Ainda os hospitais federais do Rio de Janeiro

Imagem: Tejas Prajapati
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Por PAULO CAPEL NARVAI*

A se manterem federalizados os hospitais do RJ, então por que não dar idêntico tratamento aos demais hospitais, ambulatórios e unidades de saúde do SUS, em todo o país?

O diálogo democrático, disse Jürgen Habermas, supõe aceitar a verdade do outro, seja qual for, ainda que se discorde dela. O que o outro declara de si e do que pensa não pode ser deturpado, nem falsificado, nem alterado. Isso significa que, se o seu interlocutor disser que é vascaíno, isso precisa ser aceito, você goste ou não.

Não vale atribuir a ele a condição de flamenguista e seguir dialogando com base em argumentos do tipo “bom, já que você é flamenguista…”. Não vale. Não é democrático. Não é, propriamente, diálogo. Proceder assim, diz mais de você do que do seu interlocutor.

Menciono o filósofo e sociólogo alemão, ilustre membro da Escola de Frankfurt, que tanto contribuiu para o desenvolvimento da teoria crítica, apenas para me defender do que me parece uma manifestação dessa falsificação da posição do outro.

Publiquei no site A Terra é Redonda dois artigos (“Hospitais federais do Rio de Janeiro – o pó para debaixo do tapete?” e “Hospitais federais do Rio de Janeiro”) sobre a crise dos hospitais cariocas. No primeiro, de 22/3/2024, escrevi com todas as letras que o principal problema dos hospitais federais do Rio de Janeiro é ainda serem hospitais federais no Rio de Janeiro. No segundo artigo, de 11/7/2024, escrevi que a descentralização dos hospitais federais do Rio de Janeiro não deve ser combatida nem saudada, ela é uma necessidade.

Alguns dias após a publicação, o “Movimento Unificado em Defesa da Rede Federal/MS” divulgou uma nota intitulada “Privatizar o SUS faz mal à saúde!”, com um subtítulo “Resposta ao artigo do Professor Paulo Capel”. O teor do documento me surpreendeu. Eu esperava encontrar argumentos e propostas para superar a crise que, afinal, é o que importa – não responder a mim. Mas nada encontrei com essa perspectiva. Espantou-me, porém, algumas alterações do que escrevi e, sobretudo, a tentativa de me colocar ao lado de mentores da privatização dos hospitais do SUS na cidade, algo que, evidentemente, rejeito frontalmente. Nada do que venho fazendo e tenho escrito, há pelo menos quatro décadas, autoriza essa deformação do que penso.

Após afirmar que “apreciamos a crítica”, a nota ressalva que “concordamos em parte”, pois “é verdade que a descentralização faz parte do projeto original do SUS, mas é preciso considerar as profundas transformações que o sistema vem sofrendo desde então”.

Não é que a descentralização “faz parte”. Ela fez parte.

Atualmente, não se trata mais de projeto. A descentralização é um imperativo legal, pois está inscrita na Constituição da República, no art.198, que diz que “as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único”. Ao definir essa rede, a Constituição Federal de 1988 afirma que ela tem três diretrizes, sendo uma delas (artigo 198, parágrafo I) a “descentralização, com direção única em cada esfera de governo”. Não se trata, portanto, apenas do “projeto original do SUS”, nem da minha opinião, mas do texto da Carta Magna, à qual toda a legislação infraconstitucional se subordina.

É correto que o SUS, como escreveu Flávio Goulart, e Gilson Carvalho gostava de dizer, “é um sistema de saúde esculpido a golpes de portarias”, tantas tem sido as portarias que o regulamentam. Não desconheço, portanto, “as profundas transformações que o sistema vem sofrendo desde então”. O meu ponto, nesse episódio, é que apesar de tantas mudanças, a situação institucional dos hospitais do SUS no Rio de Janeiro segue ainda no período histórico pré-Constituição de 1988, cujas normas seguem sendo violadas. É tempo, pois, de superar esse atraso e promover as mudanças requeridas pela lei, conforme oportuna iniciativa da ministra da Saúde Nísia Trindade.

A nota contém ilações, como afirmar que a Portaria GM/MS nº 4.847, de 5 de julho de 2024, que “estabelece a descentralização dos serviços do Hospital do Andaraí, órgão público federal, para a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro” (PMRJ), assegurando ao Hospital Federal do Andaraí (HFA) recursos e pessoal para que não sejam interrompidas as ações e serviços e dispõe que a gestão do HFA seja compartilhada pela União e a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, por 90 dias, prorrogáveis se necessário, até a normalização administrativa, “envolve interesses eleitorais” e “ignora completamente os princípios do SUS de universalidade, integralidade e equidade”.

É possível, decerto, contra-argumentar em defesa da manutenção do status quo, reduzindo o complexo processo institucional carioca a supostos “interesses eleitorais” e utilizando os princípios do SUS que estão a nos desafiar em todo o país, como elementos para convencer leitores. Mas, a meu ver, as circunstâncias em que o problema dos hospitais do SUS no Rio de Janeiro se agudizou, não são resultantes da agenda eleitoral, embora tais conexões sejam cogitadas.

Contra essa interpretação, deve-se assinalar que a iniciativa do governo federal se dá após mais de três décadas de postergações de decisões que deveriam ter sido tomadas, como o foram em todas as demais capitais brasileiras, no início dos anos 1990, após as sanções das leis 8.080 e 8.142, que regulamentam o funcionamento do SUS em todo o Brasil. Pode-se, claro, cogitar conexão entre a Portaria e as eleições. Pode-se, mas, conhecendo a história desse longo processo, não se deveria. Daí a brandir “Fora Nísia”, e promover o enterro simbólico da ministra de Lula em ato público, vai uma distância gigantesca.

A afirmação de que “a nossa luta é exatamente pela preservação dos pilares do sistema, conforme aprovado em 1988 e regulamentado em 1990” não é apenas uma interpretação equivocada dos princípios e diretrizes do SUS, mas uma grosseira alteração do que significam, sob qualquer perspectiva.

A afirmação de que “o próprio professor reconhece que a consequência natural da municipalização do Andaraí será a privatização do hospital pelo atual prefeito” é uma deformação do que afirmei e que, obviamente, rejeito. “Natural” é um termo que não utilizei em meu artigo, que tem quatro seções, 33 parágrafos e 2.762 palavras, por uma razão elementar: nada nesse processo é natural. Tudo nele é social e político.

O que disse e repito é que “o ruim desse cenário de vazio propositivo, é que sua principal consequência acaba sendo o fortalecimento de teses que advogam soluções que visam a privatizar os hospitais. Por essa razão, é crucial, urgente, criar alternativas considerando que nada está dado, que é possível lutar e vencer, barrando a privatização do SUS no Rio de Janeiro”.

Ou seja, eu disse justamente o oposto do que a mim foi atribuído, ressaltando a imperiosa necessidade de serem criadas alternativas à privatização e reiterando que o finca-pé da alternativa única de “federalizar ou federalizar”, isso sim ajuda quem tem projeto para privatizar o SUS na cidade. Não entanto, ao invés de criar as alternativas requeridas politicamente, o movimento preferiu deturpar a minha posição sobre o caso. É a velha tática de quebrar o termômetro ao invés de enfrentar a febre.

Sobre os malefícios que a privatização impõe aos sistemas universais de saúde, como o SUS no Brasil e o NHS na Inglaterra, para ficar em apenas dois exemplos bem conhecidos, tenho concordância com o movimento. Mas também rejeito esse argumento para justificar o status quo. E estou plenamente de acordo em que, até onde estou informado, a condução do processo “feriu os princípios do SUS (…), pois a portaria que criou o grupo de trabalho para estudar a situação dos hospitais federais não respeitou a obrigação de envolver os servidores da saúde”.

Infelizmente, a lei não determina essa alegada obrigatoriedade, mas o princípio da gestão participativa, que advogo, sim. Falhou nisso, o governo federal, embora não houvesse qualquer impedimento a que a representação dos servidores do SUS encaminhasse, formalmente, ao Ministério da Saúde suas proposições para superar a crise.

É evidente, porém, que se tudo o que se tinha a propor ao órgão, é o que tem sido divulgado, de “federalizar ou federalizar”, então ter participado não ajudaria muito, pois além de ter voz é preciso ter o que propor. Pelo que tenho lido, e por informações que tenho recebido de colegas do Rio de Janeiro, o movimento segue com enormes dificuldades para avançar propositivamente, na direção do que almejam os trabalhadores do SUS, no Rio de Janeiro e em todo o país. Simplesmente, não há propostas para colocar na mesa de negociações.

Com a afirmação de que “não podemos olhar para a história do SUS de forma simplista, ignorando as profundas transformações pelas quais o sistema vem passando”, o movimento insinua que as considerações que apresentei nos dois artigos a que me referi seriam simplistas. Pode ser. Mas esse julgamento eu deixo aos leitores.

Do tom acusatório, vindo do movimento, eu discordo, pois penso o oposto: a mim, o que parece demasiado simplista são os argumentos empregados para tentar justificar uma ilegalidade que busca, para o Rio de Janeiro, um tratamento privilegiado em relação às demais capitais e municípios brasileiros. A se manterem federalizados os hospitais do Rio de Janeiro, então por que não dar idêntico tratamento aos demais hospitais, ambulatórios e unidades de saúde do SUS, em todo o país?

Mas os integrantes do movimento acusam-me de promover “um engodo”, ao dizer que “o governo federal não pode gerir hospitais federais”. Reitero: o governo federal não tem de gerir hospitais do SUS. Não lhe compete. Não é o que a Constituição Federal estabelece. Não é o que determinam as leis 8.080 e 8.142. Ao indagar “quem são os gestores do Instituto Nacional do Câncer e dos hospitais da Fiocruz, como o Fernandes Figueira?” o movimento revela a sua dificuldade em distinguir o que são hospitais do SUS, cuja missão é produzir cuidados hospitalares para a população, conforme o estatuto de cada instituição, do que são hospitais de pesquisa e hospitais de ensino. Sim, são todos hospitais. Mas são unidades com missões e características distintas.

Ignorar essa distinção elementar entre os diferentes tipos de hospitais, segundo suas finalidades institucionais, leva a erros, como esses que estão sendo cometidos, e que não se resolvem com reiterações de compromissos, como se faz na nota, de que “a luta é pela defesa do projeto original do SUS, não pela criação de dois grupos antagônicos. Nós sabemos de que lado estamos: em defesa do sistema público de saúde, universal e equitativo”.

Essas reiterações, embora importantes e necessárias, não ocultam a ausência de proposições que contribuam para superar a crise. Mas, sobretudo, não servem para se opor às considerações que fiz, pois eu também estou na “luta em defesa do projeto original do SUS” e sei de que lado estou: em defesa do SUS, como um sistema de saúde, estatal, público, produtor de cuidados integrais de saúde, com acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, descentralizado, regionalizado, e com participação da comunidade.

É inútil, portanto, tentar me colocar em outro lado. E reitero: a resposta não deve ser a mim, mas ao governo federal.

*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP. Autor, entre outros livros, de SUS: uma reforma revolucionária (Autêntica). [https://amzn.to/46jNCjR]


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