Por LAYMERT GARCIA DOS SANTOS*
Palestina Livre está lá, fulgurando, trazendo a promessa de futuro para o povo mais violentado do século XXI
No ensolarado domingo, 18 de agosto de 2024, na esquina da Avenida Paulista com a Rua da Consolação, região central de São Paulo, foi inaugurado com uma festa-manifestação de protesto um mural de quase 400 m2 que rompe, no coração da metrópole, com a invisibilidade do martírio do povo palestino.
Encimado pelos dizeres Palestina Livre, dois jovens palestinos, um homem e uma mulher, envoltos em bandeiras, avançam, sob o nascer do sol, ao encontro de quem sobe do centro da cidade para a avenida Paulista e os Jardins. Seus rostos, gargantas e mãos são espelhados e irradiam, conforme a incidência dos raios de sol. Abaixo deles, o enunciado maior de todos, nestes tempos sombrios: Genocídios nunca mais.
Isso mesmo, no plural. Porque é preciso romper essa linha infame que liga o massacre dos povos indígenas das Américas e da África, a “limpeza social e étnica” executada pelos europeus nas Colônias, o Holocausto que Adolf Hitler importou para aprimorar a matança e implantá-la em escala industrial no coração da Europa, e, agora, a “solução final” que o Estado israelense reserva para o povo de Gaza, antes de estendê-la para a Cisjordânia.
Os paulistanos estão acostumados com os grafites e pixações cobrindo e/ou colorindo as ruas, avenidas e prédios da cidade, com suas grafias bizarras e enigmáticas e seus seres fantasmagóricos e sarcásticos, quando não lisérgicos. Também já se habituaram com empenas decorativas, exaltando figuras simbólicas de minorias da sociedade e da cultura brasileiras, muitas vezes em representação ingênua.
Mas, obviamente, não é disso que se trata. Aqui, estamos sob o impacto de um mural gigantesco, que avança como um grito visual e que atualiza a expressão estética e política do tempo das revoluções, principalmente a soviética de 1917 e a mexicana do segundo decênio do século XX. Aqui, figura-se o povo palestino em marcha e em luta contra o seu programado extermínio.
A iniciativa de plantar o mural de agit-prop à vista de todos num ponto nevrálgico da cidade partiu do MST, principalmente do setor cultural que trabalha com a formação dos jovens. A luta pela terra reverbera fundo e mobiliza. Porque a terra é muito maior que a propriedade dela: a terra é chão, é casa, é comida, é ambiente, é espaço, é modo de vida, é a própria vida de um coletivo.
Junto com povo, a terra é pilar do que se entende por nação. Por isso, o amor encarniçado, irredimível, que os palestinos têm pela terra, pode ecoar nos jovens do MST, que abraçaram a ideia de criar o mural da Paulista. Que, aliás, não é o único – na Zona Leste de São Paulo há uma vintena de outros murais, celebrando a luta palestina. Todos eles em muros ou empenas de ocupações.
É importante assinalar que o projeto é parte da Jornada Nacional de Muralismo em defesa da Palestina em diversas cidades do país. Mas para concretizá-lo, houve uma convergência de esforços de coletivos, de movimentos sociais. No caso da Paulista, estão envolvidos, além do MST, os coletivos palestinos de resistência e solidariedade que existem em São Paulo e a Ocupação Penha Pietras que abriga, no edifício, 61 famílias em situação de vulnerabilidade, principalmente mulheres e crianças.
Para a criação deste mural, foi convidado o artista-ativista Kleber Pagu, que já se destacou na realização de obras de arte urbana em grande escala, como Aquário Urbano, Vidas Pretas Importam, Silêncio é Apagamento, Vote Sem Medo, entre outros. Nelas são tematizadas questões sobre as diferentes formas de violência contra minorias e o meio ambiente.
E é claro que Kleber Pagu aceitou a proposta com entusiasmo, por reconhecer que “Palestina Livre” é “uma das questões sociais e humanitárias mais urgentes de nosso tempo”.
No entanto, por mais legítima que seja a luta dos palestinos, ela é violentamente contestada pelos sionistas – onde quer que ela se expresse. Assim, antes mesmo que o mural ficasse pronto, durante a sua execução, houve um atentado para impedir que ele pudesse existir. Com efeito, no dia 04 de agosto, estavam, Kleber Pagu e sua equipe, pendurados na empena do edifício, pintando o mural, quando Josué Calixto Verba, um engenheiro agrônomo gaúcho de 47 anos, se aproximou do trabalho, chutou as latas de tinta, agrediu a equipe de solo e sacudiu as cordas que mantinham um dos pintores no alto da parede, colocando sua vida em risco.
“O que aconteceu foi um ato de intolerância à expressão, uma agressão sionista e ao artista, mas o mais grave é que havia uma pessoa pendurada nas cordas e o agressor forçou aquelas cordas. Ou seja, há um atentado à vida”, aponta o coordenador da Jornada Nacional do MST, Luciano Carvalho.
O caso foi encaminhado para a 78ª Distrito Policial, no bairro dos Jardins, onde um boletim de ocorrência foi registrado. Superada a agressão, e reforçada a segurança dos participantes, o mural foi concluído. A grande mídia paulista continua ocultando e edulcorando a violência israelense, e boicotando de todas as maneiras a resistência palestina. Mas Palestina Livre está lá, fulgurando, trazendo a promessa de futuro para o povo mais violentado do século XXI.
*Laymert Garcia dos Santos é professor aposentado do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Politizar as novas tecnologias (Editora 34). [https://amzn.to/4fWZgHh]
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