O golpe que dura 60 anos

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Por EDSON TELES*

Refletir sobre narrativas simplificadoras do que foi o golpe de 1964 e a ditadura e ir além das superficialidades colabora para o entendimento dos quatro anos de um governo autoritário

Faz 60 anos que o país se lançou em um mergulho profundo no abismo político e social do autoritarismo. Trata-se do golpe empresarial-racista-torturador-religioso-patriarcal-imperialista-militar[i] orquestrado pelas Forças Armadas, com amplo apoio em setores da elite econômica e de poder na história do país. Por décadas, e em especial no processo de transição da Ditadura para a democracia, se disseminou certa narrativa que continha três erros crassos sobre a história recente.

O primeiro erro histórico foi o de que o golpe e o regime subsequente haviam sido produzidos e dirigidos somente por militares quando, de fato, resultou do contexto da Guerra Fria (EUA x URSS) e das lutas democráticas e populares regionais. Foi o resultado da articulação das velhas oligarquias políticas e econômicas com as grandes corporações industriais e financeiras, articuladas em torno do projeto imperialista norte-americano.

O segundo erro foi apresentar a ditadura como um regime de ataque sistemático e violento apenas contra a esquerda e, mais diretamente, contra a luta armada de resistência. Entretanto, o ataque do Estado ditatorial atingiu a todos os que se opunham ao regime, assim como a todas as subjetividades e todos os corpos que destoavam da norma autoritária, arcaica, racista e patriarcal pré-existentes, as quais foram elevadas à máxima normatização. O país sofreu a ampla violência contra povos indígenas, a população negra e periférica, os camponeses, os democratas de modo geral, entre outros.

Como parte fundamental da fabricação de uma narrativa enviesada sobre a ditadura se estabeleceu certo suposto senso comum de que a volta à democracia representava uma ruptura com o antigo regime. Sob esta ficção se pôs, pouco a pouco, em cantos obscuros de nossas formulações sobre o passado as denúncias contra a violência de Estado, os reclamos acerca do chamado “entulho autoritário” e a militarização da política e do cotidiano.

Claro que houve rupturas, pois se estas não tivessem ocorrido não estaríamos debatendo hoje as nossas possibilidades de defesa da democracia. Mas, se pudéssemos medir uma ditadura pelo que dela permaneceu na sociedade (e no Estado) talvez devêssemos dizer que a ditadura brasileira foi a que mais teve continuidade, na América do Sul, em sua nova democracia.

Não houve somente ruptura entre um regime e outro e a ditadura não foi um ataque violento apenas contra a esquerda. Dessa forma, gostaria de destacar o amplo leque de adjetivos que direcionamos ao golpe (não só) militar de 1964 como forma de ultrapassar alguns erros históricos que por vezes são adotamos ao se referir à ditadura.

Antes de tudo, e a historiografia brasileira vem apontando essa leitura (primeiro, com a inclusão do termo “civil” junto ao militar e, mais recentemente, com o uso do termo “empresarial”), tivemos a presença do capital no golpe empresarial-racista-torturador-religioso-patriarcal-imperialista-militar.

Foi um golpe financiado por empresários que se alinhavam aos interesses de grandes corporações e do império norte-americano para receber os benefícios econômicos no regime que surgia. Foi financeirista, pois o desenvolvimentismo da ditadura foi aliado e operador em favor do mercado, usando da produção de grãos e da nova industrialização que vinha crescendo para impulsionar de modo escuso a movimentação financeira via bancos (20 anos de crescimento desmesurado de uns poucos dois ou três bancos e de setores financeiros internacionais sobre os quais poucos sabemos).

O milagre econômico foi uma ficção propiciada por certo crescimento econômico, mas principalmente pela injeção de um grande montante de dinheiro financeirizado, o qual foi embora assim como veio a partir da crise do petróleo. Essa injeção de dinheiro foi importante para investir na militarização do país, na formação de uma intelectualidade conservadora e na ideologia de que o brasileiro seguia em direção a um futuro de vida classe média. Os indivíduos da pobreza seriam aqueles incapazes desse desenvolvimento e ficariam fora da classe “cidadão de bem” na redemocratização.

O Golpe de 1964 foi substancialmente racista. A ditadura estatizou o “mito da democracia racial” e fez deste a ideologia nacional de uma sociedade imaginária racialmente misturada, cordial, miscigenada. Ter adotado o “mito” foi fundamental para o regime manter a estratégia da relação senhorial nas práticas sociais e, através da lógica da supremacia branca, se pode aprofundar a construção da subalternidade dos corpos negros. Era preciso fazer com que os sujeitos destinados a se revoltarem por sua condição de vida e por sua história, como dizia Clóvis Moura, permanecessem presos a uma lógica perversa de embranquecimento e de ataque aos modos alternativos de cultura e sociabilidade que existiam desde a diáspora africana.

Deve-se lembrar que logo após o Ato Institucional número 05 (AI-5), de dezembro de 1968, a ditadura recrudesceu a institucionalização da violência. Logo na sequência, em 20 de Março de 1969, o general-presidente Costa e Silva assinou o Decreto-Lei nº 510, que em seu artigo 33 declarava ser crime de racismo “incitar (…) ao ódio ou à discriminação racial”, utilizando o artefato repressivo contra militantes de coletivos e movimentos negros que denunciavam o caráter racista do regime.

O golpe foi torturador e isto caracterizou a ditadura em sua comparação com outras ditaduras do Cone Sul. Não que todas elas não tenham feito uso sistemático da tortura. Fizeram e, por vezes, inclusive com o ensinamento da ditadura brasileira, uma das mais antigas e estáveis da região. Contudo, a ditadura brasileira criou uma rede de instituições policiais e militares, lícitas ou clandestinas, preparadas para prender dezenas de milhares de pessoas para serem sistematicamente torturadas. A socióloga argentina Pilar Calveira chamou a ditadura de seu país de “poder desaparecedor”, devido à quantidade de desaparecidos políticos. Certamente, poderíamos chamar a ditadura brasileira de “poder torturador”.[ii]

Logo após o AI-5, cioso de seu caráter racista, o regime militar criou a “Operação Bandeirante” (OBAN), o maior centro de tortura (e também de assassinatos e desaparecimentos). O nome já dizia sobre a continuidade do projeto ditatorial em relação ao modelo colonial adotado na pátria ficcionada pela ideia da miscigenação. A OBAN foi o protótipo para o organismo oficial do Exército brasileiro chamado “Departamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna”, os DOI-CODIs.

Eram centros de tortura comandados por majores do Exército (em São Paulo, foi por muitos anos comandado pelo então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, indicado pelo Relatório da Comissão Nacional da Verdade como o responsável por dezenas de assassinatos e, ao menos 42 desaparecimentos) e tinham em seu corpo oficiais das três forças armadas, além de policiais militares e civis. Por vezes, se coligavam às atividades de milicianos. Foram criados dez DOI-CODIs, espalhando o terror de Estado para todas as regiões do país e irradiando para outras institucionalidades o “poder torturador”.

O golpe de 1964 se utilizou de valores morais conservadores, em torno do que chamamos hoje de pauta dos costumes, e que defenderiam modelos de família, sexualidade, heteronormatividade e contra os avanços inerentes ao tempo (anos 1960, com revolução sexual, criação da pílula anticoncepcional, direito ao aborto etc.) e a explosão dos movimentos feministas e antipatriarcais. Há que se lembrar que o país sempre se organizou em torno do poder patriarcal, mas na ditadura se fez disso um valor a ser defendido e mantido pelo Estado como base fundamental da ordem militarista.

Na véspera do golpe, houve a “Marcha da Família com Deus Pela Liberdade”, convocada pelas lideranças reacionárias e financiadas pelo Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (IPES), instituição de empresários brasileiros que deram suporte ao golpe e à ditadura[iii]. Tais “Marchas” visavam construir uma imagem popular ao golpismo e também entrar na disputa pelas ruas, sendo a primeira “Marcha” convocada para seis dias após o comício pelas reformas de base, na Central do Brasil, que contou com a presença do presidente João Goulart.

O golpe empresarial-racista-torturador-religioso-patriarcal-imperialista-militar teve como principais objetivos: (i) impor um projeto financeiro-econômico do capital, por meio do empoderamento de militares e de uma aristocracia coronelista-senhorial; e, (ii) conter, anular, desmobilizar ou destruir a organização dos trabalhadores, dos movimentos e das lutas sociais, das forças democráticas e de esquerda.

O golpe não foi o ato de uma extrema direita encrustada dentro das Forças Armadas, assim como a violência e o terror de Estado não foi obra dos “porões da ditadura”. Foi uma etapa fundamental do capital e das forças reacionárias, fascistas e conservadoras.

Refletirmos hoje sobre narrativas simplificadoras do que foi o golpe de 1964 e a ditadura e irmos além das superficialidades pode colaborar com o entendimento sobre os quatro anos de um governo autoritário em meio a um Estado de direito e com a compreensão do movimento golpista que culminou com o 08 de janeiro de 2023.

Hoje já se divulga amplamente a versão de que o janeiro do ano passado foi o ato de inocentes descontrolados, os “manés”, que não haviam entendido o momento da derrota eleitoral. Até mesmo já se difundi, mais de um ano após os fatos, que os comandantes do Exército e da Aeronáutica no fechar das cortinas do governo de Jair Bolsonaro foram os que salvaram a democracia e impediram o derrotado de seguir na tentativa de um golpe. Versão que entra em contradição com os fatos que presenciamos, seja por meio de notas, relatórios e declarações das instituições, ou com a cessão do espaço dos quartéis para acampamentos de movimentos obscuros, e que deixaram evidente que o comando das Forças Armadas de alguma forma alimentou a hipótese de um novo golpe de Estado.

Não aconteceu um golpe em 2022/2023 por uma série de conjunturas e contextos momentâneos e devido às relações das forças em choque. Devem ser vários os fatores do malogro golpista. Mas, parece sintomático que se venda e se compre a versão da ação de setores radicalizados (antes alguns generais e os “porões”; hoje, outros generais, o inelegível e alguns de seus “manés”). O desconhecimento do passado abre lacunas para o ficcional ganhar ares de verossímil.

*Edson Teles é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Autor, entre outros livros, de O abismo na história: ensaios sobre o Brasil em tempos de comissão da verdade (Alameda). [https://amzn.to/48Esshj]

Notas


[i] Minha inspiração para as adjetivações do golpe se baseiam na pesquisa de doutorado de Umeno Morita que analisa a condição do povo indígena Ainu diante do projeto colonial japonês nascido com a Era Meiji, cuja ascensão do novo imperador teria ocorrido por meio do “golpe militar-financeirista-religioso-fundamentalista”.

[ii] Quem criou o termo “poder torturador” para descrever a Ditadura foi Janaína Teles, ao escrever a “Apresentação” da edição brasileira do livro de Pilar Calveiro. TELES, Janaína. Ditadura e repressão no Brasil e na Argentina: paralelos e distinções. In: CALVEIRO, Pilar. Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina. São Paulo: Boitempo, 2013.

[iii] Ver o “Informe Público” da pesquisa “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura”, conduzida pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp), 2023. Disponível em:

https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/images/CAAF/Empresas_e_Ditadura/InformePublico.pdf.


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