Por LUCAS TRENTIN RECH*
Tréplica ao artigo de Valter Lúcio de Oliveira
Desde que publiquei, em A Terra é Redonda, uma resposta ao texto de Valter Lúcio de Oliveira, fui replicado diretamente e indiretamente em alguns textos postados nesse site.[i] Em primeiro lugar, gostaria de concordar com a abertura da réplica escrita por meu colega e manifestar minha satisfação de ver esse portal ter se convertido em uma espécie de tribuna livre sobre a greve docente federal. Esse rico debate, sobre a greve e sobre a concepção de movimento docente já é, sem dúvidas, um dos ganhos dessa greve.
Nesse texto procurarei apenas escrever uma tréplica, bastante breve, ao artigo de Valter Lúcio,[ii] com quem eu havia dialogado em meu texto anterior e que, gentil e educadamente optou por responder-me. Não responderei aos demais por dois motivos principais: (i) não penso que conseguiram fugir do lugar comum e, por isso, sequer merecem uma resposta; e, principalmente, (ii) por estar compondo o CLG-UFBA, o tempo tem me sido um bem extremamente escasso.
Como todas(os) aquelas e aqueles que já participaram, ou participam hoje, ativamente da construção de uma greve sabem, é necessário que renunciemos a nossas vidas pessoais durante esse período e nos dediquemos, quase que exclusivamente, à construção do movimento (de suas pautas, de suas assembleias e, no caso da UFBA, de suas inumeráveis atividades de ocupação).
A primeira pergunta que me é dirigida por Valter Lúcio de Oliveira é, a partir da citação de A Miséria da Filosofia que utilizei em texto anterior.[iii] Se na citação os inimigos comuns dos trabalhadores são os patrões, quem seriam os “nossos inimigos? O presidente da república? O conjunto do seu governo? Os deputados e senadores? A sociedade à qual servimos?”. Pergunta semelhante, e com resposta semelhante, foi feita pelo colunista do jornal O globo, Carlos Alberto Sardenberg, famoso por seus ataques à Universidade Pública, em sua mais recente coluna.[iv]
Nossos patrões, para Carlos Alberto Sardenberg, seriam os alunos e por isso “a greve nas universidades é contra os alunos e a sociedade”. Valter Lúcio não é tão claro em sua resposta, mas os dois parágrafos que se seguem às suas perguntas não deixam dúvidas que sua compreensão é a mesma.
Discordo dos dois. Nossa greve se dirige à atual organização do Estado brasileiro, sobretudo, ao atual regime de governança orçamentária,[v] iniciado em 2014 e que se aprofundou no período pós-golpe parlamentar de 2016. Nesse novo regime, de forma bastante resumida, o controle do executivo sobre o orçamento vem sendo preterido em favor de emendas parlamentares (individuais e de bancada), gastos tributários e da ingerência dos órgãos de controle (como o TCU, que a partir de uma mudança de interpretação sobre a LRF foi diretamente responsável pelo impeachment de Dilma Roussef).
Como procurei demonstrar em texto desenvolvido durante a greve[vi] e apresentado em uma das reuniões de nosso comando local de greve, a educação superior foi um dos setores que mais sofreram no novo regime.[vii] A participação da educação superior no orçamento finalístico descontado (quando eliminamos os gastos com manutenção ministerial, previdência e bolsa família) saiu de 3,76%, no Plano Plurianual (PPA) 2016-2019, para apenas 2,30% no PPA 2024-2027, desenvolvido pelo governo Lula.
Essa redução de 146 pontos base, ou de 39% de participação no orçamento finalístico descontado, reflete-se duramente em nossas condições de trabalho e, também, nas condições de estudo dos discentes que Valter Lúcio e Sardenberg dizem preocupar-se. De forma prática, os cortes orçamentários em educação superior fazem com que hoje, um aluno que ingresse na graduação em economia da Universidade Federal da Bahia não terá disponível computadores para que possa rodar softwares básicos para sua formação.
Figura 2: Evolução das Despesas Discricionárias no Ensino Superior por Categoria – 2016-2024 (valores corrigidos pelo IPCA)
É possível perceber pelo gráfico que, em termos reais, o orçamento dedicado às Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) em 2024 é inferior aos orçamentos dos dois anos do governo de Michel Temer e do primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, além de ser praticamente igual ao orçamento do segundo ano do governo Bolsonaro. Se é inequívoco que houve um desmonte intencional e anunciado durante esses dois governos, por que Valter Lúcio indica que nossas reivindicações por recomposição orçamentário não passam de retórica? Não estaria ele preocupado com o grave quadro que a realidade nos coloca?
Mais ainda, no momento em que o governo nos coloca uma proposta salarial plurianual (2024, 2025, 2026) é importante que olhemos para o orçamento projetado para os próximos anos. E quando o fazemos, o quadro orçamentário não apenas não melhora, como se agrava:
PLPPA 2024-2027 – Programa 5113 Educação Superior: Qualidade, Democracia, Equidade e Sustentabilidade (Em valores de 2024)
2024 | 2025 | 2026 | 2027 |
R$ 14.463.853.779,00 | R$ 14.052.426.488,57 | R$ 14.075.052.654,54 | R$ 14.010.166.141,10 |
Isto é, caso nossa greve nada consiga (o que já parece pouco provável dado que nesta segunda-feira Lula se reunirá com os Reitores para, justamente, anunciar uma recomposição orçamentária para custeio e investimentos nos próximos anos), ao final do Governo Lula estaremos com um quadro, nas Universidade Federais, ainda pior do que no início. De novo de forma prática, é dizer que o teto do meu gabinete de trabalho, localizado no quinto andar da Faculdade de Economia, no qual hoje as lâmpadas não acendem dada as profundas infiltrações de água, e que já exige que baldes fiquem localizados para deter que os pingos de água atinjam o chão, deve cair ou apresentar rachaduras que inviabilizem o seu uso.
Dizer que a luta por condições de trabalho não é uma pauta sindical e que “greves são movimentos corporativos e voltados fundamentalmente para salário e carreira” carece de bases reais e talvez, parta daqueles que, ao invés de ajudarem a construir o movimento paredista, têm se empenhado diuturnamente em desacreditá-lo e destruí-lo.
Outra discordância que tenho com o texto de Valter Lúcio é quanto à sua acusação de que eu estaria idealizando as assembleias. Eu não posso falar pelas assembleias de outras Universidades, pois seria fazê-lo a partir de observações secundárias, pessoais e, por isso, enviesadas. Mas quando defendo as assembleias defendo a partir da realidade concreta das assembleias que tenho vivenciado desde o dia 25 de abril, aqui na Universidade Federal da Bahia.
Se é verdade que a diretoria, ligada à Proifes-Federação, tem feito esforços para manobrá-las, é também verdade que essa não tem conseguido, dada a força e a unidade apresentada pela base. Na última assembleia, do dia 06/06, tivemos um riquíssimo debate sobre o orçamento das Instituições Federais, com exposições longas e bem fundamentadas, antes de uma membra da diretoria sindical e depois de um membro do CLG. Tivemos também uma belíssima intervenção artística de uma professora da dança, nos escassos três minutos dedicados à sua fala, além de intervenções bem-humoradas, intervenções enfáticas e intervenções polêmicas.
Tudo isso está gravado, e pode ser acessado no canal do YouTube da Apub. É óbvio que, quando as falas contrariam a maioria dos presentes, elas normalmente são seguidas por vaias, as quais entendo que, longe de agressivas, são uma livre manifestação democrática, como são livres os aplausos, que se seguem a falas que agradam a maioria dos presentes. Essa aversão às assembleias, que não é exclusiva de Valter Lúcio, me parece sempre ligada a uma visão do professor universitário como alguém distinto da sociedade, que deve sempre falar baixo e pausadamente, que não pode manifestar emoções, que não pode esbravejar e etc.
Nisso, talvez nunca concordemos, e faz parte da democracia discordarmos, pois entendo que nós, professores universitários, somos seres humanos trabalhadores como quaisquer outros e, não é porque nossa formação acadêmica é acima da média dos demais trabalhadores que somos melhores e/ou distintos desses. Somos trabalhadores e trabalhadores, temos patrão (o Estado) e esse patrão longe de constituir-se de um aparelho democrático universal, é um patrão dirigido pela lógica do capital.
Para além das discordâncias, que podem sempre ser mediadas e serem influenciadas por concepções distintas dos observadores, há um erro, que considero grave, no texto de Valter Lúcio. Meu colega afirma que “greves no contexto da luta entre proletários e burguesia não duram mais que alguns dias já que ambos os lados sentem a pressão”. Cito, por exemplo, a vitoriosa greve geral de 1906 ocorrida em Porto Alegre e que depois de 21 dias de duração e de uma massiva adesão do proletariado porto alegrense conquistou a redução da jornada de trabalho.
Meu colega poderia, a partir de um exemplo tão antigo, dizer que greves longas não mais existem, mas em uma rápida pesquisa no google, na qual coloquei a palavra ‘greve’ e limitei a pesquisa às últimas 24h encontrei a greve dos metalúrgicos da Renault de São José dos Pinhais, que já dura 30 dias, pouco menos do que nossa greve na Universidade Federal da Bahia.
Por fim, não entrarei na questão Andes x Proifes, pois a descrição do papel da entidade sem carta sindical já foi muito bem elaborada por meu camarada Henrique Saldanha.[viii] Apenas gostaria de manifestar minha discordância com análises que remontam às decisões do Andes-SN nas greves de 2012 e 2015, ocorridas há 12 e 9 anos respectivamente. Essas análises, no geral, partem de um princípio a-histórico, como se durante esse longo período Andes-SN e Proifes não tivessem mudado.
Como exemplo, em 2012 eu era ainda aluno de graduação e em 2015 aluno de mestrado e, como vi ao integrar o Comando Nacional de Greve entre os dias 26 e 31 de maio, muitos dos que hoje estão mobilizados pertencem a uma faixa etária similar a minha. Portanto, penso que devemos discutir o presente. Qual o papel desempenhado pelo Andes-SN nesta greve? Não foi a de apresentar contraproposta amplamente factível?[ix] Qual o papel desempenhado pela Proifes nesta greve? Não foi o de traição de suas bases e da ampla maioria da categoria?
Para concluir, agradeço mais uma vez ao site A Terra é Redonda por dar espaço para o debate do movimento docente e a meu colega, Valter Lúcio de Oliveira, por sua réplica gentil e educada, mesmo que dela eu discorde em quase absoluto. Destaco também que, este é meu último texto sobre o assunto, mas que, caso meu colega escreva uma nova resposta, a lerei com prazer.
*Lucas Trentin Rech é professor do Departamento de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Notas
[i] https://aterraeredonda.com.br/uma-maquina-milionaria/
[ii] https://aterraeredonda.com.br/assembleias-greves-e-o-movimento-sindical-dos-docentes/
[iii] https://aterraeredonda.com.br/assembleias-docentes/
[iv] https://oglobo.globo.com/opiniao/carlos-alberto-sardenberg/coluna/2024/06/a-greve-nas-universidades-e-contra-os-alunos-e-a-sociedade.ghtml
[v] Sobre o tema, recomendo importante livro publicado pelo IPEA https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/11565/1/Governanca_Orcamentaria_no_Brasil.pdf
[vi] ttps://www.researchgate.net/publication/380711731_Analise_dos_Recursos_destinados_ao_Ensino_Superior_Publico_em_Tempos_de_Greve_Docente_Federal
[vii] Tal constatação já estava presente em um capítulo de livro que, junto com Leandro Couto, publiquei pelo IPEA em 2023: https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/11961
[viii] https://esquerdaonline.com.br/2024/05/29/a-greve-docente-federal-e-o-papel-da-proifes-federacao/
[ix] https://diplomatique.org.br/movimento-de-greve-dos-docentes/
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