Por ION DE ANDRADE*
Governo Lula — um luto a fazer e um legado a defender
Completados dois anos do governo Lula, o que ocorrerá em sete meses, para além das expectativas frustradas que tenhamos tido até aqui, a agenda das lutas não vai mais poder ser a da pressão para que o governo faça “algo novo” em termos de projeto de sociedade que possa ser capaz de consolidar a sua viabilidade eleitoral. E daqui até lá, não haverá coelhos saindo da cartola.
A agenda que vai se impor vai ser a de garantir que realmente aconteçam os resultados das iniciativas sociais do governo, (Periferia Viva, Territórios de Cultura, Minha Casa Minha Vida com as suas bibliotecas, os 180 Institutos Federais, etc.) e de defender esse legado e a possibilidade de sobrevivência eleitoral do governo.
No entanto, mesmo diante dessa resignação que estou antecipando aqui e que se tornará ao longo dos próximos anos sinônimo de sobrevivência, temos uma pequena janela temporal agora onde certa visão de futuro ainda pode ser expressa, como um último drink antes da resignação.
Quero aproveitar esses últimos momentos que nos restam de liberdade de crítica, antes do que será o campo de batalha eleitoral de 2024 e, sobretudo, o de 2026, para dizer, de forma muito sumária, que o governo como um todo parece não ter entendido algumas coisas essenciais que são responsáveis, conforme vejo, pelo momento de incertezas e desorientação pelo que passamos hoje.
Antes de passar ao que não foi entendido pelo governo e que poderia tê-lo feito ir mais longe na construção de uma sociedade um pouco mais justa no Brasil, vamos considerar que a fase atual da vida institucional republicana, o que inclui o governo Lula vem tendo uma importância estratégica para a consolidação do Estado de direito e da democracia.
O governo Lula, tem sido protagonista de algo que é, nesse sentido, tão importante quanto o seu sucesso: o exercício da governança sob normalidade democrática e respeito à institucionalidade.
O Senado, por exemplo, acaba de criminalizar a apologia à tortura e à ditadura e o Judiciário se prepara para o que será para nós, enquanto sociedade, um julgamento emblemático: o da responsabilização do ex-presidente (inominável) pela trama golpista, o que assume ares de uma virada de página histórica num país em que o golpismo sempre esteve na ordem do dia.
Tendo considerado esse conjunto de variáveis, que não tocam diretamente a resultados de um governo, mas à consolidação do Estado de direito, e que podem ser suficientes para devolver as forças que elegeram o presidente Lula ao Poder, vamos ao que não foi entendido pelo governo e continua atravancando o país e infelicitando o povo.
A economia não é um fim em si
A economia e as finanças públicas não são boas por si só, não adianta ser a oitava economia, ou ser elogiado por agências de classificação de risco e bancos. A economia é tão somente o aspecto máquina de um processo social que é essencialmente político. É como ter um carro novo e poder encher o tanque. Mas a questão central tendo o carro é saber e ter para onde ir.
Ter o carro, nesse sentido figurado, pode até gerar uma satisfação momentânea, mas ela será incapaz de sustentar o conceito político de alguém e será concorrida na sua ressignificação última, por quem se beneficiou, pela meritocracia ou pela teologia da prosperidade, como já ocorreu no passado recente, anulando politicamente os ganhos na economia.
Há quem defenda, nesse entendimento economicista, que a “saída” para o Brasil estaria numa nova industrialização, na integração econômica com a América do Sul, isso é até parcialmente verdade, mas tão somente enquanto aspecto máquina.
O que é preciso, entretanto, é mudar e saber em que mudar a vida do povo e nisso os bons resultados econômicos são apenas a premissa da sustentação de um projeto emancipatório para as maiorias, que, se estiver ausente, talvez não sirva para nada.
As políticas públicas têm que ser universais
O governo e a maior parte da esquerda, incrivelmente, não entenderam a necessidade de universalizar as políticas públicas, razão por que todas elas começam no seu enunciado, excluindo os que vão ficar de fora, servindo apenas para abastecer de argumentos aqueles que ficam satisfeitos porque há “muita coisa boa” sendo feita.
É assim: (a) nos novos Institutos Federais, cerca de 180 que atenderão no máximo 360.000 alunos de um universo de sete milhões e duzentos mil matriculados no Ensino Médio (5% do total) sem sinalizar um novo modelo para as demais escolas de Ensino Médio nos estados, o que as vulnerabiliza fortalecendo o modelo autoritário que emerge nessa disputa — as escolas cívico militares; (b) no combate à fome, que está limitado, segundo a Portaria 972 do MDS a cidades acima de 300.000 habitantes (clique aqui para ler) ou (c) nos repasses para o piso da enfermagem cuja ausência deixou as Instituições de longa permanência de idosos filantrópicas ao Deus-dará.
Essa vocação do Estado brasileiro, (quando está em mãos “piedosas” como é o caso hoje) para a caridade (um século XVIII) e não para a política pública universal, (o século XX) fenômeno que eu tenho chamado de melhorismo, sobrecarrega a dita comunicação do governo que se tornou mais estratégica do que deveria ser.
A comunicação tem que tentar fazer saber ao povo que não se beneficiou com uma dada política, da existência, sim, de terceiros beneficiados, noutras cidades e regiões e até, quem sabe, em outros bairros da sua própria cidade… (como se matar a fome de um pudesse aliviar a fome de outro através, não de comida, mas de uma narrativa)…
Ora, obviamente que no cenário de tragédia social do Brasil, que o que fala mais alto é a experiência vivida pelo povo da política oferecida e experimentada e não o ouvir dizer. O ouvir dizer só é suficiente para a classe média de esquerda que já resolveu sua vida no mercado, comprando tudo o que precisa e entende a política como um “já está bom, só falta convencer a ralé” sendo esse o papel estratégico a ser exercido pela comunicação.
A classe média de esquerda é um apparatchik que sabota a ascensão do povo
Essa classe média de esquerda entende que tudo já está ótimo e que é preciso tão somente fazer o povo pobre saber (cerebralmente) que o governo Lula está fazendo todas as políticas necessárias e “tudo o que pode”.
Como disse um pensador, não se pode analisar alguém pelo que ele acha que é, mas pelo que ele é. Tendo isso em vista, temos que considerar que, por uma questão de sobrevivência de classe, a classe média de esquerda tem que manter a concorrência com os de baixo num certo limite e não se interessa, nem é capaz de entender que o que o governo realmente precisa para galgar popularidade e credibilidade é que povo saiba, visceralmente que as políticas existem pelo seu acesso universal a elas.
Dessa forma 180 Institutos Federais são suficientes e ninguém sinaliza criticamente ao próprio governo que isso alcançará, no máximo, 5% dos alunos matriculados no Ensino Médio e que haverá mais não atendidos do que atendidos, o que pode fazer dessa iniciativa, que poderia ser a semente de uma política universal a ser ampliada ano a ano, num material inservível para as eleições!
Além disso, o fato de que o povo possa eventualmente não valorizar essa política ou que possa até, in extremis, preferir as escolas cívico-militares, é um problema de comunicação do governo, não sendo, absolutamente nem um problema de acesso aos Institutos Federais nem da indefinição de uma proposta definitiva e cidadã para o Ensino Médio, o que politizaria as maiorias!
Essa dimensão da politização escapa ao governo e aos setores da classe média de esquerda que o hegemonizam e o influenciam (é um apparatchik) fazendo o governo achar que tem um problema de comunicação quando o que falta é fazer chegar às políticas a todos, como o SUS pelo menos tenta fazer através da sua abordagem territorial da distribuição universal dos dispositivos de Saúde…
A emancipação das maiorias
O governo não entende que é o despertar das maiorias, ou a replicação da cidadania aos milhões o único lastro durável da democracia.
Ideal pequeno burguês, sempre à mercê de uma ressignificação pela meritocracia ou pela teologia da prosperidade, o alvo a atingir nos discursos é o empreguinho, o carrinho e a casinha, nunca é a participação popular na tomada de decisões e o empoderamento do povo pelo cumprimento das suas necessidades de inclusão social por meio de uma democracia vibrante e cidadã: isso nunca está no cardápio.
Não há um projeto de desenvolvimento qualitativo da vida das pessoas fundamentado no desenho de uma emancipação baseada na oferta de respostas aos problemas locais, (é onde as pessoas vivem) que são complexos variados e graves, com a devida participação social, peça chave da conversão do recebedor passivo da política em cidadão empoderado e protagonista…
Para ilustrar, noutro dia pensei ser do governo um projeto de iluminação noturna de uma aldeia indígena com painéis solares que me apareceu no Instagram. Antes de me entusiasmar descobri que o financiamento vinha de uma fundação privada. Se fosse proveniente do governo, encarnando a solução de uma necessidade enunciada pelos índios, a iniciativa teria o papel de politizar aquele povo indígena tornando-o protagonista do seu destino. Vindo de uma fundação privada, a benfeitoria corre o risco, a depender de quem tenha financiado, de produzir o efeito oposto…
Centrado no protagonismo político da tecnoburocracia de Brasília, não se previu uma “infantaria” para enfrentar essa problemática local das periferias e zonas rurais, que poderia ser coordenada por um urbanista no território, com orçamentos territoriais definidos, focado no planejamento territorial (da aldeia, zona rural ou do bairro) para a definição de um projeto local de desenvolvimento para a qualidade de vida e a contemporaneidade, capaz de incluir melhorias habitacionais, equipamentos sociais e políticas para a cultura, o esporte e o lazer (passando, por exemplo, pela solução da iluminação noturna das aldeias indígenas) e comprometido com o acesso universal…
Parece que achamos que a guerra política se ganha tão somente com artilharia pesada e publicidade. No entanto, qualquer guerra só se ganha, como é óbvio, com a ocupação do território.
O SUS tenta ocupar o território e poderia inspirar o governo. Mas não há ninguém realmente interessado em estudar sobre como aquilo que é obrigatório para o SUS (o acesso universal à saúde) modelou uma gestão e um financiamento e poderia inspirar o acesso, para além da caridade, a outros direitos, como o estratégico direito à cidade…
O Programa Periferia Viva do Ministério das Cidades, começa a se aproximar disso, mas há uma tremenda inércia a vencer.
Finalmente, dito tudo isso, em dezembro de 2024 se iniciarão os dois últimos anos do governo Lula.
O esforço de prospecção do futuro, de como poderíamos ser um país melhor, de como tudo isso estaria ao nosso alcance, das críticas e indignações de cada um de nós vão ter que ceder lugar à defesa do governo e à garantia de que os resultados do que foi plantado — ainda sem ser um projeto estruturante para o governo como um todo — possam emergir.
Sendo realista, a força da inércia do agora dificilmente permitirá mudanças de rumo ou redesenhos profundos na macropolítica do mastodonte que é o governo federal hegemonizado pelos gestores da classe média de esquerda para quem já deu.
A sorte está lançada. Preparemo-nos para lidar com isso, porque bom ou não, terá sido o que de melhor teremos conseguido fazer coletivamente nesse interminável século XVIII em que estamos.
*Ion de Andrade é médico, professor universitário e membro da Rede BrCidades.
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