Por JOSÉ SOCRÁTES*
Três procuradores abriram um processo criminal, forçaram a demissão do primeiro-ministro, deitaram abaixo o governo e acabaram com uma maioria absoluta no Parlamento
A história da eleição de domingo em Portugal pode ser contada rapidamente. Três procuradores abriram um processo criminal, forçaram a demissão do primeiro-ministro, deitaram abaixo o governo e acabaram com uma maioria absoluta no Parlamento. Três meses depois a direita ganha as eleições e prepara-se para formar governo. Um político com espírito descreveu o que se passou como uma variante do princípio de Tchekhov — “quando uma pistola é exibida no primeiro ato torna-se mais provável que ela dispare antes da peça acabar”. A arma disparou naquela noite e o Ministério Público ganhou as eleições.
Mas a arma não é de agora. A arma foi inicialmente mostrada em 2014 com o processo Marquês, com a detenção no aeroporto e com a prisão sem acusação. Nessa altura quiseram impedir uma candidatura à presidência e a vitória do Partido Socialista nas legislativas do ano a seguir. Conseguiram as duas, vigarizando a escolha do juiz e transformando o inquérito num jogo de cartas marcadas (não, não é um ponto de vista, é uma decisão judicial transitada em julgado).
Agora, dez anos depois, a arma volta a disparar para mudar o governo, colocar de novo a direita no poder e dar à extrema direita as chaves da governança. Há dez anos, o líder do extrema-direita era comentador do processo Marquês na televisão do Correio da Manhã. Agora tem 18% dos votos. O Ministério Público ganhou as eleições.
O Partido Socialista, entretanto, comportou-se como a vítima perfeita. Caminhou, cheio de compostura e de responsabilidade, para o cadafalso. Nada de contestação ou de protesto. É tudo normal e é tudo aceitável, ainda que ontem o partido tivesse maioria absoluta e que agora se veja, mercê de uma ação judicial, obrigado a disputar eleições no pior dos momentos possíveis, exatamente a meio do mandato.
Quanto ao Senhor Presidente da República, que há muito esperava uma oportunidade para fazer alguma coisa que se visse, decidiu aproveitar a ocasião para interromper a legislatura e terminar o mandato com a sua família política no poder. A excitação intriguista foi tão forte que nem esperou pelo dia das eleições para dizer o que pensava que deveria acontecer. E, no entanto, a noite eleitoral foi de profunda decepção. A vitória foi atribuída à extrema direita e o presidente, horror dos horrores, foi considerado um dos derrotados da noite. No final, foi o Ministério Público que ganhou as eleições.
O jornalismo esteve igual a si próprio. Parcial até ao fim. No dia de eleições ainda perguntavam às pessoas se não achavam que era tempo de mudar. Mas o que é absolutamente extraordinário é a sua capacidade de transformar em normal a situação mais incomum. A operação judicial desapareceu rapidamente das televisões e a política seguiu para eleições. Fechou-se um ciclo, diziam os jornalistas, pouco importando se esse ciclo se encerrou de forma legitima ou ilegítima. No final foi o Ministério Público quem ganhou as eleições. E sem escândalo, na medida em que só o jornalismo tem poder para criar escandalizados.
E, no entanto, bem-vistas as coisas, a operação não correu inteiramente bem. Apesar do esforço da política e do jornalismo para normalizar o que se passou, nem tudo foi perfeito. O costumeiro aplauso às buscas e às prisões não foi unânime como costumava ser e a famigerada proclamação de confiança na justiça também já não é o que era. Desta vez não houve juízas a escrever nas suas redes sociais que “Há dias perfeitos. Hihihihi”.
Pelo contrário, no jornalismo e na política apareceram uns quantos recalcitrantes. Até uma procuradora destemida resolveu escrever o que pensa, enfrentando o poder sindical que há muito domina a instituição e reivindicando o regresso à ordem constitucional. Sabe do que fala e sabe o que diz. A causa é simples: o prestígio da instituição não reside na defesa corporativa, mas na estrita defesa da legalidade democrática e no respeito das garantias constitucionais. Alguém disse que a pior face do estalinismo é a perseguição à dissidência — abra-se inquérito à desobediência. Há momentos em que os aparelhos se tornam absolutamente ridículos.
Sim, a campanha decorreu como queriam. Nada de debater as buscas por motivos fúteis ou as detenções abusivas. Nada de discutir os limites do poder estatal ou as garantias constitucionais. Nada de discutir a liberdade. Não houve tempo nesta campanha para discutir a liberdade. No final da noite de domingo ainda houve certo frenesi com a incerteza — quem ganhou exatamente? Talvez assim se compreenda melhor: este foi o dia em que o Ministério Público ganhou as eleições. Mas nem tudo lhes correu bem, pois não?
*José Sócrates foi primeiro-ministro de Portugal de 12 de março de 2005 a 21 de junho de 2011.
Publicado originalmente no portal ICL Notícias.
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