A falta da justa medida – o DNA de nossa cultura

Imagem: Elijah O'Donnell
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LEONARDO BOFF*

Não temos outra saída, se quisermos continuar sobre este planeta, senão voltar à ética do cuidado de todas as coisas, de nossas vidas e principalmente da justa medida

Para onde quer que dirijamos nosso olhar o que mais salta aos olhos, é a falta de medida, o excesso, o exagero, a ausência do caminho do meio, o nem demais e o nem de menos, o desequilíbrio em praticamente em todos os campos.

A justa medida é testemunhada em todas as grandes tradições éticas das culturas mundiais. No pórtico do grande templo em Delfos estava escrito em letras garrafais: méden ágan o que quer dizer “nada de excesso”. O mesmo se via nos pórticos dos templos romanos: ne quid nimis: “nada de menos nem demais” A justa medida se opõe à toda ambição exacerbada (hybris). Demanda o autocontrole, o senso do equilíbrio dinâmico e a capacidade de impor limites a nossos impulsos. Ora, é exatamente o que nos falta a nível mundial. A falta da justa medida pertence ao DNA de nossa cultura hoje planetizada.

Isso se nota claramente no sistema econômico-político-social-comunicacional predominante. A mais flagrante amostra da falta da justa medida é o capitalismo. Lá onde se instala surge imediatamente a desigualdade entre os donos do capital que tudo possuem e decidem e os trabalhadores que apenas vendem suas capacidades, quer dizer, se instala imediatamente a ruptura da justa medida.

Os mantras do capitalismo em suas várias versões são mantidos inalterados: a busca da ilimitada acumulação para benefício individual ou corporativo, mesmo sabendo dos limites de nosso planeta, seu motor é a concorrência sem qualquer laivo de cooperação, a pilhagem dos bens e serviços da natureza sem tomar em conta a sustentabilidade necessária, a flexibilização de todas as leis para escancarar todas as portas para o processo de exploração e de enriquecimento, a pressão para criar o Estado mínimo, pois é visto como empecilho à dinâmica da expansão do capital.

O efeito deste processo é aquilo que o economista Eduardo Moreira, ex-banqueiro transformado num dos maiores formuladores de consciência crítica de nosso país e o principal idealizador do Instituto Conhecimento Liberta (ICL): “O 1% dos donos de terras concentram mais de 50% das terras cultiváveis do país; quando consideramos o volume de dinheiro, o 1% mais rico do mundo possui mais reservas acumuladas do que os 90% mais pobres; uma verdadeira catástrofe social” Este é um exemplo gritante de nossa absoluta falta de medida.

Essa falta de medida caracteriza igualmente as grandes mídias mundiais, seja escritas, digitais e a meia dúzia de plataformas da internet (Google, Meta, Facebook, Instagram, TikTok, X, Youtube e outras) nas mãos de um punhado de pessoas poderosíssimas.

A falta de medida revela-se profundamente brutal na relação para com a natureza, desde séculos explorada, e nas últimas décadas devastada a tal ponto de alguns cientistas terem proposto a inauguração de uma nova era geológica, o Antropoceno (o ser humano é o fator principal da destruição da natureza), radicalizado no necroceno (dizimação da biodeversidade) e ultimamente no piroceno (o aumento crescente dos grandes incêndios) por quase todas as partes do planeta.

Talvez uma das maiores demonstrações da falta da justa medida nos é dada pela mudança climática, já instalada a ponto de ser considerada pelos grandes órgãos mundiais como irreversível. A emissão de gases de efeito estufa ao invés de diminuir está aumentando; em razão da crise energética voltou-se ao uso de carvão, de petróleo e o gás, altamente poluentes e ainda devido à insuficiência das energias alternativas. A mudança climática não freada, acrescida com o aumento populacional, pode levar a um impasse o futuro da vida humana e tornar o planeta inabitável.

Entre as muitas causas que nos levaram a esse perigoso estágio é seguramente o rompimento da “matriz relacional”. Olvidamos que todas as coisas são inter-relacionadas. Na linguagem poética do Papa Francisco em sua encíclica de uma ecologia integral (Sobre o cuidado da Casa Comum) “o sol e a lua, o cedro e a florzinha, a águia e o pardal (…) significam que nenhuma criatura se basta a si mesma; elas só existem na dependência de umas das outras, para se completarem mutuamente no serviço uma das outras”(n. 85).Aqui aparece a justa medida natural, rompida pelas ciências e pelos muitos saberes.

A modernidade se funda sobre a atomização dos saberes, das coisas tidas sem um valor intrínseco e postas ao desfrute dos seres humanos ou, na pior tendência, à acumulação sem limites de bens meramente materiais. Assim surgiu o mundo das coisas; inclusive as mais sagradas também órgãos humanos foram transformados em mercadoria a ser posta no mercado e ganhar o seu devido preço, coisa já prenunciada por Marx em 1847 em sua Miséria da filosofia e sistematizada em 1944 por Karl Polaniy em sua obra A grande transformação.

Como sair desta enroscada de dimensões trágicas? Não temos outra saída, se quisermos continuar sobre este planeta, senão voltar à ética do cuidado de todas as coisas, de nossas vidas e principalmente da justa medida. Ela e o cuidado poderão salvar o futuro de nossa civilização e de nossa permanência na Terra.

Preocupado com esta questão máxima, de vida e de morte, escrevi dois livros, fruto de vasta pesquisa transcultural. O primeiro foi publicado em 2022 O pescador ambicioso e o peixe encantado: a busca da justa medida. Nele preferi o gênero narrativo com o uso de contos e mitos ligados à justa medida. O segundo completa o primeiro, A busca da justa medida: como equilibrar o planeta Terra. Neste segundo procurei de uma forma mais científica ir às causas que nos levaram a olvidar a justa medida, exatamente a perda da matriz relacional.

Por mais que nos esforcemos em crer só o retorno à justa medida e à ética do cuidado nos poderão salvar, sempre fica angustiante pergunta:dada a universalização da grave crise existencial, temos ainda tempo e sabedoria suficientes para operarmos esta conversão? A esperança nunca morre e não nos deverá defraudar.

*Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Sustentabilidade: O que é – O que não é (Vozes). [https://amzn.to/4cOvulH]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O veto à Venezuela nos BRICSMÁQUINAS FOTOGRÁFICAS 19/11/2024 Por GIOVANNI MESQUITA: Qual seria o maior desaforo ao imperialismo, colocar a Venezuela nos BRICS ou criar os BRICS?
  • Balanço da esquerda no final de 2024Renato Janine Ribeiro 19/11/2024 Por RENATO JANINE RIBEIRO: A realidade impõe desde já entender que o campo da esquerda, especialmente o PT, não tem alternativa a não ser o nome de Luiz Inácio Lula da Silva para 2026
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Notas sobre a disputa em São Paulogilberto maringoni 18/11/2024 Por GILBERTO MARINGONI: É preciso recuperar a rebeldia da esquerda. Se alguém chegasse de Marte e fosse acompanhar um debate de TV, seria difícil dizer quem seria o candidato de esquerda, ou de oposição
  • O perde-ganha eleitoralJean-Marc-von-der-Weid3 17/11/2024 Por JEAN MARC VON DER WEID: Quem acreditou numa vitória da esquerda nas eleições de 2024 estava vivendo no mundo das fadas e dos elfos

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES