Lições de uma greve

Imagem: Zhanna Leontyeva
image_pdf

Por WOLFGANG LEO MAAR*

Existe um inegável interesse coletivo e público sempre presente no cerne de cada trabalho de quem se dedica à educação e à saúde, por mais que seja voltado primordialmente a seus interesses próprios

A greve nas universidades federais deixa algumas questões a demandar lição de casa para quem defende políticas que conduzam a um país soberano, democrático e justo.

Há um contingente grande de trabalhadores empenhados em um trabalho que, por pressuposto, nessa sociedade capitalista extremada é um dos menos alienados e alienantes que restaram. Com estruturas organizativas democráticas colegiadas estruturadas há décadas por iniciativa dos próprios trabalhadores, quase formando um modelo, um laboratório da sociedade que queremos.

Estudaram por longos anos e em seu lugar de trabalho se relacionam pautados só pela via da ciência, do conhecimento, seu alvo primordial como antítese perfeita do terraplanismo em vigor nessas terras há muito pouco tempo com mortes e opressão. Não portam armas exceto as do convencimento, motivo pelo qual são realmente essenciais, embora desprovidos da exclusividade desse uso da força do bom argumento.

Ao contrário: pretendem que o conhecimento seja de fato como a rigor ele é – a base legitimadora da democracia como forma social a orientar toda vida política, a lhe conferir potência e poder. Conhecimento vale mais do que fuzil; seria o caso de reivindicar aqui uma hierarquia para reajustes? Para educação e saúde fora de qualquer contingenciamento?

Bons argumentos tais como aquele que conclui pela afirmação de que recursos para educação (e poderíamos acrescer: bem como para a saúde) não são gastos, mas investimento.

Existe um inegável interesse coletivo e público sempre presente no cerne de cada trabalho de quem se dedica à educação e à saúde, por mais que seja voltado primordialmente a seus interesses próprios. Mas são trabalhadores que, sob o regime do capital, devem ser valorizados.

No caso em pauta, em sua maioria pessoas que não costumam falar alto e não tem como hábito se manifestar em público, nem proferir grandes discursos ou bater no peito para bradar vantagens. Mesmo assim, num momento de grande apatia e comodismo político, resolveram ser grevistas. Há um esforço impossível de ser minimizado nessa atitude, motivado pelo sentimento de penúria e descaso a avançar em seu cotidiano.

E mesmo assim: é pouco o que pleiteiam. As boas universidades no Brasil são de baixíssimo custo se comparadas internacionalmente e rendem frutos excelentes que não podem ser diminuídos, voltados à coletividade pública. Universidades são indispensáveis e não aguardam outra atitude que não a demanda para que formem o conhecimento, único recurso que pode nos levar adiante e além. Merecem reconhecimento!

As atitudes desses brasileiros e brasileiras demonstram a indiscutível dificuldade, as contradições de políticas de contenção de investimentos que são impostas pelas forças capitalistas de plantão. E como tal devem ser interpretadas: não são contra o governo; são contra as coações do capital financeiro rentista e nesse sentido aliam-se aos próprios interesses governamentais, auxiliando os mesmos a adquirir força social para se impor. O trabalho não está calado, atordoado! A memória viva desse conflito é a lição.

Já disse alguém: sonham grande e querem realizar seu sonho. Nada mais. O do bem sonhado país.

*Wolfgang Leo Maar é professor titular sênior do Departamento de filosofia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
3
Estoicismo e mindfulness
16 Dec 2025 Por PAULO VITOR GROSSI: Considerações sobre técnicas mentais para a sobrevivência humana no século XXI
4
A riqueza como tempo do bem viver
15 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: Da acumulação material de Aristóteles e Marx às capacidades humanas de Sen, a riqueza culmina em um novo paradigma: o tempo livre e qualificado para o bem viver, desafio que redireciona o desenvolvimento e a missão do IBGE no século XXI
5
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
6
Norbert Elias comentado por Sergio Miceli
14 Dec 2025 Por SÉRGIO MICELI: Republicamos duas resenhas, em homenagem ao sociólogo falecido na última sexta-feira
7
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
A crise do combate ao trabalho análogo à escravidão
13 Dec 2025 Por CARLOS BAUER: A criação de uma terceira instância política para reverter autuações consolidadas, como nos casos Apaeb, JBS e Santa Colomba, esvazia a "Lista Suja", intimida auditores e abre um perigoso canal de impunidade, ameaçando décadas de avanços em direitos humanos
10
A contradição entre o discurso nacionalista e a prática neoliberal do governo Lula
13 Dec 2025 Por VICTOR RIBEIRO DA SILVA: A escolha política por um neoliberalismo de "rosto humano", visível no Arcabouço Fiscal, no leilão do petróleo equatorial e na hesitação com a Venezuela e a Palestina, expõe uma soberania apenas discursiva, que evita confrontar os pilares do poder
11
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
12
Ken Loach: o cinema como espelho da devastação neoliberal
12 Dec 2025 Por RICARDO ANTUNES: Se em "Eu, Daniel Blake" a máquina burocrática mata, em "Você Não Estava Aqui" é o algoritmo que destrói a família: eis o retrato implacável do capitalismo contemporâneo
13
A anomalia brasileira
10 Dec 2025 Por VALERIO ARCARY: Entre o samba e a superexploração, a nação mais injusta do mundo segue buscando uma resposta para o seu abismo social — e a chave pode estar nas lutas históricas de sua imensa classe trabalhadora
14
Violência de gênero: além do binarismo e das narrativas gastas
14 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Feminicídio e LGBTfobia não se explicam apenas por “machismo” ou “misoginia”: é preciso compreender como a ideia de normalidade e a metafísica médica alimentam a agressão
15
Benjamim
13 Dec 2025 Por HOMERO VIZEU ARAÚJO: Comentário sobre o livro de Chico Buarque publicado em 1995
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES