Lênin leitor de Marx

Edvard Munch, Melancolia III, 1902
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Por MARCOS AURÉLIO DA SILVA*

Apresentação da edição brasileira do livro de Gianni Fresu

Lênin leitor de Marx, obra que Gianni Fresu publicou na Itália como resultado dos seus estudos de doutorado realizados na Universidade de Urbino, e que agora chega ao leitor brasileiro, representa um ponto alto da tentativa de retomada da cultura marxista no Velho Continente, ela que sofreu forte abalo após a derrota do socialismo no Leste. E ponto alto por pelo menos dois motivos.

Primeiro porque Gianni Fresu, já autor de não menos que seis livros sobre diversos temas que tocam à história do movimento operário italiano, fez parte ele mesmo da resistência a este funesto processo, que na terra de Antonio Gramsci se materializou na desagregação do Partido Comunista Italiano. Com efeito, o autor integrou, logo após a débâcle do poderoso instrumento de luta que souberam construir os trabalhadores italianos, o movimento que irá dar lugar à Refundação Comunista, tendo ali permanecido por cerca de duas décadas com intenso trabalho na área de formação, ocupando a Secretaria Regional da Sardenha ‒ a terra natal de Gramsci e do próprio Fresu ‒ e como membro do Comitê Político Nacional.

O segundo diz respeito ao ambiente político-intelectual que cercou a própria confecção da tese depois tornada livro. Urbino, cidade partigiana, como tantas outras que organizaram a luta de guerrilha contra a ocupação nazista ‒ responsável pela libertação das regiões centro-norte e norte da Itália, onde os aliados chegaram depois de já confirmada a vitória das brigadas partigianas, com decisiva participação das forças comunistas ‒, foi ela mesma um dos núcleos a partir do qual o velho PCI logrou seguidas experiências administrativas após a II Guerra Mundial e, não por acaso, importante centro universitário de tradição hegeliano-marxista. Com efeito, em Urbino ensinaram e pesquisaram importantes nomes dedicados ao estudo de Hegel e da dialética, como Livio Sichirollo e Domenico Losurdo, o último nada menos que o supervisor da tese que deu lugar ao livro.

De fato, não haveria melhor ponto de partida senão este para preparar um estudo em torno do pensamento de Vladímir Ilitch Lênin, o “maior teórico da filosofia da práxis”, como o disse Antonio Gramsci. Um pensamento que fora fundamentalmente elaborado como exercício de oposição política às deletérias formulações da II Internacional, que se deixara distanciar dos fundamentos hegelianos do marxismo.

E é este o tema do longo primeiro capítulo, que percorre com profundidade o debate acerca das fragilidades e revisões operadas por figuras como Wilhem Liebknecht, Eduard Bernstein e Karl Kautsky. É ilustrativa, por exemplo, a recuperação das críticas de Friedrich Engels ao primeiro destes personagens, persuadido “da ignorância e da petulância de querer liquidar alguém como Hegel”, associando-o ao Estado “régio-prussiano”, e de querer dar a entender ao público que assim pensava Engels.

Aliás, é o mesmo Wilhem Liebknecht que irá ainda distorcer as formulações do parceiro de Marx acerca do novo valor do trabalho de propaganda e do trabalho parlamentar, escritas como prefácio à obra As Luta de Classe na França, desejando ele fazer crer que Friedrich Engels havia proclamado o fim da era das revoluções, quando se tratava de pôr em questão “a ideia de um assalto insurrecional não preparado”.

Não por acaso, desta distorção partirá a Eduard Bernstein, que também desferindo ataques à dialética hegeliana ‒ “armadilha que impediria qualquer entendimento coerente da realidade” ‒, irá transformar a luta por reformas sociais de meio em objetivo final da socialdemocracia. Seria como dizer que o socialismo, mais que produto de um “salto qualitativo” ‒ como aparece nas formulações que Marx e Engels souberam desenvolver a partir da leitura que fez Hegel da evolução histórica[i] ‒, fosse não mais que o singelo resultado de uma adaptação, um aperfeiçoamento do capitalismo.

Para Eduard Bernstein, uma vez alcançadas diferentes melhorias, no exemplo do “aperfeiçoamento do sistema de crédito”, do “nascimento das organizações empresariais”, da “revolução do sistema de transportes, comunicações e informações”, e ainda da “consolidação das classes médias” e da “melhoria das condições econômicas do proletariado”, ter-se-ia chegado a uma etapa em que estariam superadas as “contradições mais agudas” do capitalismo, tornando-se com isso desatualizada a ideia de revolução.

Como destacou Gianni Fresu, retomando a crítica que Rosa Luxemburg endereçou a Bernstein, que para isto voltou-se à luminosa ideia das contradições entre forças produtivas e relações de produção presentes no famoso prefácio de Marx,[ii] ou “o revisionismo tem razão a propósito do desenvolvimento capitalista, e portanto a transformação socialista da sociedade não é mais do que uma utopia, ou o socialismo não é uma utopia, mas, nesse caso, a teoria dos meios de adaptação não pode sustentar-se”.

Estamos aqui visivelmente diante dos efeitos que a influência do positivismo e do darwinismo deixaram nas elaborações marxistas das primeiras décadas do século passado. E é assim que não por acaso Kautsky, com uma formação fortemente marcada pelas influências do livro de Darwin, após diversos enfrentamentos com as simplificações de Bernstein, irá ele mesmo figurar como o campeão do revisionismo, responsável pelas viradas mais trágicas do movimento socialista.

Revelava com isto, assinala Gianni Fresu, não ter “o menor conhecimento da filosofia de Hegel”, entregando-se a uma ideia do marxismo como concepção “absoluta da história”, onde economia e história aparecem em uma relação sem qualquer contradição.[iii] Não assusta, pois, que a crítica de Karl Kautsky à justificação do colonialismo a que se entregava Eduard Bernstein ‒ esmerado na defesa de um equilíbrio entre as potências para sustentar a penetração da Alemanha na China ‒, tenha depois dado lugar à defesa dos créditos de guerra para a intervenção germânica na I Guerra Mundial, e isto com argumentos que não disfarçavam o chauvinismo da época: “A socialdemocracia pode ser um instrumento de paz, mas não um meio contra a guerra”.

Compreende-se: refém de uma ideia absoluta da história, sua crítica ao imperialismo não ia além de questões morais, ignorando até mesmo que o novo colonialismo fundava-se já nas exportações de capitais, não mais de mercadorias. Aliás, é também a partir desta equívoca leitura que Karl Kautsky irá apegar-se à revisionista tese do ultraimperialismo, segundo a qual a dominação internacional era apenas uma questão de poder, não uma questão econômica, sendo a guerra obra do capital bancário, mas não do capital industrial, elemento a partir do qual se poderia forjar uma etapa de desenvolvimento pacífico e democrático.

E é assim que se chega à exaltação feita por Karl Kautsky do sistema representativo parlamentar, com a qual se opunha à “greve de massa” teorizada por Rosa Luxemburg ‒ alargada no tempo, podendo envolver vários anos e diferentes formas de luta, da greve geral ou das barricadas de rua às pacíficas lutas salariais ‒, para ele de importância apenas complementar.

Enquanto a socialdemocracia degenera no positivismo, revelando o quanto o marxismo estava carente de formulações teóricas no início do século XX, Vladímir Ilitch Lênin desenvolve-se como homem de ação política e elaboração teórica. Na contramão das leituras que tentam reduzir seus aportes aos Cadernos Filosóficos, no mais das vezes destinadas a alvejar o marxismo-leninismo, Gianni Fresu, partindo dos estudos de Luciano Gruppi, nos faz ver que as concepções filosóficas de Lênin devem ser apreendidas “no conjunto de sua obra”, pois “não emergem apenas dos escritos eminentemente filosóficos, mas também dos escritos políticos”, onde ganha importância uma rigorosa “dialética da relação sujeito-objeto, determinada pela intervenção consciente do sujeito no processo objetivo”.

De fato, já a muito estudada obra sobre o imperialismo revela esta dimensão do pensamento filosófico de Vladímir Ilitch Lênin. Ela representa uma ruptura completa com o fatalismo mecanicista ‒ o mero resultado do desenvolvimento natural das forças produtivas ‒ e sua total ignorância da dialética hegeliana, na medida em que corresponde à compreensão objetiva da atualidade da revolução. E é aqui, destaca Gianni Fresu, que se deve notar a superioridade de Lênin diante de Kautsky, refém de formulações absolutamente unilaterais e antidialéticas.

Mas é também desta dialética que emerge outro ponto essencial do livro que o leitor tem em mãos, ele mesmo de enorme contribuição para a crítica do revisionismo que hoje continua a ameaçar a vitalidade do pensamento marxista. Trata-se da teoria da hegemonia e da relação entre Lênin e Gramsci, frequentemente negada pelas leituras liberais do comunista sardo. Já Valentino Gerratana agregara ao texto da edição crítica dos Cadernos do Cárcere muitas indicações acerca desta relação, que só uma leitura de Gramsci distanciada dos Cadernos pode querer negar.

De fato, Gramsci é explícito em suas referências “ao maior teórico da filosofia da práxis”, que “contemporaneamente a Croce”, revalorizou, na contramão das “diversas tendências economicistas”, “a frente de luta cultural”, construindo, assim, “a doutrina da hegemonia como complemento da teoria do Estado força e como forma atual da doutrina da revolução permanente que vigorou nos idos de 1848”.[iv] Ao fim e ao cabo, trata-se de entender o econômico como uma esfera que só em última instância labora como “a mola mestra da história”, segundo alertou o mesmo Gramsci fazendo notar uma observação de Engels, não sem logo insistir que ela se liga diretamente a uma passagem do já citado prefácio de Marx, precisamente aquela em que se assinala o “terreno das ideologias” como o lócus a partir do qual os homens “tornam-se conscientes dos conflitos que existem no mundo econômico” [v]:

“A transformação da base econômica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais alterações, é necessário sempre distinguir entre a alteração material – que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa – das condições econômicas de produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito, levando-os às suas últimas consequências.”[vi]

E para demonstrar esta relação entre Gramsci e Lênin, a toda prova fundada em uma leitura de Marx adequada ao tempo, mas também às necessárias diferenciações espaciais, é que Gianni Fresu recupera o relatório do grande revolucionário russo sobre o VII Congresso do Partido Comunista da Rússia, realizado em março de 1918[vii]. Ele destaca que já ali é possível encontrar o primeiro esboço da categoria gramsciana de hegemonia e de todo o problema da diferença entre Ocidente e Oriente que é sua premissa.

Na verdade, explica Fresu, Vladímir Ilitch Lênin, dando curso ao marxismo que lhe distingue ‒ sempre apoiado no “contexto histórico territorial” das formações sociais concretas ‒, apreende este problema a partir da própria realidade da Rússia, fazendo ver a importância da questão camponesa seja em 1905, em 1917 ou ainda em 1921, quando formula a tática da aliança com a pequena burguesia agrária para viabilizar a Nova Política Econômica (NEP). Em todos os casos, trata-se de compreender e valorizar o papel dos camponeses na revolução socialista, superando o mecânico evolucionismo da socialdemocracia, que limitava este papel à etapa democrático-burguesa.

E está aqui uma primeira ruptura entre Vladímir Ilitch Lênin e Rosa Luxemburg, que curiosamente também se manifestou na crítica ao que esta chamou o “ultracentralismo” do partido bolchevique – uma avaliação, conclui Gianni Fresu, que abstraia a adaptação da nova forma organizativa às próprias condições do Estado moderno e da moderna empresa capitalista, com o seu amplo desenvolvimento dos aparatos administrativos e burocráticos.

De fato, seja na questão organizativa, seja quanto às alianças de classe, estamos diante de um Lênin para quem a filosofia hegeliana e a ideia de “superação” dialética que lhe demarca – uma superação-conservação, uma Aufhebung –, aparece desde muito cedo e permanece viva por todo o tempo de sua atividade política. E isto em um momento em que toda a iniciativa teórica cabia aos revisionistas.

Aliás, se recordamos as tentativas de liquidação dos aportes teóricos do grande bolchevique, não raro apresentado, segundo se refere Fresu, como um doutrinário, ou até mesmo o “demônio do século XX”, não é questão menor realçar o salto que justamente os estudos hegelianos conheceram com os aprofundamentos dos textos do pensador alemão aos quais se dedicou Vladímir Ilitch Lênin nos anos da I Guerra Mundial. Trata-se, conforme demonstrou o rigoroso estudo de Domenico Losurdo, da melhor compreensão do problema da distinção hegeliana entre “o mundo das aparências” (Erscheinungswelt), ou seja, da “imediatez empírica” ‒ expressão das “contratendências reacionárias” ‒ e a realidade em sentido estratégico, “sentido forte” (Wirklichkeit), expressão da relação entre o real e o racional, vale dizer, das “exigências mais profundas do espírito do tempo”[viii]. Uma distinção claramente estranha ao marxismo da II Internacional.

Como se pode ver são muitas as razões para que o militante e/ou o estudioso brasileiro da área das ciências políticas se felicite pela publicação deste importante estudo de Gianni Fresu. Quando mais não seja porque a própria realidade nacional, tendo conhecido um ciclo de governos populares que agora foi dramaticamente derrotado, irá certamente exigir uma avaliação histórico-teórica que terá muito a ganhar se souber voltar-se ‒ sempre à luz de uma rigorosa “tradução”, uma reflexão que não se deixe enredar nos “abstracionismos mecanicistas”[ix] ‒ aos debates que definiram a história do marxismo na passagem da II para a III Internacional ‒ e ao papel que aí cumpriu “o maior teórico da filosofia da práxis”.

*Marcos Aurélio da Silva é professor de geografia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Referência


Gianni Fresu. Lênin leitor de Marx. Dialética e determinismo na história do movimento operário. Tradução: Rita Coitinho. São Paulo, Anita Garibaldi, 2016, 272 págs. [https://amzn.to/48GSp0u]

Notas


[i] Losurdo, D. Hegel e la liberta dei moderni. Napoli: La Scuola di Pitagora, 2011, pp. 294-5.

[ii] Marx, K. Contribuição à crítica da economia política. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983, p. 24.

[iii] Curioso notar que para Gramsci o marxismo deve ser tomado como um “historicismo absoluto”. Todavia, já uma “nova síntese”, uma “ortodoxia”, trata-se aqui de uma herança do hegelianismo, o elemento “mais importante” da cultura filosófica que Marx “incorporou”. Gramsci, A. Quaderni del Carcere, vol 2, Torino: Einaudi, 1977, pp. 1434 e segs.

[iv] Gramsci, op. cit. p. 1235. Na nota que o editor V. Gerratana acresce a esta passagem, extraída do Caderno 10, são citados ainda os Cadernos 4, 7 e uma carta à cunhada Tania de maio de 1932.

[v] Gramsci, op. cit., vol. 3, Caderno 13, p. 1592.

[vi]  Marx, op. cit. p. 25.

[vii] Lênin, V. I. VII Congresso Extraordinário do PCR (b). In: Obras Escolhidas. Moscou: Ed. Progresso; Lisboa: Ed. “Avante!”, 1981, pp. 495-512.

[viii] Losurdo, op. cit., pp. 94 e segs.

[ix] Gramsci, op. cit., Caderno 11, p. 1468 e segs.


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