Intersecções inesperadas

Imagem: Antonio Friedemann
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Por MARIELLA PITTARI MERKEL*

O anarcocapitalismo que pretende extinguir o Banco Central Argentino não está distante da autonomia do Banco Central do Brasil

1.

Embora certas ideias político-econômicas pareçam estar em extremos opostos, na realidade, estão tão intimamente entrelaçadas que se tornam praticamente indiscerníveis. Enquanto Javier Milei, o primeiro presidente com formação econômica eleito na Argentina, propugna pela extinção do Estado para implantar sua quimera de Estado autofágico anarco-capitalista, o Brasil debate-se com elites desejosas em feudalizar espaços nos quais a discussão democrática é imprescindível.

Ambos possuem por objetivo amalgamar o domínio da técnica às decisões políticas, como se fosse possível conduzir a política sob a tônica de uma técnica neutra. No Brasil, a recente PEC 65/2023 propõe expandir a autonomia operacional do Banco Central a uma autonomia total de funcionamento, para além dos limites conferidos pela Lei Complementar 179/2021, na qual o presidente e diretores do Banco Central foram contemplados com o exercício de um mandato de quatro anos.

Na Argentina, após a forte desvalorização sofrida pelo peso, Javier Milei não descarta a reforma constitucional necessária à eliminação do Banco Central. No Brasil, imbuídos do interesse em servir aos interesses da dívida, propõe-se diminuir o Estado à esqualidez da dívida pública do país, menor do que a maioria dos países desenvolvidos e em desenvolvimento. É dizer, o Brasil gasta valores obscenos ao pagamento dos juros da dívida, sendo tal valor superado apenas por gastos com a Previdência. O consenso acerca da necessidade em reduzir juros para ampliar o investimento é disseminado, entretanto, o presidente do Banco Central prevalece sobre a mobilização nacional pela necessidade em rever os juros.

2.

O presente artigo se propõe em trazer ao cenário nacional os argumentos desenvolvidos por Clara Mattei em A ordem do capital. Na nota introdutória da edição brasileira da obra, acenou-se na direção que ora se concretiza com a PEC 65/2023, na qual o Presidente do Banco Central Roberto Campos Neto avaliza tornar a austeridade como programa permanente de governo, a prescindir de qual será a escolha das urnas. Em razão de tal discurso surgir encriptado na linguagem técnica de alteração da personalidade jurídica do Banco Central e de pormenores que parecem refletir pouco na política, a consolidação da autonomia operacional e de funcionamento do Banco Central invertem a equação de poderes que permite ao Executivo angariar alianças no Legislativo para definir as escolhas políticas mais relevantes do país. A gravidade de tal providência consiste em instalar o anarco-capitalismo travestido de democracia.

É a potencialização da austeridade, é a austeridade com esteroides desprovida do componente ideológico que o autoritarismo liberal de direita traz consigo. É permitir que economistas que desprezavam a democracia, pois exaltavam conteúdos libertários, tal qual James Buchanan e Milton Friedman, comandem dos seus túmulos as frágeis dinâmicas que esmagam os trabalhadores.

Em qual medida a política de juros impacta o trabalhador? Como bem indica a alocação do gasto público, existe uma relação de proporcionalidade direta invertida entre a taxa básica de juros definida pelos membros do Comitê de Política Monetária (COPOM) e todos os gastos sociais somados. Quanto maior a taxa básica de juros decidida por membros do Banco Central, menor será o montante destinado aos gastos sociais, pois os juros da dívida comprometem os demais gastos públicos. E se não bastasse o quão pernicioso comprometer o orçamento público com pagamento dos juros da dívida, a presente política cria um gravame ao futuro.

3.

O tão propalado futuro a que aludia Stefan Zweig não alcançará as gerações presentes ou futuras, pois a força produtiva do amanhã ainda carece do mínimo que permite a um país dispor de uma classe trabalhadora mobilizada. A escassez da expansão da despesa pública com os gastos sociais enfraquece a capacidade do proletariado em reivindicar direitos e entender as dinâmicas ensaiadas no discurso da técnica econômica.

A economia se sobrepõe ao discurso jurídico no uso da técnica, pois o direito foi assimilado como espaço de entendimento na sociedade civil, enquanto a economia ainda consiste em espaço reservado aos privilegiados que incursionam na “difícil” tarefa de traduzir as grandezas econométricas aos laicizados na disciplina. Enquanto a Constituição teve um papel chave em trazer o discurso jurídico para uma linguagem mais próxima da linguagem cotidiana, tal empreitada jamais foi contemplada pelos economistas, que preferem deter para si a tradução de termos técnicos à uma linguagem incompreensível.

A probabilidade de deparar-se com uma conversa de bar gravitando entre as decisões dos ministros do STF é significativamente maior daquela na qual se discute a taxa de juros do país, ainda que o preço da cerveja seja resultado expressivo dos juros que um país pratica. É dizer, inflação, taxa de desemprego e disponibilidade de crédito dependem dos juros, enquanto um argumento jurídico pode permanecer na esfera do abstrato sem que jamais afete diretamente a vida dos indivíduos debatendo o que Mendes ou Moraes pensam sobre um artigo da lei eleitoral. A economia é a via transversa de adentrar na política sem o mal-estar de revogar direitos.

E sob todos os disfarces meticulosamente engendrados pelos que decidem no país, o remédio amargo não precisa sequer ser enfrentado, pois é um dado. Dado que os juros no país são elevadíssimos e que os juros reais oscilam entre o primeiro e segundo lugar do globo, o gasto social que permite a emancipação do trabalhador não será enfrentado, pois encontra por limite algo previamente imposto. E assim, a austeridade, forjada sob o fascismo italiano e nas elites dos círculos britânicos, recebe uma carta de indenidade como orientação neutra e apolítica, a ser experimentada em países de modernidade tardia.

A expansão da autonomia do Banco Central não é medida apta a permitir uma independência do Banco Central para que não ceda aos caprichos das eventuais maiorias no poder. Ao contrário, torna a política que aspira atender as promessas das urnas reféns de um círculo não eleito e, portanto, antidemocrático, decidindo os destinos do país. A partir da escancarada ideologia libertária, o país passará a movimentar a máquina do Estado para pagamento de juros da dívida. Mesmo a ideia de contenção de gastos primários sob uma proposta de austeridade perde a importância, pois a austeridade é “acoplada” aos juros.

Se a arrecadação é um limite e os juros impedem seja de efetuar o gasto público de uma só vez, seja de fazer novas dívidas, a impagabilidade da dívida de juros astronômicos inibe que qualquer alternativa de redistribuição da riqueza seja cogitada. É imaginar o cenário da economia clássica que faz alusão à ideia de casa – uma vez que a etimologia da economia provém de oikos – se no âmbito doméstico gasta-se 50% de juros com dívidas e os juros tendem a aumentar, conclui-se que o principal da dívida jamais será pago e que a cada dia comprometer-se-á mais para fazer frente aos juros.

4.

Um Estado reduzido ao mínimo essencial, faz com que cada um aja por si e todos pelos bancos. Tal Estado é o estado anárquico de coisas, e por mais paradoxal que possa parecer, é tão anárquico-capitalista quanto o que propõe a extinção mesma do Banco Central. À diferença que, no Estado anarco-capitalista de Javier Milei, cada um age por si e a despesa pública não irá dedicada para fazer valer a lei do mais forte, enquanto, no Brasil, o mais forte, não satisfeito de sua condição, locupleta-se do público para concentrar em si mais poder, mais autoridade, com a violência do aparato estatal ao seu dispor. Para alcançar a tautologia do discurso, com o perdão aos desinteressados em conhecer a Teoria dos sentimentos morais de Adam Smith, serve um jurista.

Não são apenas os economistas falecidos que continuam a influenciar de suas sepulturas; uma figura execrada pelo público também exerce seu domínio sobre a sociedade. Vale lembrar que a lei complementar 179/2021 constitui peripécia com o mais genuíno selo do bolsonarismo. Roberto Campos Neto, escolha de Jair Bolsonaro para o Banco Central, agora avança seu legado para reformar a Constituição e impor ao país um teto de gastos perpétuo disfarçado de austeridade.

O que a um primeiro olhar parece simpático ao serviço público, pois a autonomia de funcionamento costuma ser percebida como algo de positivo, no caso em exame da presente PEC, mais se assemelha a uma blindagem imune à política. Para além de grave é anárquico, pois pretende criar uma estrutura que ignora a orientação politica do Executivo; é capitalista selvagem, pois autoriza juros decididos por um conclave a beneficiar bancos e investidores que ganham mais no Brasil do que em qualquer lugar do globo terrestre; e é autoritário, pois ignora as escolhas democráticas das urnas permitido que uma redistribuição regressiva aos mais favorecidos seja uma engrenagem perene das dinâmicas nacionais, fazendo pouco ou nada das escolhas constituintes originárias.

A pretensão de criar um enclave feudal da res publica para controlar sem ser tomado como responsável (accountable), é a razão última a justificar a legitima insatisfação da cúpula do governo, que se vê ultrajada e feita refém sem contar com argumentos passiveis de serem transmitidos ao povo para que compreendam a gravidade do porvir. Exige-se o exaustivo esforço argumentativo de adentrar uma esfera cujo segredo vem codificado não em leis, mas em gráficos que poucos compreendem como enfrentá-los. A economia alcançou o feito de criar um discurso que oprime sem violência, pois não é o aparato policial que vem ao encontro para amparar as decisões econômicas, mas o simples desinteresse e tédio em analisar o cerne das questões.

O projeto de neutralizar o discurso econômico foi exitoso, despeja-se uma infinidade de termos técnicos e a audiência transcorre indiferente ao que não é capaz de validar. Enquanto a orientação política é demarcada em disputas hostis, a ideologia do economês surge simpática, sem explicar que retirou o poder de compra do trabalhador e o entregou ao banqueiro. Porém o aprofundamento dos efeitos da Lei Complementar 179/21 através da PEC 65/23 são uma hecatombe que influirá mais na vida do brasileiro do que qualquer escolha política que pudesse ser feita nas urnas.

Em um momento tão sensível da política nacional, exige-se sensatez para enfrentar o passivo autoritário deixado pelo predecessor e não permitir que a austeridade se entranhe na política sem que ao menos haja a oportunidade do debate. Reformas constitucionais não são caprichos selados a portas fechadas, requer discussão exaustiva e ideologicamente desvelada dos reais intuitos em promovê-las. A reforma constitucional que pretende conferir autonomia funcional ao Banco Central, diga-se e repita-se é, ideológica, é política, é a austeridade perpetua como nova clausula constitucional.

*Mariella Pittari Merkel é doutoranda em diritto comparato pela Università Degli studi di Torino.


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