Por TADEU ALENCAR ARRAIS*
Há várias formas de interpretar os homicídios praticados por condutores de veículos da marca Porsche
“Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos”
(Rubem Fonseca, Passeio noturno, parte I, p. 397).
“Quem é preto como eu, já tá ligado qual é \ Nota fiscal, RG, polícia no pé”.
(Racionais MC’s. Qual mentira vou acreditar).
Rubem Fonseca foi um dos mais talentosos escritores brasileiros. O gosto pessoal por sua literatura reside no fato de que o escritor mineiro traduziu, mesmo nos mais curtos textos, as contradições de um país marcado por uma intensa desigualdade social e uma urbanização precoce que concentrou os excedentes socialmente produzidos nas mãos de poucos. Em seus textos não encontramos dados, estatísticas ou mesmo eufemismos para disfarçar a crueldade que parece brotar da sociedade urbana. Apenas e, tão somente, a nua e crua violência urbana traduzida em palavras. Esse modelo de urbanização, que concentra os excedentes, promove aqueles encontros explosivos narrados por Rubem Fonseca. Os homens de bem, pais de família irrepreensíveis, empresários de sucesso, de um momento para o outro, retiram suas máscaras e revelam a indiferença, a crueldade e, principalmente, a crença na impunidade. Não há qualquer insinuação moral que os impeça de exercitar, no anonimato dos passeios noturnos, o sadismo. É exatamente assim que interpreto, quase meio século após a publicação dos contos Passeio Noturno I e II, os recorrentes eventos evolvendo, de um lado, condutores de carros de luxo e, de outro lado, trabalhadores precarizados. O Jaguar utilizado para matar, na ficção, duas pessoas, tem o mesmo DNA do Porsche que tem, com frequência, perseguido e assassinado trabalhadores precários nas noites urbanas.
Data | Vítima | Homicida | Local | ||
Idade | Profissão | Idade | Profissão | ||
22/03/2024 | 39 | Entregador por Aplicativo | 33 | Empresário | Campo Grande (MS) |
31/03/2024 | 52 | Motorista por Aplicativo | 24 | Empresário | Zona Leste de São Paulo (SP) |
29/07/2024 | 21 | Entregador | 27 | Empresário | Zonal Sul de São Paulo (SP) |
01/08/2024 | 47 | Trabalhador Rural | 24 | Influenciador | Teresópolis (RJ) |
Fonte: Campo Grande News (2024), G1.globo (2024), O Globo (2024).
Há várias formas de interpretar os homicídios praticados por condutores de veículos da marca Porsche. São casos, certamente, circunscritos ao campo penal. Não deixa de ser interessante, no entanto, refletir sobre a recorrência desses eventos e o perfil dos condutores. Não é difícil imaginar esses perfis. O preço de um Porsche, segundo revista especializada, pode variar de R$ 490,000,00 até R$ 1.920,000,00. O preço, entretanto, não é uma barreira intransponível para a para fração mais abastada da população brasileira. Segundo informações da UOL-Motor (2023), o Porche 911, em 2023, teve mais emplacamentos que o Honda Civic. Encontrar um Porsche selecionando suas presas nas noites urbanas não é, necessariamente, uma novidade. Isso mesmo. O Porsche, como um predador, espera, espreita, escolhe, persegue, aniquila, suas vítimas. É exatamente assim que a imprensa corporativa, com frequência, tem interpretado os homicídios. É tão verdade que a própria Porsche, no início de agosto, apressou-se em divulgar essa malograda nota:
É com profundo pesar que a Porsche lamenta o acidente que vitimou Pedro Kaique Figueiredo. Apresentamos nossas mais sinceras condolências à sua família e amigos. A Porsche Brasil reafirma seu comprometimento com a segurança nas estradas e o respeito às normas estabelecidas no Código Nacional de Trânsito. A empresa não possui qualquer vínculo com o motorista envolvido no acidente. Investimos extensivamente em programas de treinamento de condução como forma de ampliar a segurança no uso dos automóveis. Oferecemos também um amplo portfólio de oportunidades para utilização dos veículos em ambientes seguros e controlados. Que a lembrança deste e de outros trágicos acontecimentos inspire a reflexão e a promoção de uma conduta mais segura e responsável. (O Globo, 02/08/2024)
A nota de pesar tem o mesmo efeito de um hipotético comunicado retroativo da Chrysler desculpando-se pelo desvio de caráter de seu Plymouth Fury (1958), veículo protagonista do filme Christine, o carro assassino, clássico de terror inspirado em Stephen King. A Porsche insiste em classificar o homicídio como acidente porque não pode macular sua marca, afinal, “luxo e desempenho andam juntos” (Porsche, 2024). É impossível, no entanto, dado a velocidade das informações que correm nas redes sociais, proteger seus distintos consumidores. O perfil desses consumidores não é coincidência. São, invariavelmente, apresentados pela imprensa corporativa como jovens empresários de sucesso ocupados em desfrutar dos prazeres etílicos das noites urbanas. Essa mesma imprensa, quase nunca, divulga os feitos que justificam o substantivo empresário. No Brasil, a riqueza, como querem nos fazer acreditar, nunca vem do berço. Basta escolher, como consta na genial letra dos Racionais MC´s, em Qual mentira vou acreditar.
Do outro lado do para-brisa, depois de perseguições, colisões traseiras e laterais, restos, vísceras, sangue, de indivíduos que só tinham em comum o trabalho noturno e o infortúnio de encontrar um Porsche em seu caminho. É o precarizado que povoa as ruas, avenidas e vielas, vencendo sinais e uma variedade de assédios para transportar comida. São os, outrora, heróis da Pandemia da Covid-19. Se pedalando ou acelerando em motocicletas de baixas cilindradas, não importa, o objetivo é conseguir o máximo de corridas para aumentar o score e, por consequência, a miúda remuneração. Raramente ultrapassam o valor de 1 R$ por quilometro rodado. São, ao juízo desses condutores homicidas, descartáveis. Suas mães e pais, acordados na madrugada periférica com más notícias, não carregam habeas corpus preventivos ou mesmo números de telefones de bancas de advogados de prestígio para defender sua prole. Seus filhos, jovens, também negros, foram reconhecidos, como cantou Elsa Soares, em A Carne, debaixo do plástico.
Enfim, se os homicídios tivessem sido cometidos por Pereba, personagem do conto Feliz Ano Novo, enquanto pilotava o Opala puxado, certamente a mídia corporativa, o judiciário e as famílias de bem adeptas do justiçamento do Velho Testamento, já o teriam condenada à morte. Diriam, como sempre, que é um defeito de nascença. Mas o que não podemos deixar de sublinhar é que Pereba desprezava as madames e os playboys. Por isso, motivado por um genuíno sentimento de classe, Pereba jamais assassinaria um precarizado periférico que tentava levar o pão para casa. Cuidado! Há mais Perebas do que Porsches no Brasil. Isso deveria significar algo.
*Tadeu Alencar Arrais é professor titular do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Referências
Christine, o carro assassino. In: https://www.netflix.com/br/.
Fonseca, Rubem. Passeio noturno. Parte I. In: FONSENCA, Rubem. Contos Reunidos. São Paulo, Cia das Letras, 1994.
Fonseca, Rubem. Passeio noturno. Parte II. In: FONSENCA, Rubem. Contos Reunidos. São Paulo, Cia das Letras, 1994.
Fonseca, Rubem. Feliz Ano Novo. In: FONSENCA, Rubem. Contos Reunidos. São Paulo, Cia das Letras, 1994.
Reincidente dono de bar… In: https://www.campograndenews.com.br/cidades/capital/reincidente-dono-de-bar-que-dirigia-porsche-alega-que-nao-notou-atropelamento.
Motorista de Porsche amarelo chora… In: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/08/03/video-motorista-de-porsche-amarelo-chora-em-audiencia-na-justica-que-manteve-prisao-por-atropelar-e-matar-motociclista.ghtml.
Dono de Porsche que matou lavrador… In:https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2024/08/05/dono-de-porsche-que-matou-lavrador-no-rio-segue-foragido-saiba-quem-e-o-influenciador-envolvido-em-acidente-fatal.ghtml.
Página Inicial. In: https://www.porsche.com/brazil/pt/
Veja qual é o modelo mais barato… In: https://motorshow.com.br/porsche-veja-qual-e-o-modelo-mais-barato-e-o-mais-caro-vendido-no-brasil/.
Porsche lamenta mais uma morte… In:https://oglobo.globo.com/brasil/sao-paulo/noticia/2024/08/02/porsche-lamenta-mais-uma-morte-em-acidente-e-pede-por-conduta-responsavel-ao-volante.ghtml.
Porsche cresce 61% no Brasil; 911 emplaca mais que o Honda Civic. In:https://motor1.uol.com.br/news/704713/vendas-porsche-brasil-mundo-numeros/.
Racionais MC’s. Qual mentira vou acreditar. In: https://www.youtube.com/watch?v=7NNYP67AKpM.
Soares, Elza. A carne. In: https://www.youtube.com/watch?v=yktrUMoc1Xw.
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