Por EUGÊNIO BUCCI*
As massas viciadas no gozo do olhar não pensam, não gostam de pensar, apenas adoram seus bezerros de ouro digitais e idolatram seus tiranos
A credibilidade da fotografia entrou numa espécie de fadiga do material. Não há mais como não duvidar da autoridade daquela imagem realista que se abria diante dos nossos olhos como se fosse a prova definitiva de um acontecimento. Uma foto, muitas vezes, é um embuste.
Tempos atrás, quando as câmeras ainda se valiam de filmes para registrar um instante, o negativo era reverenciado como se fosse a verdade em pessoa. Acreditava-se que naquele pequeno rolo de triacetato de celulose estavam impressos fragmentos genuínos da história, um documento tão confiável quanto um caco de cerâmica de civilizações extintas, um manuscrito autêntico de um escritor célebre, um dente de dinossauro. Hoje, a conversa mudou. Estão aí as evidências escarradas de que as fotografias mentem.
Hoje, os processos químicos que “revelavam” o filme num ritual de alquimia sob luz vermelha deram lugar aos arquivos de computador que, em um segundo, oferecem visões de pura epifania escópica: um rosto de mulher com olhos de ressaca, os destroços de um hospital bombardeado em Gaza, uma galáxia distante que lembra um carro alegórico na Marquês de Sapucaí. São alumbramentos arrebatadores, mas muitas vezes são balela. O Papa Francisco, um tanto garboso, desfila com um impermeável branco típico de um bilionário passeando nos Alpes: falso. Donald Trump algemado, de cara enfezada: fake.
Os vídeos também aprenderam a mentir. Desabridamente. Na semana passada, a OpenAI, empresa dedicada a sintetizar, promover e difundir ferramentas de Inteligência Artificial, anunciou seu novo brinquedo, chamado Sora. A partir de comandos de texto (os tais prompts), a máquina cria filmetes exatos, fortes, convincentes, em altíssima resolução – e fajutos. As produções visuais do Sora não refletem realidade nenhuma. Aliás, sequer prometem refletir – são apenas peças de ficção que podem ser confeccionadas sem o auxílio de seres humanos.
Alguém vai dizer, então, que vivemos um paradoxo: nunca antes na história deste país, e de todos os outros, tantas imagens circularam por tantos meios simultâneos para aplacar a tanta avidez de tantas plateias de uma vez só; ao mesmo tempo, nunca esteve tão em xeque a confiabilidade da invenção popularizada por Louis Daguerre e seu daguerreótipo de placas de prata. Os nudes e reels enchem o ar de euforia consumista, mas a explosão das falsificações fotográficas deveria nos fazer pensar. O nosso problema é que pouca gente corre o risco de pensar.
Régis Debray escreveu certa vez que somos a primeira civilização autorizada a acreditar em seus olhos. Acontece que a esperança dessa civilização depende de sua capacidade de duvidar das telas eletrônicas. Sim, é paradoxal. O conforto de crer cegamente nos próprios olhos equivale a uma sentença de morte da civilização. A tragédia política do nosso tempo tem a ver com isso: massas viciadas no gozo do olhar não pensam, não gostam de pensar, apenas adoram seus bezerros de ouro digitais e idolatram seus tiranos, ridículos tiranos.
O mais interessante de tudo é que, já no tempo em que tomávamos os retratos como a expressão legítima da verdade objetiva (a lente, afinal, sempre foi chamada de “objetiva”), as coisas não eram bem assim. Uma foto não era somente o decalque do real. Acima disso, era uma opinião sobre o real, na melhor das hipóteses.
A câmera – que hoje está embutida nos chips minúsculos de qualquer celular barato – descende de um dispositivo ótico que ajudava os pintores do século XVII a serem mais verossímeis em seus traços. Era a “câmara escura”, uma ferramenta a serviço de um ponto de vista. A “câmara escura” tinha a forma de caixote avantajado, no qual a luz só entrava por um pequeno orifício. O exíguo filete de luz projetava, na parede oposta a cena que se passava do lado de fora. Sozinho dentro do caixote, o artista riscava sobre o que via projetado e, desse modo, reproduzia com precisão as linhas da natureza.
Com o tempo, esse caixote passou por adaptações diversas, diminuiu de tamanho e incorporou lentes. Quando finalmente a fotografia foi inventada, o pintor foi substituído por um mecanismo artificial feito de materiais fotossensíveis. Depois disso, a revolução digital substituiu o filme químico por chips. Então, no século XXI, a Inteligência artificial substituiu o fotógrafo pelos prompts e aposentou a cena externa, dispensou os fatos.
Mesmo assim, o poder sedutor da fotografia segue intacto. Quem liga para os fatos? Somos a civilização da falsificação da imagem que interpretava os fatos. Um milhão de fotos vale mais que uma palavra de honra. E como vende. E como funciona.
Platão dizia que o pensamento só é pensamento quando consegue ir além dos sentidos, como a visão ou a audição. Segundo ele, ninguém alcançaria a verdade pelos olhos, mas pela razão. Nisso consistia a passagem necessária da doxa (a mera impressão pessoal) para a episteme (o conhecimento). O velho filósofo não estava certo em tudo que escreveu, mas, nesse ponto, merece sem lembrado – ainda que em vão.
*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica). [https://amzn.to/3SytDKl]
Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.
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