Defender Maria da Penha

Imagem: Ayaan Sulaiman
image_pdf

Por EVA ALTERMAN BLAY*

Lutar pela vida das mulheres, pelo avanço da ciência, em nome dos mortos pela falta de vacinas, contra o retorno da ignorância, contra a direita conservadora autoritária

Maria da Penha está sendo ameaçada de morte. Foi necessário que a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, recorresse ao governador do Ceará, Elmano de Freitas, para incluí-la no sistema de proteção. Por que querem matar uma mulher que escapou por duas vezes do ex-marido que atentara contra sua vida e que, na segunda, a deixou paralítica?

Foi tão escandalosa a posição do Brasil na época, de deixar o criminoso em liberdade, que se levantou uma enorme revolta do movimento liderado pelas feministas. Só quando o caso foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que o Brasil foi obrigado a rever e condenar o criminoso para evitar que o próprio Brasil fosse condenado.

Hoje, até as crianças sabem que existe uma lei para proteger as mulheres, a Lei Maria da Penha. Ironicamente, a lei que leva seu nome não a protege!

O Brasil lidera os feminicídios e estupros de mulheres e meninas, além de todas as formas de violência física, sexual, psicológica, entre outras. Certamente essas violências são a resposta do patriarcado às mulheres – de todas as classes sociais, etnias, origens, idades que romperam o “cercado” que as confinava.

O machismo não aceita mudanças que arranhem seu poderio, reluta que se modifique a configuração da família heterossexual; que o casamento seja entre pessoas do mesmo sexo; que aumentem famílias de mulheres solo; que a maternidade deixe de ser romantizada; que as mulheres tenham o poder de diminuir o número de filhos.

As mulheres diversificaram os campos de trabalho, ocupando o setor serviços, as áreas cientificas e a pesquisa; elevou-se a proporção de mulheres de nível universitário. A sexualidade deixou de ser um privilégio masculino, libertou-se o corpo da mulher.

Frente a esse novo cenário, aumentaram e se diversificaram as agressões. Ataques crescem conforme as mulheres entram na política – local, estadual ou federal. Constrangimentos morais, assédio sexual e homofobia se iniciam desde a fase pré-eleitoral, dificultando a filiação de mulheres nos partidos políticos. São perseguidas nas campanhas e as pressões endurecem durante o exercício dos mandatos.

Não será demais refletir que, para resistir à igualdade de gênero, a Câmara e seu presidente tivessem desenterrado o PL 1904, que prevê dificultar o aborto legal, limitando-o a 22 semanas de gestação! E bastaram 23 segundos para aprovar a tramitação em regime de urgência de tal aberração! A intensa e nacional reação popular fez que o projeto fosse retirado de pauta (mas, atenção, ele voltará no segundo semestre).

O recuo do presidente da Câmara dos Deputados ao interferir numa questão vital para as mulheres revelou como a sociedade estava acompanhando a vida política muito mais atentamente do que a classe política imaginava. Poucas vezes vimos no Brasil manifestações de jovens mulheres e outras com mais de 70 anos, além de homens carregando crianças, afirmando que voltavam às ruas para mais uma vez defender direitos conquistados em 1940 e ratificados na Constituição de 1988.

Vozes que gritavam contra o conservador e autoritário governo de Jair Bolsonaro, que fechara instituições criadas nos governos anteriores para enfrentar a violência de gênero. Clamavam pela reabertura dos hospitais e do SUS para atender casos de estupro e de aborto legal.

Defender Maria da Penha significa lutar pela vida das mulheres, pelo avanço da ciência, em nome dos mortos pela falta de vacinas, contra o retorno da ignorância, contra a direita conservadora autoritária. Maria da Penha nos revigora para lembrar cotidianamente os direitos humanos de todos e todas, e que vamos lutar contra os que querem destruir a própria democracia.

*Eva Alterman Blay é professora titular aposentada do Departamento de Sociologia da USP e ex-senadora. Autora, entre outros livros, de O Brasil como destino: raízes da imigração judaica contemporânea para São Paulo (Unesp).

Publicado originalmente no Jornal da USP.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
7
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
14
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES