Por JOSÉ DIRCEU*
A Amazon é a nova aposta dos EUA pelo controle dos ativos digitais brasileiros
Vamos aos fatos. Todos públicos. Esta semana, li, surpreso, na coluna da Mônica Bergamo, no jornal Folha de S. Paulo, uma nota sobre o encontro do ministro Juscelino Filho, das Comunicações, com um representante da empresa estadunidense Amazon. Além de ser uma das líderes do mercado de armazenamento de dados em nuvem e de outros serviços digitais, esta empresa está lançando uma constelação de satélites de baixa órbita, a Kuiper, para concorrer com a Starlink.
Por isso, procurou o ministro. Tem interesse em ocupar o espaço da Starlink, que enfrenta problemas no Brasil desde que seu dono, o bilionário Elon Musk, decidiu não cumprir decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF. Como não tirou do ar os perfis de internautas que foram acusados de pregar contra a democracia e instituições como o próprio STF e seus ministros, a rede social X (antigo Twitter) foi derrubada pela Anatel por determinação de Alexandre de Moraes, no dia 29 de agosto.
Por que digo que o uso do cachimbo faz a boca torta? As autoridades brasileiras, e muito especialmente o ministro das Comunicações, por ter na estrutura de seu ministério a Telebras, deveriam saber, após o episódio Elon Musk e o caso Snowden, em 2013, que não podemos ter dados estratégicos do país em mãos de big techs estrangeiras. Foi um enorme erro do governo de Jair Bolsonaro – embora dele não se pudesse esperar outra coisa – abrir as portas da Amazônia para a Starlink firmar convênios e contratos, mesmo que simbólicos, envolvendo as Forças Armadas e escolas.
A eleita
Mas a Amazon não procurou apenas o ministro das Comunicações. Ao longo do último mês, seus executivos têm visitado diversos dirigentes de órgãos federais buscando se aproximar destas instituições não apenas por motivos comerciais. Para uma destas incursões, por exemplo, escalaram Sean Roche, coronel e ex-diretor da CIA, atual responsável pela área global de Segurança Nacional da AWS – Amazon Web Services.
Na última semana, buscaram o próprio presidente Lula e o vice-presidente Geraldo Alckmin. Queriam anunciar investimentos bilionários em infraestrutura computacional que farão no Brasil pegando carona em anúncios relacionados com a Nova Indústria Brasil. Acabaram não ganhando o espaço que desejavam uma vez que a política industrial contempla uma estratégia nacional para estimular a criação de data centers nacionais.
Duas semanas antes, porém, colegas do executivo da Amazon Web Services estiveram presentes em uma reunião de dois dias em Washington, organizada por diversas agências de segurança e inteligência de Departamentos do Governo dos EUA, para discutir cibersegurança com representantes do Brasil.
Além de servidores de entidades da administração pública federal, como Anatel, ANPD e Itamaraty, estiveram presentes alguns parlamentares de oposição ao governo Lula, que integram a Subcomissão Permanente de Defesa Cibernética do Senado Federal. Entre eles, Sergio Moro, Marcos Pontes, Espiridião Amin e um que não faz parte do colegiado, Jorge Seif. A reunião também contou com lobistas de outras big techs, entre elas Google, Cisco e Apple, mas apenas a Amazon colocou em marcha algumas ações de assédio corporativo dentro do Brasil nas semanas seguintes.
Esta reunião em Washington ocorreu na sequência de uma série de manifestações públicas do presidente Lula sobre soberania digital feitas em fóruns globais. De junho para cá, Lula falou sobre um projeto brasileiro de inteligência artificial e o controle de nossos dados em espaços distintos como em evento da OIT, reunião do G7 e na Cúpula do Mercosul.
Dirigentes do governo também vêm dando demonstrações claras de que o país possui uma estratégia de soberania digital que se desdobra em várias frentes, liderada por projetos como o de “nuvem soberana”, pelo PBIA, pela Infraestrutura Nacional de Dados e pelo Siged, do IBGE. Mesmo em assinatura de contratos com empresas estrangerias, os gestores de nossas estatais da área digital estão exigindo que os serviços sejam prestados em data centers nacionais que elas controlam. Coincidência ou não, a Amazon Web Services anunciou, na semana passada, um acordo comercial para operar seus serviços de nuvem em parceria com a Oracle, que assinou um contrato com a Dataprev.
Se sai a Starlink, por que não deixar entrar a Amazon? Nem uma, nem outra. Nossos dados estratégicos, os dados dos nossos serviços públicos de saúde, educação e segurança pública, do nosso Judiciário, de nossas riquezas minerais, de nossa fauna e nossa flora, de nossas empresas públicas, nossos dados estatísticos e censitários são nosso patrimônio, têm que estar localizados no país, em data centers de instituições públicas.
Não podem nem devem alimentar as bases de dados de big techs e, depois, serem processados e transformados em produtos a serem vendidos para seus clientes – entre eles, os governos dos países que não lutam pela soberania de seus dados nem investem no desenvolvimento científico e tecnológico, ampliando sua cadeia de dependência.
Disputa espacial
A ação de Alexandre de Moraes sobre o X, que não nomeou representante legal no país para responder pelas multas aplicadas à empresa após fechar sua representação no Brasil, atingiu a Starlink, que pertence ao mesmo dono. Suas contas foram bloqueadas para garantir o pagamento das multas. Como reação, a empresa ameaçou deixar de prestar o serviço a seus clientes: ela tem 224,5 mil conexões de banda larga via satélite, 0,5% da base nacional de conexões de internet, segundo dados da Anatel.
Entre seus clientes, estão o Comando Militar da Amazônia, com cinco contratos que somam R$ 239 mil e a Marinha, com um de R$ 428,3 mil. E o Exército tem uma licitação em andamento no valor de R$ 5,1 milhão para antenas de satélite de baixa órbita cujas especificações só poderiam ser atendidas pelas Starlink, segundo reportagem publicada pela Folha de S. Paulo. A Oneweb, da Hughes, estaria fora.
Independentemente do mérito da licitação ou do tamanho dos contratos, que são irrisórios e foram usados muito mais para comunicações pessoais entre militares e suas famílias e atendimento de ribeirinhos do que para serviços estratégicos, de acordo com depoimentos dos envolvidos, estes contratos nunca deveriam ter sido assinados. Pelas razões que já expus acima. E há um fator agravante. O Brasil é dono de um satélite. Nossas Forças Armadas não precisam de satélites de empresas estrangeiras bisbilhotando nossas comunicações.
O Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas – SGDC, da Telebras, foi lançado em 2017, com 50 transponders em banda Ka, para operações civis, e cinco transponders em banda X, para operações militares. Seu Centro de Operações e Controle Espacial – COPE, localizado em Brasília, recebeu a visita do presidente Lula há duas semanas.
Ele é operado por técnicos da Telebras e do Ministério da Defesa. Na mesma base está instalado um data center Tier 4, que oferece alto nível de redundância e tolerância a falhas. O sistema conta com outro centro de controle de back up no Rio de Janeiro e com antenas fixas em cinco pontos do território nacional.
Mais do que o SGDC, o Brasil possui um conjunto de instituições públicas capazes de dar suporte, de forma complementar, à infraestrutura da Telebras. Cito aqui especificamente o Serpro, a Dataprev e a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa, a RNP. Estas quatro entidades juntas possuem ativos da ordem de centenas de milhões de reais que controlam desde o SGDC a uma vasta gama de data centers e serviços digitais, não esquecendo da rede de fibra ótica de altíssima velocidade que atualmente conecta as universidades brasileiras.
Some-se a isso os supercomputadores da Petrobras, do LNCC (Santos Dumont) e os centros de dados do Senai-Cimatec, na Bahia, e temos uma constelação de equipamentos e dispositivos prontos para servir a este projeto estratégico de soberania digital que o presidente Lula parece ter decidido empreender como uma de suas prioridades até 2026.
Janela de oportunidade
E esta é a hora certa. No momento, o mundo enfrenta uma disputa bipolar entre Estados Unidos e China no controle da produção mundial de semicondutores, no desenvolvimento de modelos e estabelecimento de infraestrutura computacional voltada à inteligência artificial, no fluxo global de dados, na fabricação de dispositivos eletrônicos e de insumos estratégicos, no predomínio de plataformas e serviços digitais e na propriedade intelectual das chamadas tecnologias digitais avançadas.
Em torno destes dois polos, gravitam conjuntos de países com perfis de alinhamento e interesses distintos.
Por não ter conseguido desenvolver competidores de dimensão global no ambiente digital, a União Europeia, nos últimos 15 anos, tem optado por criar legislações complexas para defender seus cidadãos e seus mercados digitais em áreas como proteção de dados pessoais e privacidade, plataformas digitais, economia de dados, cibersegurança e, recentemente, inteligência artificial. Ao mesmo tempo, os países do bloco firmam acordos bilaterais com nações como China e Japão tentando garantir o fluxo dados. Em paralelo, tentam fortalecer e especializar suas empresas para ocupar nichos econômicos destes mercados digitais.
Em movimentos mais estratégicos, países como Rússia, Índia, Japão, Coreia do Sul e Indonésia estruturaram ecossistemas digitais nacionais e soberanos baseados na criação de condições regulatórias e de instrumentos de fomento que propiciaram o surgimento de campeões nacionais em áreas como redes sociais, comércio eletrônico e serviços de mensageria, entre outros. Ao mesmo tempo, estas nações investem fortemente na construção das chamadas infraestruturas digitais públicas, isto é, arranjos de capacidade computacional de processamento e armazenamento de dados para a manutenção do controle de ativos estratégicos dos países, de seus cidadãos e empresas em solo nacional.
Na franja extrema, países como os africanos e os sul-americanos ou se integram nesta nova ordem econômica mundial de forma alinhada aos Estados Unidos ou sequer conseguem recursos e capacidades internacionais para exercer qualquer protagonismo nacional. Estas nações estão, basicamente, se tornando meros exportadores das atuais commodities digitais (os dados) e importadores de soluções desenvolvidas a partir destes insumos.
Em 2023, países desenvolvidos concentraram 73% das exportações globais de bens e serviços digitais. A América Latina e a África respondem, cada uma, por menos de 3%.
O Brasil encontra-se em uma posição sui generis neste cenário. Por um lado, somos caudatários do modelo tecno-exportador baseado em dados: o país é o segundo maior usuário mundial de redes sociais, o segundo consumidor de jogos eletrônicos e um dos principais usuários de plataformas de inteligência artificial generativa. Ao mesmo tempo, possuímos uma economia digital pujante: somos o 10º maior mercado global de serviços de tecnologia da informação, possuímos 88% da população com acesso à internet, 91% das empresas utilizando fibra ótica e um crescimento de tráfego de internet que alcançou 37% em 2023.
Como já disse, o que distingue o Brasil de quase todas as demais nações tecnologicamente dependentes é a existência de um arranjo de empresas estatais e instituições públicas capazes de sustentar um modelo diferenciado para a articulação e manutenção do que se convencionou chamar de soberania digital. O Brasil afirmar isso ao mundo é uma forma de mostrar que existe um possível caminho do meio. Uma alternativa para que todas as nações, inclusive as europeias, possam escapar da dependência econômica e geopolítica dos oligopólios digitais e dos governos que os sustentam e promovem.
*José Dirceu foi ministro da Casa Civil no primeiro governo Lula. Autor, entre outros livros, de Memórias – Vol. 1 (Geração editorial). [https://amzn.to/3H7Ymaq]
Publicado originalmente no jornal Metrópoles.
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