Por AFRÂNIO CATANI*
Comentário sobre o novo romance de Ivan Angelo
1.
Durante muitos anos escrevi resenhas e artigos aos montes, aqui e ali, em vários jornais e revistas de São Paulo. Mas onde mais publiquei foi no “Caderno de Programas e Leituras”, depois “Caderno de Sábado”, do extinto Jornal da Tarde, que pertencia ao grupo de O Estado de S. Paulo. Foram mais de nove dezenas de matérias, encomendadas de início por Edison Paes de Mello, algumas vezes por Laerte Fernandes e, em seguida, por Thereza Ribeiro e Kléber Ferreira de Almeida, que era o editor.
Fazíamos reuniões às terças-feiras, no final da tarde-começo da noite, com Kléber, Thereza, Sérgio Amad Costa, Luiz Carlos Lisboa, Pedro Medeiros e eu – em duas ou três ocasiões Marcos Faerman apareceu por lá. Às vezes Ivan Angelo participava, pois geralmente se encontrava cuidando de suas obrigações: foi editor, editor-executivo e secretário de redação do Jornal da Tarde.
Isso durou, mais ou menos, de 1984 ou 1985 até o início dos anos 1990, quando o Jornal da Tarde iniciou seu lento processo de fenecimento. Nessas reuniões de pauta tudo se discutia: futuros lançamentos editoriais, o que os concorrentes já tinham noticiado, os “furos” que déramos e as “barrigas” que aconteciam, quem iria escrever sobre o que… Saímos com montões laudas e de provas editorias debaixo do braço, de livros ainda não lançados mas que deveriam entrar nas edições de sábado – o fechamento da página de livros ocorria às quintas-feiras, numa grande correria.
Em todo esse tempo, nunca vi Ivan Angelo perder a calma ou subir o tom de voz. Nunca, ao ser editado, sofri cortes nas matérias ou qualquer forma de censura. Mineiro de Barbacena, com seu jeito bonachão, ele contornava com leveza os problemas que iam surgindo.
2.
“Somos o que somos, acrescentados de culpas” (Fernando Bandeira de Mello Aranha).
Ivan Angelo não escreve de afogadilho, publicando um livro atrás do outro. Sua escrita é constante, metódica, elaborada com vagar. Trabalhou décadas no Jornal da Tarde, escreveu desde que tinha 20 anos em jornais de Belo Horizonte, colaborou na Playboy e, de 1999 a 2018, foi cronista da Veja São Paulo. Recebeu vários prêmios, inclusive dois Jabutis, numa época em que os agraciados não viam a cor do dinheiro, além de ser premiado pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCN). Dentre sua produção, merecem destaque os romances A festa (1976) e Pode me beijar se quiser (1997), o livro de contos A face horrível (1986), a novela Amor? (1995). Sua obra já foi traduzida para o inglês, o francês e o alemão e compreende, ainda, crônicas, ensaios e livros infantis.
Ivan Angelo voltou ao romance muito tempo depois. Começou a escrever Vida ao vivo há uns sete ou oito anos, desanimou, parou e, durante a pandemia, retomou o texto. O livro tem início na noite de 24 de novembro de 2021. Os espectadores da Rede Nacional de Televisão (RNT), o maior canal do país, estão diante de suas tvs, celulares e computadores ligados para assistirem ao primeiro capítulo da novela das nove, Frutos Proibidos. No lugar de mais um produto do departamento de dramaturgia da emissora surge “um homem de setenta e sete anos, quase gordo, branco, pálido, de roupão branco sobre camisa social azul muito clara, fular bordô derramando-se da nuca para o peito, e a câmera recua lentamente até mostrá-lo sentado numa grande poltrona de couro preto. A luz intensa de dois refletores bate diretamente em cima dele, devasta sua pele seca, fina, sem refletir: é engolido por ela. Nenhuma música, apenas o som da respiração dele, difícil. Percebe-se o ar atravessando obstáculos através da laringe, traqueia, brônquios, alvéolos, como se pedaços de trapos soltos mal tapassem as entradas e bolhas pegajosas obstruíssem as saídas…”
Esse senhor é Fernando Bandeira de Mello Aranha, personagem principal do romance, peso-pesado da imprensa, que lidera 57 empresas. É o dono da emissora. Bastante debilitado, o homem fica alguns segundos parados, numa postura estudada, de ator, e começa a falar num tom baixo, com respiração meio ofegante, pedindo desculpas por adiar a novela e o prazer das pessoas que esperavam assisti-la: “Não vão sair perdendo, o que vão ver é inédito. Prometo emoções”. Diz que vai contar uma história que ainda não terminou. Isso implica em revelar os podres de sua família e da política, de celebridades e de figuras poderosas, além de algumas das negociatas de que participou. Grande sucesso, protestos aos montes, explosão de audiência!
O magnata, que é chamado por todos de Dr. Fernando, toma gosto pela sua performance e durante 18 noites seguidas aparece ao vivo contando histórias picantes e inconvenientes.
Mas, quais são os motivos desse conjunto de confissões, aparentemente incompreensível aos espectadores? O principal deles logo é revelado, ocorrido há dezessete anos, onze meses e treze dias: ele deseja, de forma obcecada, descobrir o paradeiro de uma mulher desconhecida que se encontra em uma antiga fotografia, “na esperança de que ela seja uma espécie de anjo redentor”. Oferece uma quantia milionária em dinheiro para ela como recompensa, ou seja, 500 mil dólares. Faz isso perante 30 milhões de pessoas, que o acompanham com curiosidade e perplexidade. Oferece, também a ela, casamento e uma valiosa aliança.
O Dr. Fernando resolveu, há quase 18 anos, se isolar completamente em sua fortaleza, um grande edifício na Avenida São Luiz, em São Paulo. Declara que “é a foto da última pessoa com a qual troquei um olhar na rua.” Para isso, mobiliza todo o seu aparato midiático, além de detetives e outros assessores, à procura da misteriosa personagem. Na imagem ele aparece saindo do carro, acompanhado do seu motorista e escoltado pelo segurança, enquanto a jovem passa por ele com uma postura enigmática, como se quisesse dirigir-lhe a palavra.
Além de Fernando Bandeira de Mello Aranha e da misteriosa mulher, há outra personagem decisiva: a covid-19. Ele foi infectado pelo vírus, mas sobreviveu, embora com sequelas, num momento em que ainda não havia vacinas disponíveis. O milionário acredita que sua contaminação tenha sido deliberada, numa tentativa de assassiná-lo, pois há quase vinte anos se isolou em seu enorme triplex, tendo reduzido seu ciclo social a poucas pessoas.
O Dr Fernando é um homem da elite, mas da elite ilustrada, que lê e elabora seus projetos. Descende de ricos e sempre foi rico, vem da aristocracia rural. No limite, pertence ao segmento daqueles que “mandam”. Do estúdio instalado em sua casa faz os seus monólogos para o programa “Vida ao vivo”. Suas diatribes são proferidas em meio a menções e citações de poetas, romancistas, pensadores, humoristas, cineastas, dramaturgos, em que o bom humor dá o tom. Apenas por curiosidade, listei dezenas de referências encontradas no texto aparecendo, dentre outros, Pedro Nava, Beckett, Machado de Assis, Millôr Fernandes, Fernando Pessoa, Sá de Miranda, Shakespeare, Drummond, Guimarães Rosa, Murilo Mendes, Brecht, Italo Calvino, Voltaire, Marinetti, Pascal, Kafka, Nietzsche, Bergson, Octavio Paz, Sartre, Valèry, Rilke, Camus, João Cabral de Melo Neto, Álvaro de Campos, Dostoiévski, Paul Éluard, Dante, Pascal, Joseph Conrad, citações bíblicas com frases de profetas, Bernard Shaw, João Antônio, Paulo Francis, Proust, Clarice Lispector, Darcy Ribeiro, D. H. Lawrence, Eugene O’ Neill, Saroyan, Wilhelm Reich, Agatha Christie, Timothy Leary, além de Rita Lee, do encenador Bob Wilson, dos cineastas John Ford e Orson Welles, dos economistas Belluzzo, Bresser Pereira, Maria da Conceição Tavares, Jacob Gorender, sem esquecer de canções de Dalva de Oliveira, Noel Rosa, Chico Buarque, Luiz Gonzaga…
Não tenho dúvida que o bom humor do personagem principal dessa ficção origina-se do próprio Ivan, leitor profícuo, assim como as menções aos seus prediletos literatos brasileiros, ingleses e franceses. Isso sem esquecer que ele é um bom conhecedor da Bíblia, citada em detalhe pelo Dr. Fernando, ao debater com o público que critica suas tomadas de posição em vários aspectos. Em suma, Ivan Angelo empresta suas memórias ao protagonista, em especial as vividas na capital paulista dos anos 1960, 1970, 1980.
Ivan Angelo, mais uma vez, se vale do fragmento para a composição de seu romance. Fala de algo que vivenciou em seu cotidiano, através do artifício de dar a palavra a um profissional da imprensa (será que foi o jornalista Ivan que decidiu enfrentar o Dr. Fernando Marinho, ops, o Dr, Fernando Bandeira de Mello Aranha?) que, ao protestar contra as falas do magnata, recorda que os jornais do grupo Mello Aranha eram dóceis para com o governo durante a ditadura militar, não precisando passar pelo crivo da censura, enquanto em O Estado de S. Paulo e no Jornal da Tarde os jornalistas precisavam escrever “…com o censor sentado na mesa ao lado. Resistiu quem quis e como quis. Vocês não quiseram”.
E acrescenta: “O espaço das matérias que o censor cortava deixávamos em branco, para o leitor perceber que houve corte. Proibiram o espaço em branco, Publicamos trechos de Os lusíadas, de Camões, no lugar. No Jornal da Tarde, filhote da casa, publicávamos receitas culinárias. Resistiram até o fim da censura prévia, cada um do seu jeito, o Estadão, JT, Pasquim, Opinião, Veja, O São Paulo. Ela só abrandou em 1978, com o fim do AI-5, que lhe dava sustentação ‘jurídica’. Como prêmio pelo bom comportamento, os veículos lenientes como os dele recebiam toda a parte gorda da publicidade do governo federal, até o fim do regime. Mentira?”
Mello Aranha responde com blagues e ironias e cita fragmentos de seus autores prediletos, entre goles generosos no vinho de Sauternes da melhor safra, “…produzido no Château d’Yquem (…) que custa de dez a treze mil reais nas lojas de São Paulo. Cada brinde custa um salário mínimo…”
A trama se desenvolve com outro personagem decisivo entrando em cena, há um aparente roubo, mortes, escândalos familiares, tortura e relações com o regime militar, garimpo ilegal, milícias, tudo vai se costurando. Na visão do empresário, “milícia é método”, pois sempre houve milícias no Brasil, desde a colônia, “com outros nomes, outra função social, mas olha os métodos: são grupos armados, conquistam poder, tomam a lei nas mãos.” Em uma entrevista para a divulgação do livro, Ivan o entende como “um romance sobre a impunidade”, sendo a “violência estrutural” inerente ao país: “marcou sua história e ainda dá as cartas no presente.”
A visão que Mello Aranha tem do veículo que lhe ampliou a fortuna é bastante pragmática: “eu ganho a vida com imagens, mas aprendi a viver foi com as palavras. Eu li muito, leio muito”. Para ele, “a arte da escrita é areia na ampulheta, escorrendo… Eu prefiro falar, gravar. Preguiça. E isso aqui não é literatura, eu não pinto belezas com palavras. Os escritores compõem belas passagens, reescrever tudo – quem fala, não, quem fala joga no vento.”
Ao se deparar com o documento de duas páginas enviado por uma espectadora, o Dr. Fernando aproveita para comentar no programa que uma página sem parágrafo o deixa inquieto, duas o angustiam, três o irritam. “Se você olha para o lado durante a leitura, se bebe um gole de água, quando volta os olhos não sabe mais onde está, perdido. Proust. Proust você tem de ler com o dedo na linha, um gênio com birra de parágrafo. Pedro Nava é outro que tem birra de parágrafo, não fosse proustiano confesso (…) Salve o parágrafo, salve quem o inventou, salve os escribas que tiveram essa elegância para facilitar a leitura. Parágrafo é isso, é gentileza.”
Vida ao vivo é uma mescla de humor com toques de romance policial nos trópicos, em que realidade e ficção sobre um Brasil que ainda se encontra rascunhado, e mediado pela TV, nos surpreende a cada dia – e, quase sempre, de forma violenta. Ivan declarou que tem quatro livros inéditos, prontos, que espera lançar em breve. Se forem instigantes como essa vida ao vivo, que venham logo.
*Afrânio Catani é professor titular sênior aposentado da Faculdade de Educação da USP. Atualmente é professor visitante na Faculdade de Educação da UERJ, campus de Duque de Caxias.
Referência
Ivan Angelo. Vida ao vivo. São Paulo, Companhia das Letras, 2023, 294 págs. [https://amzn.to/49XcTCA]
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