Começando a despertar do pesadelo

Imagem: Gabriel Ramos
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Por EMILIO CAFASSI*

A ameaça às instituições universitárias e sindicais argentinas levou a uma gigantesca e histórica manifestação contra o governo Milei

Era esperado; eu esperava por isso. Rios humanos transbordaram pelos canais das cidades em todo o país. A conquista das ruas segue um processo cumulativo, particularmente na capital argentina. Foi o 24 de janeiro com a convocatória da CGT que reforçou a presença e participação nas embrionárias assembleias populares e grupos autoconvocados que ainda sobrevivem de forma limitada. Depois os 8 de março para a igualdade de gênero e mais tarde os contundentes 24 de março para a memória, que ultrapassaram em vários quarteirões os limites da histórica Plaza de Mayo.

No caso que analisarei, 23 de abril, não me lembro de ter tido tanta dificuldade em chegar ao ponto de concentração do meu corpo docente, nem tal nível de densidade de pessoas por superfície, ao limite da asfixia. Superou tudo o que havia vivido em 40 anos de vigência constitucional, profusos em protestos de rua. O encerramento desta publicação no regresso da marcha dá-me pressa em escrever, tanto quanto me impede de analisar as repercussões que inevitavelmente terá. Não só pela magnitude na cidade de Buenos Aires, mas em todo o país.

A polícia, sempre desvalorizando, estimou o comparecimento em mais de 150 mil pessoas. Para os organizadores foram 800 mil. O jornal argentino La Nación, que costuma acompanhar o descaso policial, desenvolveu um infográfico com estimativa aproximada de 430 mil com base em três categorias de densidade por metro quadrado: quatro na área mais comprimida, dois na média e um na dispersa, aplicando estas regras em toda a superfície de ruas e avenidas pesquisadas por drones. Possivelmente a realidade esteja mais próxima de uma intersecção entre a estimativa mais otimista e a do jornal. Toda a imprensa, porém, parece aceitar sem maiores detalhes ou cálculos que eram mais de 1.000.000 em todo o território nacional. Verdadeiramente histórico.

Na semana anterior o governo iniciou a implantação de manobras com o intuito de quebrar ou eventualmente enfraquecer a convocação. Começou afirmando que havia chegado a um acordo com as universidades para garantir o funcionamento, já que concederia um aumento limitado a tais despesas. Foi simplesmente um anúncio informal e unilateral que, no melhor dos casos, cobriria apenas 10% das necessidades básicas.

O Conselho Interuniversitário Nacional (CIN) rejeitou a medida, insistindo no convite para a marcha. O partido no poder continuou a exercer pressão individual sobre os reitores do CIN e os governadores das províncias, necessariamente próximos e interessados na oferta universitária no seu território, com a mesma metodologia que o ministro do interior utiliza com eles para convencer os parlamentares dos seus distritos para votarem o novo projeto de lei geral reduzido: chantagem. Apesar do discurso de renovação da política, continuam apelando ao que há de pior nela: a corrupção e a troca de favores e recursos entre representantes a portas fechadas e pelas costas daqueles que representam. A ofensiva culminou com a ameaça de ratificação do temível protocolo de segurança da ministra Patrícia Bullrich, violando o direito constitucional de protesto e a liberdade de associação e reunião, já utilizado em manifestações menores com centenas de participantes espancados, feridos, intoxicados e detidos – além de jornalistas feridos.

Já na desconcentração, as duas autoridades máximas exibiram através do X (antigo Twitter) em um caso, e pelo Instagram em outro, o ódio repugnante que os anima e o clima de violência e crueldade que projetam sobre a sociedade. A vice-presidente Villarruel publicou uma foto de Taty Almeida, mãe da Plaza de Mayo falando no palco com a seguinte frase: “Hebe o que você perdeu” (a omissão da vírgula é da autora). Ela alude a uma das fundadoras e líder das Mães, Hebe de Bonafini, que “essa você perdeu” porque morreu há pouco mais de um ano. Revelando a índole desta funcionária.

O presidente Javier Milei, por sua vez, postou o desenho de um leão (geralmente ele se apresenta, dizendo em tom de rugido: “Olá, eu sou o leão”) que bebe de um copo com a inscrição “lágrimas de esquerdistas”. Ainda é animador que a tirania de Javier Milei o leve a detonar as alianças que lhe são oferecidas sem maiores condições, ampliando o tema de seus estilhaços comunicacionais. No discurso em Davos, ele colocou os magnatas e líderes presentes no mesmo saco “coletivista” que incluía tudo, desde nazis, keynesianos, até neoclássicos. Considerava o parlamento argentino um “ninho de ratos”, de onde exige simultaneamente a aprovação dos seus projetos de lei.

O caso do ex-ministro da Economia ultraliberal López Murphy, expulso pelo governo da Aliança, merece uma menção edipiana porque o considerou o seu “segundo pai”, ao celebrar a sua candidatura a deputado. Javier Milei, uma vez assumido, mencionou isso ao alertar seu público que “é bom que eles saibam quem são aqueles que se disfarçam de liberais e são verdadeiras aberrações que vão contra as ideias”.

Destino semelhante se abateu sobre mais de uma dezena de jornalistas, a maioria dos quais demonstrou grande indulgência, espírito colaborativo e submissão à sua investida. Ele não odeia apenas os esquerdistas. Desta forma, apresenta-se como um cruzado heroico e solitário diante de um exército de mercenários do “socialismo estatizante”, embora estes não o saibam. Um Rambo numa guerra de reality shows e tweets.

Assim como para McLuhan a mensagem era o meio, para Javier Milei o ódio é a política. A ligação entre dogma e violência remete-nos ao obscurantismo do século XVIII, conservador e religioso, contra o qual se posicionaram os filósofos do Iluminismo, entre os quais prefiro incluir Immanuel Kant, ao contrário do julgamento de Frederich Nietzsche que lhe atribuiu a escuridão por seu estilo literário complexo e a ausência de mediações explicativas.

Kant responderia que a inteligência é mensurável pela quantidade de incertezas que é capaz de suportar. Independentemente desta distinção detalhada, ela ainda é útil para a discussão sobre o progresso universitário, quando em seu pequeno livro sobre a disputa das faculdades, defende o poder crítico da faculdade filosófica, contra os três saberes práticos remanescentes da época (direito, medicina e teologia) por terem a possibilidade de investigar as doutrinas específicas que devem transmitir dogmaticamente (Der Streit Der Facultaten).

Javier Milei não suporta uma única incerteza, sua concepção é que as faculdades doutrinam, por isso imagina que está formado todo o arco ideológico contra o qual ele luta bravamente. O que Javier Milei considera doutrinação é o que há dois séculos e meio Kant atribuiu à faculdade filosófica e ao esclarecimento como o avanço e a disseminação do conhecimento. Há pouco mais de um século, os protagonistas da reforma universitária de 1918 em Córdoba sustentavam que se “em nome da ordem querem continuar a zombar e a nos brutalizar, proclamamos em voz alta o direito à insurreição”.

Também em Córdoba, há quase meio século, os protagonistas do “Cordobazo”, os sindicatos mais combativos da época, mantiveram uma aliança de trabalhadores com estudantes para enfrentar a repressão da ditadura. A mesma que três anos antes desalojou a ocupação de cinco faculdades da Universidade de Buenos Aires quando interveio aquela ditadura, eliminando assim o cogoverno. Forçou o êxodo dos seus melhores expoentes na conhecida “noite dos bastões longos” de 1966.

Não afirmo que exista uma correspondência mecânica entre esses acontecimentos e aqueles que permitiram a marcha desta semana. No entanto, existem três abordagens. Por um lado, o governo de Javier Milei, embora não seja uma ditadura, tem tantos traços de autoritarismo e violência repressiva que coloca sob pressão a validade das garantias constitucionais. No entanto, além disso, as universidades não estão sob intervenção, nem a imprensa.

Por outro lado, as atuais representações sindicais não têm o perfil combativo nem a influência sobre o mundo do trabalho, cada vez mais precário e informal, como tiveram em grande parte da década de 1960. Por fim, o atual movimento estudantil é muito mais heterogêneo devido ao aumento exponencial das universidades, dos seus estudantes e da sua penetração em todo o território nacional. O Conselho Interuniversitário Nacional mais amplo e diversificado agora também difere daquele de meio século atrás.

No entanto, a natureza da ameaça, a intervenção das instituições universitárias e sindicais, desafiou uma magnitude sem precedentes da população que respondeu a um apelo que considerou unitário e unificador. A diversidade ideológico-partidária do Conselho Interuniversitário Nacional e o pluralismo das principais universidades, a estruturação de uma frente intersindical universitária, o apoio das três confederações sindicais, algumas organizações de piquetes e algo ainda mais poderoso: o imaginário de mobilidade social ascendente que a universidade pública tem na sociedade o que leva a que, segundo o último registro (2022), 2.162.497 adultos estudaram nas 73 universidades públicas contra 551.330 nas privadas (de excelência, investigação e extensão, salvo algumas exceções específicas). Das privadas surgiram quatro dos cinco políticos, não por coincidência conservadores para usar uma expressão leve, que disputaram a presidência da última década: Macri, Scioli, Massa e Milei.

Embora possa parecer banal, algumas conclusões provisórias mínimas indicariam que sobre essa aliança larval, a resistência poderia ser aprofundada. Acima de tudo buscando formas de institucionalizar as coordenações a que efetivamente se constituíram. O detalhe deve ser deixado para uma contribuição futura.

Terei a lembrança de ter participado de uma festa colossal, heterogênea, barulhenta e transversal. Festival de abraços, surpresas e reencontros. Oxigenando na compressão pulmonar paradoxal do aperto de boas-vindas.

*Emilio Cafassi é professor sênior de sociologia na Universidade de Buenos Aires.

Tradução: Artur Scavone.


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