca da ilusória absolvição. Seu perseguidor é o Major Golovnya (Timofey Tribuntsev), obstinado e portador de doença pulmonar incurável. A busca do perdão, entretanto, se depara com fracasso atrás de fracasso: alguns são apparatchiks do Partido convencidos da culpa dos seus familiares, outros carregam o ódio pelo luto injusto, outros enlouqueceram. Na chave religiosa, o capitão parece confinado a um eterno purgatório.
Se é um mecanismo psíquico capaz de revisitar tamanha tragédia, o cinema não foi, infelizmente, capaz de assegurar a distribuição de O capitão soviético ao público russo. A atual invasão russa da Ucrânia aguçou as sensibilidades do governo e a tensão para temas históricos difíceis: os produtores optaram por não distribuir o filme no mercado interno, mesmo tendo o Ministério da Cultura russo entre os financiadores, por temor de gerar controvérsias perigosas, no estilo de questões patrióticas e nacionalistas.
Como disse Aleksey Chupov, um dos realizadores, ainda hoje muitas pessoas têm uma opinião positiva sobre Stálin: para elas, faz parte do passado e ajuda-as a continuar a viver o presente.
*João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Cinema para russos, cinema para soviéticos (Bazar do Tempo). [https://amzn.to/45rHa9F]
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA